Ginga Neto foi seleccionada na perspectiva de partilhar as suas memórias enquanto filha de independentistas que nasceram no exterior do país, cresceram e estudaram fora de Angola, em países da SADC, apoiantes da independência de Angola, onde viviam em campos de residência, de refugiados e de militares, locais onde se forjou e se conduziu a luta armada de Angola e dos PALOP.
É importante conhecer as dimensões da história social de Angola sobre a infância, a escolaridade, o regresso e a adaptação ao país dos descendentes de figuras históricas nacionais.
Ginga se predispôs a partilhar as suas memórias, incluindo as de aprendiz e mais tarde as de professora, a primeira angolana a leccionar alemão no Liceu Francês de Luanda direccionado aos filhos das famílias dos expatriados das petrolíferas que lideraram a exploração do petróleo angolano e mais recentemente a criação da escola de equitação e representação de Angola na federação internacional deste desporto. Esta angolana abraçou a causa do HSA e o primeiro resultado directo foi a sensibilização de mais um testemunho, o do seu pai, o cidadão Desidério da Graça Veríssimo e Costa, ambos depoimentos algures se cruzaram, pois, o percurso de pais e filhos assim o indica.
Eu chamo-me Ginga Neto e Costa de Almeida, nasci na cidade de Frankfurt na Alemanha Federal, é um longo percurso, actualmente em Angola sou vice-presidente da Federação Angolana do Desporto Equestre (Equestre Nacional) que é a federação que lida com o desporto que tem a ver com os cavalos, faço consultoria internacional, portanto não só dentro do país como fora e o objectivo é tentar atrair investimento para o nosso país.
Pode contribuir para este repositório de memória oral da História Social de Angola narrando factos da sua juventude?
No meu tempo de vida eu recordo-me que quando era criança não tinha país porque Angola ainda era Portugal, razão pela qual eu nasci na Alemanha porque os meus pais eram contra o regime colonial e tiveram que se exilar naquela altura porque eram perseguidos pela PIDE. Eu recordo-me de ser exilada, depois recordo a independência, uma guerra civil, a paz e agora um país que está a tentar lutar para ser economicamente autónomo, portanto são várias etapas numa vida.
Escola Primária na Escola da Embaixada da RDA em Dar-Es-Salaam
Como nós estamos aqui a falar sobre o ensino, recordo que durante a minha infância, antes de Angola ser independente como eu nasci na Alemanha, na altura dos maquis a minha mãe participou na frente leste, quer dizer Tanzânia e Zâmbia, na altura tive o privilégio de estudar na escola da RDA, antiga Alemanha Democrática porque a Alemanha estava dividida e já nessa altura nós os pioneiros, porque lá também havia pioneiros, nós éramos consciencializados sobre as lutas de outros povos e participávamos no bazar de natal para o Vietname. Nos anos 70 o Vietname ainda estava em guerra e nós fazíamos acções para vender artesanatos e pequenas coisas para apoiar os apoiar. Desde muito cedo, eu como pioneira fui consciencializando-me sobre outros povos, outras lutas, outras dificuldades no mundo.
Filhos de Nacionalistas estudantes na Tanzânia 1968-1970
Nos anos 68-70 deixamos a Alemanha e viemos para a Tanzânia, onde depois estudei numa escola internacional, mas no seio dos nossos camaradas, das pessoas que participaram na luta de libertação, havia também a preocupação de formar o pioneiro angolano, nós ouvíamos as histórias do pioneiro Zeca, do Augusto N’Gangula, dos nossos guerrilheiros, o porquê que estávamos ali, o porquê que falávamos português e não inglês como os outros meninos, portanto fomos muito cedo consciencializados sobre a nossa luta, a luta da independência e com o tempo e graças a… na altura não se falava em Deus, graças as boas energias e os esforços consentidos pelos nossos camaradas vimos este dia da independência chegar.
Chegada a Angola em 1974
O meu percurso foi por estrada, eu conheci este país pela primeira vez em 74, vindo da frente leste, Zâmbia por estrada, a primeira cidade em que entramos na altura chamava-se Luso e depois fomos para Benguela. Agostinho Neto proclama a independência e eu venho estudar para Luanda, o liceu na altura chamava-se Liceu Salvador Correia. Desde cedo percebi que era uma situação nova no nosso país, muito entusiasmo, portanto uma transição de uma era colonial para uma independência, havia um fervor, havia entusiasmo e cedo nós fomos educados a centrar as nossas acções na solidariedade com as pessoas.
Lembro-me que após a nossa chegada éramos convidados a alfabetizar quem não soubesse ler nem escrever, houve campanhas de alfabetização, daí nós termos percebido a importância da educação na vida do ser humano porque é claro que o saber liberta. Para mim foi a terceira transição para uma língua de estudo diferente, comecei a estudar em alemão, em inglês e depois passei para o português. Então foram estas etapas, pioneira do MPLA, a JMPLA, todo um fervor político que demonstrou que no nosso país o ensino, as acções sempre estiveram centradas na política, contrariamente aos outros países onde eu fui estudar mais tarde. Sempre centradas no político, foi o caso da minha família, dar o exemplo, não que estivéssemos ligados à religião, mas ser assíduo, disciplinado, chegar a horas, ou seja, dar o bom exemplo.
Foi uma escolaridade feita com interesse, com empenho sempre naquela vertente de um dia poder contribuir e ajudar o nosso país.
Em outros países, sobretudo a geração dos meus pais que foi colonizada, acham muito importante ter os filhos formados, acho que naquela época ser doutor, advogado ou engenheiro era muito importante. Eu mais tarde fiz a universidade em França e vi que em outros países mais desenvolvidos o estudo não tinha aquela importância social, as pessoas estudavam porque gostavam do estudo, que não deixa de ter a sua importância social, mas mais o tempo avança eu noto que dependendo do meio em que se está inserido, o estudo e sobretudo hoje com as redes, a pessoa pode ser autodidata muito mais facilmente do que naquele tempo, a formação depende de cada indivíduo.
Quais as etapas marcantes dos seus tempos de aluno e estudante?
Eu tenho 60 anos e sabe que em 60 anos muita coisa acontece, são muitos factos, mas os mais marcantes são realmente a chegada ao meu país, eu só ouvia falar, a chegada a Angola, ganhar uma bandeira, ganhar um passaporte pela primeira vez ser cidadã de um país e não ser refugiada noutro país, portanto, a independência para mim, foi de facto algo muito marcante, sobretudo para nós que participamos no processo de libertação. Também foi muito marcante saber que houve camaradas que não chegaram até aqui e que durante o tempo da luta perderam as suas vidas. Desde muito cedo aprendi o significado do vermelho da nossa bandeira e do preto que é o luto daquelas mães que não viram os seus filhos voltar.
O sentido pátria é um dos valores para cada cidadão e no que diz respeito a minha pessoa tem um grande valor, eu, filha de antigos combatentes sei o que custou conquistar esta nossa pátria e o que ainda custa. Pois, na altura da independência lembro-me que Luanda estava debaixo de fogo, porque havia a FNLA a tentar entrar pela via do Norte, Kifangondo, etc., nós éramos miúdos, mas eu ficava sempre a pensar “ai meu deus será que mais um amigo vai perder o pai nesta batalha?”. Isto é, foi uma luta de libertação que culminou depois numa luta interna, havia os três movimentos e todo este processo, ser criança e crescer com barulho de tiros e armas, etc., bem ou mal forja uma personalidade. No meu caso quando tive filhos proibi pistolas de brincar, sabe! Eu só tive rapazes e normalmente uma das prendas que dão aos rapazes é aquela pistola de água e nunca gostei muito disso, se calhar pela vivência, por ter estado marcada pelo nosso passado.
Depois houve a fase fraccionismo, também foi uma fase muito marcante para mim, sabe que o ser humano, sobretudo no seu percurso estudantil, cruza com muitas pessoas conhece muitas pessoas e foi a primeira vez que senti no país que tinha entrado, onde uma grande parte da população entrou com fervor porque ganhou a sua libertação, a sua independência, vi pela primeira vez pessoas divididas por causa do fraccionismo.
Conforme as pessoas vão crescendo, sempre dentro desta consciencialização política, desde cedo aprendi a centrar as minhas acções e as minhas actividades no próximo.
Depois de ter concluído o quinto ano do liceu, houve a reforma do ensino. De seguida inscrevi-me no curso de Economia na Universidade Agostinho Neto onde tive professores cubanos. Por saber que existia um curso médio de economia no Instituto Karl Marx, dirigido por professores alemães, mudei-me para lá e fiz o curso médio de Planificação Económica.
Mais uma vez, entra a solidariedade de outros povos para connosco, tínhamos professores cubanos, como dizia eu passei do alemão para o inglês, do inglês para português e depois comecei a ouvir as aulas em língua cubana e lembro-me também que parte das batalhas que foram travadas aqui foi com a ajuda solidária do povo cubano, que também deixou o seu sangue aqui. Na minha mente de criança para adolescente sempre houve aquele sentido que os povos apoiam-se uns aos outros. Quando era miúda nós tínhamos de apoiar a luta do Vietname, por sua vez, quando nós estávamos quase a atingir a independência, havia cubanos que vieram nos apoiar e tudo isso forma uma espécie de personalidade.
A estudante tradutora das aulas dos professores da RDA
No Instituto Karl Marx, os professores eram alemães e como eu era das poucas pessoas que falava alemão traduzia as aulas, o que para mim era muito bom porque ajudava-me a rever a matéria de uma forma mais assídua porque tinha o curso na língua original e tinha de traduzir para os meus colegas. Foi uma época interessante, muito bonita, também foi uma época em que aqui o partido no poder, o MPLA, centrava ainda a sua acção política nas pessoas, então nós da JMPLA havia a ratificação nós tínhamos de fazer crítica, autocrítica, aquilo era tudo levado muito a sério, mas foi uma época também marcante das nossas vidas.
A experiência universitária em França
Mais tarde, fui estudar para a França, um país completamente diferente, o que me marcou… sabe que durante toda a nossa vida enquanto estudantes, fomos sempre julgados pelo professor, ele é que vai determinar se o conhecimento adquirido está conforme a normativa que o professor tem, então chega a um momento que a gente diz que estamos sempre a ser julgados pelos outros. Em França pela primeira vez encontrei um sistema diferente na universidade, fiz o estudo de línguas, não compliquei muito a vida, queria fazer Ciências Políticas, mas quando vi o currículo percebi haver necessidade de estudar toda a história da França desde o princípio do século, por isso não me interessou porque era muito estudo. Conheci um país onde o sistema permite ao aluno escolher professor porque tem de haver no mínimo três professores para a mesma cadeira, e achei interessante este país dar a opção ao aluno de decidir pelo professor que mais lhe convém.
Fiz a formação fora do meu país, na França, e acabei gostando muito, adoro Paris.
A primeira professora de alemão do Liceu Francês de Luanda
Quando regressei, mais uma vez o Liceu Francês em Angola não tinha professor de alemão, então a minha primeira profissão no país foi professora de alemão no Liceu Francês. Foi uma experiência muito interessante porque nós estávamos a viver uma guerra civil e em tempo de guerra civil eu notei o quanto o europeu também valoriza o ser humano, aquele ditado “segurança primeiro”, por exemplo o campo de desporto no fundo também era o campo onde um helicóptero pudesse pousar, o cuidado que eles tinham em estocar água se algum dia tivéssemos que ficar presos com os alunos, o cuidado quando íamos a uma visita de estudo guiada, saber sempre onde estão às portas de emergência, eu via o cuidado que o europeu tem com a preservação da vida humana, tanto mais que os miúdos tinham aulas a partir de uma certa idade, já não me lembro qual era o nível escolar, como dar os primeiros socorros porque nesses países não assistir uma pessoa em perigo é considerado crime. Mas também ouvia os professores dizerem que em Angola é preciso cuidado, porque muitas vezes ao assistir alguém em perigo, por exemplo se é um acidente, as pessoas podem confundir e pensar que você é culpado o que pode se virar contra quem quer assistir o próximo… são todos este valores que fui vendo, comparando culturas, etc., mas que neste percurso de vida foi muito interessante ver, comparar como as pessoas centram as suas políticas e eu vejo que estamos num mundo cada vez mais materialista, muita gente centra a sua acção (ao acordar) no material, a formação que adquiriu foi para ganhar dinheiro, mas tudo depende da filosofia de vida, por muito dinheiro que eu tenha se só serve a mim, eu pessoalmente considero estéril… lembro-me de frases como “nós devemos descer até as massas para subir com elas” e na altura que eu dava aulas, a cadeira de alemão era dada já numa fase em que os miúdos estavam num nível mais adolescente, baseado nessas frases políticas e pensava “tenho que descer até aos adolescentes para subir com eles?”, vestia-me como eles, quando ia a Alemanha, gravava aqueles programas que interessam os adolescentes, debates sobre a vida do cotidiano do alemão e qual é o meu espanto, tive muito êxito, quando os meus alunos voltavam para a França, os professores diziam “mas quem é a vossa professora de alemão que em dois anos de alemão conseguiu que alcançassem um nível tão elevado”. Tudo isto demonstra que os valores de base, a moralidade, a educação forma o tal dito “homem novo”, porque na altura falava-se muito na formação do homem novo.
Quando comparo os tempos em que cresci aos tempos de hoje, sinto que falta uma linha de conduta que une um povo perante uma situação. Antigamente nós tínhamos inimigos, logo estávamos unidos perante um inimigo. Cada vez mais, a espiritualidade está a tomar conta dos seres, não é uma coisa má, mas no dia a dia quem tem conhecimento tem que ao mesmo tempo ter mecanismos de defesa e isto passa pelo estímulo, se um ser não é estimulado a inovar e a ser criativo entra na monotonia e quem sabe na depressão… Porque eu noto aqui em Angola as pessoas têm um bocado de receio de se lançarem para coisas novas, etc. Isto trava todo um processo, sinto que a população angolana, a juventude precisa de ser estimulada porque nós temos um povo magnífico que aprende rápido, sobretudo na área onde eu estou, na equitação que é a minha paixão actual. Formamos pessoas para o salto de obstáculos e temos aqui miúdos que aprenderam esse desporto muito rápido. Na europa ensinam muita técnica e nós empiricamente, de uma forma muito espontânea nos adaptamos, até houve uma senhora da Federação Internacional que disse “o africano como dança, como tem uma certa espontaneidade, flexibilidade corporal, consegue mais facilmente este tipo de desporto”. Esta é a minha luta actual, ver se um dia podemos colocar Angola no mapa das competições internacionais de alto nível. É um desafio difícil por ser um desporto bastante oneroso, pois o atleta não é só quem está em cima, mas também o animal. Temos conseguido alguns apoios graças ao esforço do presidente da federação, o Comandante Carlos Mendonça da Unidade da Cavalaria e Cinotecnia aqui em Luanda. Estamos a tentar mobilizar a juventude para este desporto.
Enquanto aluna na RDA, numa das redações onde os alunos tinham que se apresentar eu disse “chamo-me Ginga, nasci na Alemanha” e continuei a minha redação e levei uma repreensão da professora porque na altura o mundo estava dividido em bloco oeste e bloco leste e a senhora disse “vocês os do ocidente e a vossa arrogância, a Alemanha não é um todo, você tinha que dizer que nasceu na Alemanha Federal”. Isto marcou-me profundamente porque foi dito na turma em frente de todo o mundo e eu passei a perceber que o país onde nasci era visto como arrogante na RDA. Foi das coisas que mais me marcou, mas de resto, durante o percurso tive uma escolaridade feliz.
Também noto como nós vínhamos tão formatados em dar o exemplo, os professores eram agradáveis connosco, eu não era muito boa as matemáticas, mas houve um ano que tivemos uma professora muito boa, por acaso já não me recordo do nome e também percebi que a forma como a pessoa transmite o saber tem muito a ver com a forma como assimilamos.
Outra coisa que marcou a minha vida de professora, é que no Liceu Francês nas aulas que nós tínhamos como dar aulas, houve uma altura que nos ensinaram a dar mais atenção a quem precisa mais, a quem é menos privilegiado, porque há alunos que quando chegam a casa, a mãe não faz nada, só está à espera do filho, verifica todos os deveres e aquele aluno quando apresenta os trabalhos de casa, logicamente tem a nota mais alta, mas também, há alunos que se calhar já nem sequer têm a mãe ou que têm um pai ausente ou que têm pais divorciados e que não vão ter o mesmo rendimento escolar do que aquele aluno que tem um meio ambiente favorecido. Achei muito interessante este aspecto social de olhar para cada aluno dentro do quadro da sua condição. E são essas coisas que me movem, perceber que cada ser é único, hoje estamos num mundo de muitas críticas, de apontar os dedos só que cada um conhece as suas lutas e muito cedo este exemplo “do que vem de casa”, tentar perceber o que está para além do que está na escola, também achei muito interessante, não julgar o aluno só pela nota porque as vezes foi o pai quem fez o trabalho.
Qual a sua opinião sobre a importância da sua geração partilhar as suas memórias sobre a sua juventude com as gerações actuais?
Penso que uma sociedade é um todo e sem entendermos o passado não entendemos as razões e condições que nos trouxeram até aqui. Por exemplo gosto de ouvir o meu pai quando conta que antigamente a caligrafia era bem desenhada porque os cadernos eram de duas linhas e é verdade que um mais velho tem uma caligrafia fantástica comparada às dos jovens de hoje em dia, por causa dos WhatsApp e as palavras cortadas, mal sabem escrever.
Perceber que antigamente podia-se bater na escola e hoje é um crime, perceber porquê que hoje a disciplina de uma pessoa de oitenta anos é diferente da de um jovem que agora acha poder gritar com qualquer pessoa e depois há toda uma educação a perceber, por exemplo eu nunca ouvi os meus pais a dizerem asneiras. Lembro-me do meu pai contar que uma vez chegou a casa e disse “o senhor não sei quantos é um burro”, e por ter usado esta expressão “o senhor é burro”, ficou uma semana sem comer na sala, comeu na cozinha e sem poder comer com os irmãos, havia um rigor, uma disciplina, acho estão a fazer falta e nós como mulheres, mães temos todo o dever de transmitir a geração futura que sem disciplina, sem rigor não se vai longe… por isso é que eu também gosto deste desporto onde a pessoa tem que dominar um animal bem maior do que nós e se não tiver disciplina o animal ponha no chão.
Então, é tudo isto que eu acho importante e interessante perceber de onde vieram os nossos mais velhos, porque nos educaram com estes valores, e como é que os queremos transmitir aos jovens de hoje. Acho muito importante e sobretudo ensinar a juventude a ouvir o que se passou, o que não quer dizer que também não devemos ouvir o que se passa com os jovens.
Quer partilhar outras memórias relevantes sobre a habitação, alimentação, saúde, tempos livres (cultura, desporto, etc.) e o emprego em Angola?
Isto volta outra vez ao mesmo tema, ao cavalo, a simbiose homem-animal, ao desporto onde fui escolhida para acompanhar a actividade a nível da federação internacional. Já naquele tempo quando éramos jovens, havia no km 17 depois do Futungo uma pequena hípica onde nos juntávamos, é algo que eu gosto bastante.
Também recordo quando estudante em Paris ver as nossas andebolistas a fazer maravilhas o que dá aquele orgulho, a minha nação está a fazer um bom trabalho. Também éramos muito bons em hóquei em patins e acho que na juventude é importante praticar um desporto porque a saúde física está ligada à saúde mental e nós somos uma população essencialmente jovem, acho que devemos incitar e fazer perceber às pessoas que o desporto é algo muito importante.
A nível alimentar, temos o grande privilégio de ter um país essencialmente agrícola, aliás, Agostinho Neto já dizia que a agricultura é a base. Temos a possibilidade de plantar qualquer coisa e dá tão rápido. Sempre que venho da europa digo “ai minha rica Angola”, a fruta é tão boa… agora já há cada vez mais consciência alimentar, nós temos tudo para ter saúde porque a comida enlatada que vem de fora e que é cara, etc., não nos vai dar saúde, portanto, devemos tirar o máximo proveito da riqueza que o nosso solo nos dá e nisto somos abençoados. Também temos um mar super fértil ou tínhamos, não sei se com os arrastões se muito peixe foi embora, mas nós temos todas as condições para viver uma vida sã e boa.
Quer partilhar outros factos que acha importantes?
Nos diálogos que vou tendo com o meu pai, achei muito interessante perceber o porquê que países como o Senegal, essas colónias francesas obtiveram as suas independências muito antes de nós, então ele relata que… eu não tenho todos os factos em mente, mas achei muito interessante saber que a França, a Inglaterra envolveram as suas colónias na primeira e na segunda guerra mundial com a promessa que depois havia de libertar esses povos, já Portugal não fez o mesmo, preferiu participar nesta guerra mundial com logística, mas não envolvendo pessoas das suas colónias, o que resultou nas independências muito mais tarde. E o meu pai conta também que antigamente havia revistas que vinham de outros países e numa delas viram soldados nigerianos bem vestidos, com umas meias bonitas e aqui andavam quase descalços, não estavam tão aprumados como os soldados dos outros países e ele diz que este facto também contribuiu para o início da revolta e da revolução. Então percebe-se hoje o porquê que os países francófonos, ex colónias francesas estão tão ligados ao franco CFA. A independência desses países foi muito mais cedo, mas arranjaram outra forma de os manter dependentes, então isto é uma parte da história que não nos ensinaram, mas que vou tentar perceber mais a fundo.
A assimilação
Achei muito interessante perceber o porquê que nós somos tão assimilados, porque naquela época parece que os africanos para terem um bilhete de identidade, vinha uma inspecção, que incluía ver se comia com garfo e faca e se dormiam na cama, etc., esta é que dava o direito ao bilhete de identidade e a possibilidade de ir à escola, então essas pessoas eram os assimilados contrariamente, aos que eram considerados indígenas. E todo o trabalho dos missionários de tentar trazer a “civilização” para estes povos, mas no fundo era para melhor dominar, portanto, eles vão entender todo este percurso que conduziu as revoltas, etc. Por exemplo, os meus pais foram parar à Alemanha por via dos missionários da igreja protestante, metodistas. São estas coisas que eu acho bom entendermos, sabermos as diferenças que existem entre os países, nós somos todos do mesmo continente, mas muito diferentes.
Eu gosto muito de falar com o meu pai, ele tem quase 90 anos, mas conta-me sempre coisas muito interessantes.
Existe alguma diferença social nos países por onde passou ou pode até haver um ponto comum que os pode unir socialmente?
Socialmente existe uma diferença muito grande, mas também objectivos muito diversos. Quando era criança o mundo estava alinhado com os russos e os países capitalistas, quem leu o Karl Marx aprendeu que os países socialistas eram países centrados no bem-estar do homem, e os capitalistas centrados no lucro, na exploração do homem. Depois da queda do muro de Berlim nem um lado, nem o outro estavam satisfeitos. Actualmente, noto que pouca gente entende a importância da conexão humana, tal como os exemplos referidos anteriormente, sobre a importância da preservação da vida humana, a preocupação em ter água, como evacuar pessoas, o cuidado com as crianças. É todo um mecanismo que me faz pensar que em África estamos habituados a fatalidades, tudo é uma coisa normal, já não deveria ser assim tão recorrente, as pessoas não terem água, etc.
Durante anos uma pessoa é julgada por terceiros que é um professor, aqui instaurou-se uma disciplina partidária que trava as pessoas e depois tivemos também o fraccionismo que causou um trauma generalizado, muitas famílias perderam…
Nas minhas aulas de filosofia aprendi que as revoluções sociais são as mais lentas, o espírito da colectividade leva gerações cada um dentro de si tem a arma do seu desenvolvimento, só que na era colonial diziam “você é africano, por isso há sempre travões e por isso que o conhecimento é a base para um povo poder se libertar”.
Gostaria de ver um sistema de segurança social como em França onde eu estudei, embora haja os mais ricos, o cidadão tem um cartão de segurança social, não precisa de pagar antes para ter acesso a saúde porque não assistir alguém é crime, eu acho que nós deveríamos olhar mais para o cidadão, para a saúde.
Fui educada a centrar no homem, a centrar no próximo antes de ajudar, isto é que faz a diferença e leva ao progresso, por exemplo, não entendo como o presidente Zelensky está a travar uma guerra que ele sabe não ter condições para ganhar. Não seria mais fácil dizer que o meu país é neutro e desenvolver o seu país. Na minha perspectiva trata-se de falta de amor ao próximo, no passado uma senhora alemã disse-me que se o mundo fosse comandado por mulheres não haveria morte, porque as mulheres não mandam os filhos para a morte.
Quem aprende deve ensinar, quem tem deve dar
Também acho muito importante olharmos mais para a saúde e para a educação porque são a base, fui educada a centrar a minha acção nas pessoas, a olhar à minha volta, tentar perceber a condição do próximo antes de o julgar, isso eu acho importantíssimo, é o que cria conexão, é o que cria afetividade, é o que cria laços, é que une um povo porque se eu sou egoísta, se tenho uma casa maior, mas não posso dar um pão a quem não tem. Não vamos evoluir para um mundo melhor, temos que voltar, se calhar para aquilo que nos foi ensinado quando éramos crianças, a solidariedade, eu sou de uma geração que eu nem sabia aonde era o Vietname, mas nós fomos ensinados “olha que temos um povo em guerra contra os americanos” e foi na escola socialista, vamos produzir qualquer coisa para mandar dinheiro para os outros que sofrem, então é aí que temos que perceber, aliás há um ditado que eu acho muito bonito “quem aprende deve ensinar, quem tem deve dar” e assim sucessivamente, para as energias fluírem no bom sentido, é um bocado a minha filosofia de vida.
Este depoimento foi realizado no dia 30 de Março de 2022, no Miramar, na residência da Sra. Ginga Neto.