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A Reconciliação nas Famílias| Judite Chimuma Luvumba

Judite Chimuma Joaquim Luvumba e a fundadora da História Social de Angola iniciaram o processo de colecta desta memória em Março de 2022, pouco antes do lançamento do livro em Lisboa e do início dos audiovisuais em Luanda. Durante as curtas estadias em Lisboa vinda de Londres, a Judite e a Marinela encontram-se para estarem juntas, quer seja para visitas aos portais dos metodistas canadianos e americanos fundadores das missões metodistas no sul de Angola, quer seja para lhe contar as descoberta sobre memórias relevantes como o facto de ser a primeira mulher angolana negra radialista a emitir um programa em Umbundu, a identificá-la em fotografias nestes arquivos, procurando discorrer sobre as imagens e documentos encontrados como os evangelhos por ela traduzidos.  

A Parte I do depoimento “As Missões Evangélicas e a Educação em Angola”, destaca a experiência do ensino primário na missão do Dondi, do secundário na escola MEANS, o ambiente estudantil do liceu Norton de Matos, o curso de educação física e a frequência da faculdade de medicina nos primeiros anos da Universidade António Agostinho Neto. Esta primeira parte foi revista e editada pela depoente. Durante este período a História Social de Angola (HSA), registou memórias, a própria Judite diz “já estás a gravar, é melhor gravar”, mesmo em colecta pelo whatsapp e assim o HSA foi se tornando o fiel depositário de vários fragmentos da memória oral da matriarca da família Chindondo também com o fito de a apoiar na recolha de dados para o seu livro biográfico. 

De repente, a idade decidiu limitar estes encontros, ir buscá-la a Igreja onde seu genro e filha são pastores em Lisboa, nem que fosse para nos sentarmos durante uma hora ou almoçarmos rapidamente enquanto coletamos dados. Em uma destas conversas regulares para revisão e edição dos textos partilhou a decisão importante de passar a residir em 2023 no lar de idosos em Londres, mas antes cumprir a missão da passagem do testemunho da sua família paterna, a célebre e histórica família Chindondo e organizar o centenário do seu pai. Esclareceu ser por decisão própria, preferia exercer a sua autonomia naquele espaço e começou dizendo “vou passar em trânsito por Lisboa a caminho da minha última jornada a terra mãe e após o meu regresso, os nossos encontros só poderão ter lugar em Londres”.

Esta segunda parte, do depoimento contém factos da Parte I, da antiga Parte II e o relato de algumas actividades realizadas nesta última visita a terra natal, na realidade se trata da transcrição do audiovisual gravado durante a sua estadia e pela primeira vez a equipa da Muki Produções foi auxiliada pela colectora do grande depoimento, quer dizer já existiam registos e publicações, contrariamente aos audiovisuais antecedentes que foram gravados directamente no dia da colecta. Há depoimentos iniciados na Europa cujo, audiovisual depende da deslocação do depoente a Luanda. A relevância da informação, os novos dados e a estadia da Judite Luvumba em Luanda constituíram esta oportunidade única.

A falta de recursos não permitiu acompanhá-la nessa missão, pois o convite foi imediato, a antiga Missão do Dondi e ao Huambo, fomos convidados mas não dispúnhamos de recursos, porém a Judite foi enviando algum material gravado e vídeos que se juntaram ao acervo da HSA. Contamos publicar a Parte III no segundo trimestre de 2023. 

Finalmente, tal como a Judite descreve a sua família foi particularmente afectada durante a guerra, levando-a ao exílio e a última missão com o sentimento de a ter cumprido, por ter compreendido que a reconciliação nacional passa pela reconciliação familiar. Embora a HSA não tenha como propósito colectar factos políticos, não deve excluir factos sociais ligados aos cidadãos cuja trajetória de vida esteve intrinsecamente relacionada ao conflito armado que caracteriza o primeiro meio século de Angola. No contexto da Parte I, a Judite afirma a relevância de partilharmos a memória social “isolada” de factos políticos, porém a longevidade deste depoimento também concorre para dimensões desta ordem, aqui abordadas do ponto de vista social, sem qualquer pretensão de colectar dados da história política. Afinal o que há de maior relevância na história social de Angola é a reconciliação das famílias para a reconciliação social plena. 

Colonial

Memórias da habitação no ano 1930 

Eu tenho a memória desde aquelas cubatas feitas de ramos de folhas, depois cobertas a capim quando o meu pai me levava a ir visitar os  nossos tios, como não havia quartos, eles sabiam “bem o Lourenço vem aí com os filhos” e faziam uma cubata porque o meu pai tinha muitos filhos, eu tenho a recordação de estar a dormir em uma cubata, com uma porta inventada  feita de paus e cordas naturais  e depois tenho recordação de casas já cobertas com troncos, entre os troncos punham barro e depois eram cobertas a capim, depois evoluímos para casas de adobe que o meu pai fazia ou as mandava fazer, cobertas a capim e já evoluindo começaram a ser casas a tijolo. Na missão as casas eram de tijolos pequeninos, “vermelhinhos”, muito bonitos e as casas eram cobertas de telha. 

Intentona de assalto a cadeia do Huambo e a morte da família Cacunda

Na sequência, dessa explicação que nesta altura nós começamos a entender o ambiente político revolucionário que nós vivemos, que nós o vivemos intensamente no Huambo, nós vivemos numa revolta militar que tinham uma orientação vinda do Congo, não sabíamos de que Congo, intenção específica. Eles usavam o nosso lar de jovens para fazerem a organização desta intentona que houve, eles queriam ter invadido a prisão do Huambo, correu mal esta experiência, estamos em 1961-62, correu mal, nós tivemos grandes perdas, os dois militantes eram irmãos que dirigiram e que lideravam esta intentona, a família deles, a Cacunda, foi toda dizimada, ficaram só dois colegas, o irmão e a irmã, incluindo os pais, foi dizimada pelos portugueses.   

Nessa altura o missionário Professor Charles, era etnólogo e como eu tinha uma grande capacidade em termos de buscas, o Dr. Charles pedia-me para no liceu, usando as bibliotecas, trazer-lhe imagens, livros ou desenhos que lhe interessavam e o professor de história era  indiano e  também  se apercebeu do meu interesse por eu estar sempre na biblioteca a  busca  e aproximou-se de mim e vim a saber mais tarde que ele também era revolucionário, teve que fugir para Benguela devido a perseguição da PIDE.

Esta segunda parte, do depoimento contém factos da Parte I, da antiga Parte II e o relato de algumas actividades realizadas nesta última visita a terra natal, na realidade se trata da transcrição do audiovisual gravado durante a sua estadia e pela primeira vez a equipa da Muki Produções foi auxiliada pela colectora do grande depoimento, quer dizer já existiam registos e publicações, contrariamente aos audiovisuais antecedentes que foram gravados directamente no dia da colecta. Há depoimentos iniciados na Europa cujo, audiovisual depende da deslocação do depoente a Luanda. A relevância da informação, os novos dados e a estadia da Judite Luvumba em Luanda constituíram esta oportunidade única.

A falta de recursos não permitiu acompanhá-la nessa missão, pois o convite foi imediato, a antiga Missão do Dondi e ao Huambo, fomos convidados mas não dispúnhamos de recursos, porém a Judite foi enviando algum material gravado e vídeos que se juntaram ao acervo da HSA. Contamos publicar a Parte III no segundo trimestre de 2023. 

Finalmente, tal como a Judite descreve a sua família foi particularmente afectada durante a guerra, levando-a ao exílio e a última missão com o sentimento de a ter cumprido, por ter compreendido que a reconciliação nacional passa pela reconciliação familiar. Embora a HSA não tenha como propósito colectar factos políticos, não deve excluir factos sociais ligados aos cidadãos cuja trajetória de vida esteve intrinsecamente relacionada ao conflito armado que caracteriza o primeiro meio século de Angola. No contexto da Parte I, a Judite afirma a relevância de partilharmos a memória social “isolada” de factos políticos, porém a longevidade deste depoimento também concorre para dimensões desta ordem, aqui abordadas do ponto de vista social, sem qualquer pretensão de colectar dados da história política. Afinal o que há de maior relevância na história social de Angola que a reconciliação das famílias para a reconciliação social plena. 

Colonial

Memórias da habitação no ano 1930 

Eu tenho a memória desde aquelas cubatas feitas de ramos de folhas, depois cobertas a capim quando o meu pai me levava a ir visitar os  nossos tios, como não havia quartos, eles sabiam “bem o Lourenço vem aí com os filhos” e faziam uma cubata porque o meu pai tinha muitos filhos, eu tenho a recordação de estar a dormir em uma cubata, com uma porta inventada  feita de paus e cordas naturais  e depois tenho recordação de casas já cobertas com troncos, entre os troncos punham barro e depois eram cobertas a capim, depois evoluímos para casas de adobe que o meu pai fazia ou as mandava fazer, cobertas a capim e já evoluindo começaram a ser casas a tijolo. Na missão as casas eram de tijolos pequeninos, “vermelhinhos”, muito bonitos e as casas eram cobertas de telha. 

Intentona de assalto a cadeia do Huambo e a morte da família Cacunda

Na sequência, dessa explicação que nesta altura nós começamos a entender o ambiente político revolucionário que nós vivemos, que nós o vivemos intensamente no Huambo, nós vivemos numa revolta militar que tinham uma orientação vinda do Congo, não sabíamos de que Congo, intenção específica. Eles usavam o nosso lar de jovens para fazerem a organização desta intentona que houve, eles queriam ter invadido a prisão do Huambo, correu mal esta experiência, estamos em 1961-62, correu mal, nós tivemos grandes perdas, os dois militantes eram irmãos que dirigiram e que lideravam esta intentona, a família deles, a Cacunda, foi toda dizimada, ficaram só dois colegas, o irmão e a irmã, incluindo os pais, foi dizimada pelos portugueses.   

Nessa altura o missionário Professor Charles, era etnólogo e como eu tinha uma grande capacidade em termos de buscas, o Dr. Charles pedia-me para no liceu, usando as bibliotecas, trazer-lhe imagens, livros ou desenhos que lhe interessavam e o professor de história era  indiano e  também  se apercebeu do meu interesse por eu estar sempre na biblioteca a  busca  e aproximou-se de mim e vim a saber mais tarde que ele também era revolucionário, teve que fugir para Benguela devido a perseguição da PIDE.

Pós-Independência 

1976 Educadora social nos campos de guerra

Em 1976 eu sou libertada pela minha irmã das cadeias da DISA, porquê? Porque apesar de eu ter sido educada politicamente por orientação do MPLA, apesar de ter amigos e companheiros do MPLA, quando em 1974 regressaram os meus primos, meus colegas os meus familiares, os meus amigos, antigo namorado, regressaram das matas, eram da UNITA. Eu me passei para a UNITA e como me passei para a UNITA, na altura em 1974 depois da revolução de Abril havia a tal confusão entre os do MPLA, da UNITA. E o MPLA   houve uma altura em que (eles) diziam “os da UNITA que vão para a terra deles” e eu fui para a minha terra. E a independência conforme viram, sabem, a independência foi celebrada em três sítios os do MPLA em Luanda, a UNITA no Huambo e a FNLA não sei aonde.

Só que depois disso, os cubanos, (a história contada por mim, atenção, conforme conversei com a Marinela, a história contada por mim, se nós tivermos de subir esta árvore, cada um de nós do seu ramo, cada um de nós vai contar a sua verdade de acordo  o seu ramo por onde subiu, cada um vai contar a sua verdade de acordo  ao ramo que está a subir, e vocês me pedem para contar a minha história e é esta que estou a contar). Quando estamos no tal governo da UNITA pós independência, entretanto os cubanos vêm e os sul africanos, primeiro começam a ajudar a UNITA e depois o Presidente Ford dos EUA recusou enviar os aviões que a UNITA pediu para combater os mona caxitos dos cubanos, a estratégia do Savimbi foi evacuar as cidades porque não quer  enfrentar o inimigo nas cidades “eu vou puxá-los para fora das  cidades onde vamos ter as nossas lutas”, com base nisso nessa altura, ”a Judite era líder, orientadora de uma creche com crianças dos 3 meses aos 14 anos, crianças que nós íamos recolhendo daqueles massacres que havia, que houve por toda Angola e massacres feitos por todos e destes massacres sobraram dois a três filhos de cada família” e sabiam que eu era educadora social. Na altura também era responsável da segurança social na UNITA. Traziam as crianças, o que aconteceu é que quando me deram ordem para recuar, eu recuei com as crianças até a  missão do Dondi e o meu pai disse-me, “olha, tu não vais aguentar estar com estas crianças muito tempo, se os cubanos aparecerem aqui no Cachiungo entrega-as” e eu entreguei as crianças aos cubanos” entreguei as crianças aos cubanos e aconselharam-me a não retirar-me da presença deles, e então eu voltei para a Angola porque naquela altura a UNITA não era bem o governo de Angola instituído.

Os cubanos souberam que eu era funcionária dos serviços de saúde e puseram-me no hospital, os colegas que vieram também do serviço de saúde, vindos de Luanda, puseram-me com a missão de recolher os tuberculosos e os com a doença de Hansen, os leprosos e os tuberculosos que andavam na cidade, Judite “tu sabes convencer as pessoas e então o que vais fazer é pegar nelas e levá-las para os acampamentos, recolhe-as”. Quem conhece o Huambo, sabe que há uma única rua que não é mato, quem sai desta rua está no mato, então ao fazer este trabalho acabei por ser presa porque diziam que “a Judite de dia é nossa, e a noite vai para as matas encontrar-se com os primos dela”.

Útil a reconciliação nacional 

Sou presa e fiquei oito dias sob interrogatório dos cubanos e no final declararam “a Judite não tem segredos militares, a Judite não tem ido procurar a UNITA, a Judite vai ser útil a reconciliação nacional, portanto ela tem que ser solta”, fiquei mais um mês e meio para contactar a minha irmã, o marido dela tinha influências e conseguiram que a minha irmã me fosse buscar. Eles disseram “A Judite foi transferida para as cadeias de Luanda” e eles mandaram uma guia dizendo “a Judite já está solta, ela é que queria estar na cadeia para coser a roupa dos militares”, era o trabalho que eu fazia na cadeia.

Vim para Luanda, e logo a aquele meu ambiente. Fui logo nomeada secretária da cultura física e recreação, tanto que quem organizou os quadros humanos para inaugurarmos a Cidadela (isto deve constar das memórias dos Mídias), fui eu ajudada pelos cubanos.

Nesta onda, nós temos este tempo que passa e que depois aconteceu o 27 de Maio, quando aconteceu a ideia era “que o MPLA também é mau, perdoemos a UNITA que também matou” e estava tudo bem. No ano de 1979, neste ano quando acontece o episódio dos bombistas “a Judite tão depressa é professora de educação física, tanto é professora nas escolas particulares ou a noite”, eles dizem “a Judite a noite está a organizar as reuniões dos bombistas aqui em Luanda” e isto desagradou-me muito, eu andava muito bem. E de um dia para o outro era interrogatório, tudo bem e à noite punham-me no interrogatório, isto desagradou-me. 

A decisão de emigrar, 1979

Vou contar o que foi, o que me levou a dizer, o momento em que eu decidi sair, eu tinha carro do estado distribuído nesta missão de secretaria nacional da cultura física e recreação e nos momentos de relaxe, de descanso, eu  pegava no carro e punha-me numa estrada e andava, andava… e um dos  divertimento que eu tinha era ver as nuvens, há uma altura  em Angola em que as nuvens no céu de Angola formam desenhos bonitos  e os desenhos mudam e este era o meu divertimento, ver as nuvens. E um dia destes eu saí e fui andando pela estrada de Catete e passo pelo cemitério do Alto das Cruzes, eram cinco horas da tarde quando encontro no cemitério as portas semi abertas com duas pessoas, uma pessoa por dentro e outra por fora, e outras  pessoas a porta, com aquela dança, e eu com o carro do estado disse:

  • o que se passa?
  • “oh mãezinha ajuda-nos só”, queremos enterrar, mas os senhores dizem que não podemos enterrar, temos de pagar
  • eu perguntei: o que é que se passa? façam-me um favor 
  • e eles dizem “já são cinco horas eles são muitos, nós não podemos enterrar” quem puder enterrar enterre, quem não puder vá para casa. 
  • e eu pedi façam-me um favor, deixem eles enterrarem os seus entes queridos.

Eu fui embora e nessa altura eu disse “eu não vou criar os meus filhos aqui”. Minha filha mais velha estava a fazer quinze anos e os rapazes eram apanhados pela tropa ou para a polícia e as mulheres também eram convocadas ou tinham de se apresentar à tropa, o que acontecia? Quem tinha parentes salvava os seus filhos, eu pensei “eu não tenho parentes, mas tenho amigos de alta, mas os meus amigos não podem fazer muita coisa por mim porque eles também correm o risco”, eu ainda não tinha perdido este nome, na altura uns eram chamados camaradas e outros compatriotas e eu era chamada compatriota, sentia muita raiva por pertencer aos compatriotas, mas eu era compatriota.  

E eu pensei se a minha filha vai para a tropa, ninguém a vai salvar,  fui procurando até saber de um colega… “tu queres que eu meta a tua filha neste grupo”, eu disse “por amor de Deus eu fico muito contente, fico muito contente”, então o senhor fez-me o favor de colocar a minha filha no grupo dos estudantes bolseiros (mas sem bolsa), eu tinha os padrinhos dela que a receberam e esta organização de missionários onde eu cresci tinha uma casa onde recebiam bolseiros que acolhia pessoas em Lisboa.

Orientações do Presidente António Agostinho Neto, 1983

Em 1983 eu continuei “um dia sou gente, outro dia sou bombista”, então fui falando com pessoas que me conhecem. Agostinho Neto tinha deixado duas orientações que me ajudaram muito. Primeira, a orientação “onde quer que trabalhe um angolano, mesmo que este serviço esteja a ser suportado por estrangeiros, o angolano tem a última palavra”.  Segunda, que ele tinha dado é que “apesar de termos pessoas que são nossas do MPLA, mas também temos funcionários que podem não ser dos nossos, então os membros da UNTA tem a orientação de rectificar”. Porque naquela altura era o socialismo e o materialismo , quem ia a igreja era materialista mas o país  tinha que ser socialista, a UNTA tinha a obrigação de pegar principalmente nas pessoas  que lideram  para que sejam socialistas     e mais ele dizia “que  se o funcionário público mesmo que não seja muito da nossa ideologia política, se a UNTA provar que durantes os três anos  foi fiel ao serviço, não arranjou confusão tem direito a ir de férias como era antigamente para os as funcionários públicos”. Estas duas orientações ajudaram-me em que nos serviços desportivos onde a maioria dos trabalhadores eram cubanos quem tinha a palavra era eu. Quando chegou os três anos eu candidatei-me a ser retificada, a UNTA foi ter comigo, conversamos, tudo muito bem, tivemos aulas de socialismo. Enfim disseram “a compatriota está muito bem vamos lhe aconselhar que pare de ler a bíblia, deixar de ir a igreja e depois conversamos”, vamos ver se assinamos ou não assinamos, eu disse “vou pedir perdão, mas eu não vou deixar de ler a bíblia e ir a igreja” e não me ratificaram.

Só que os cubanos que me conhecem muito bem dizem “não, a Judite é boa líder, é boa colega, está connosco há muito tempo, ela merece ir de férias”. Então, eles disseram “sim senhora está autorizada a ir de férias, mas só pode ir para Cuba ou para África do Sul” e eu disse aos cubanos “eu quero ir a Cuba, mas quero pedir autorização para passar por Lisboa onde a minha filha está a estudar”. Então, tive o salvo conduto com autorização de ir de férias e passar por Lisboa. 

Fui de férias, a viagem era de férias, só que nesse dia que nós deveríamos embarcar, estava já na sala de espera até que oiço no altifalante Judite Chimuma Joaquim Luvumba, “o coração bateu, é hoje!” Levaram-me para uma sala onde encontrei lá uma bailunda como eu, que me pergunta:

  • Você sabe porque o seu nome está nesta lista?
  • Não, não sei  
  • E sabe por que você foi chamada? É que o seu nome está na lista de pessoas que não podem abandonar o país 
  • E eu disse-lhe, você viu bem esta lista?
  • Não, porquê?
  • É que o seu nome também deve lá estar porque o meu nome está nesta lista só porque eu sou bailunda.
  • E eu perguntei porquê que o meu nome está nesta lista?
  • A senhora é bombista,
  • E você sabe quem eu sou?
  • Não sei e não quero saber.
  • Está aqui o telefone

 Depois, nesta altura eu já tinha alguns truques:

  •  liga para o senhor fulano de tal, ela ligou,

E de repente alguém diz “Oh minha senhora vá ter com o seu filho porque o seu filho não se cala. O meu filho chorava “a minha mãe está sempre a ser presa” e de repente alguém diz “oh senhora vá lá ter com o seu filho”. Disse ao meu filho “vocês vão com o professor Parra, está lá o teu padrinho e vai vos receber”.  Oh Parra faz-me um favor, o Parra era um colega meu branco que também era professor que por acaso neste dia também viajava “leva os meus filhos que eu viajo amanhã”.

 Eu não ouvi a conversa e depois ela me disse “eu mesmo já fiz o carimbo de anulado”.  Agora tenho de acordar cedo para ir pôr outro carimbo, afinal a senhora pode mesmo viajar e aqui agora  só pode ser resolvido amanhã “mas, aqui agora não tenho onde dormir, só tem duas cadeiras.” Juntei as duas cadeiras e dormi até de manhã. Quando acordei ela não estava lá, quando ela voltou eu tinha o meu salvo conduto limpo. Ainda vim de táxi, nós morávamos na Marginal e vim até a marginal de táxi dizer à mãe “eu não viajei, esteja atenta se até amanhã eu não viajar já sabes com quem falar, é porque eu estou presa e já sabes com quem tens de falar”.

O comandante português da TAP passou por mim quando estava a ler o meu bilhete e naquela altura as pessoas ficavam quase por cima do funcionário e só passa aquele que o funcionário quiser e o Comandante diz “a senhora está aqui a fazer o que?”, eu disse “ estou à espera que esta confusão acabe”, ele  pegou no meu bilhete, chegou lá, empurrou as pessoas e disse “vai já para a sala de embarque” e cheguei a Lisboa. 

Quando autorizaram a sua ida a Lisboa tinham a noção que não voltaria?

Há uma pessoa que ao longo deste percurso foi meu carrasco, esta pessoa ainda vive, foi ele que me prendeu e acho que a morte do meu pai está ligada a esta pessoa e a família tem dito que ele foi também o meu protector. Quando eu já estava pronta para sair ela veio ter comigo e disse-me “o Presidente José Eduardo dos Santos mandou-me perguntar se tu vais mesmo a Lisboa e voltas”, eu disse-lhe “você conhece-me muito bem, vai ao Presidente e diz-lhe o que quiseres”. Há de ter havido gente que tem a noção que a Judite já não voltaria. Eu representei Angola numa comemoração da criança em um país, havia responsabilidades que eu tinha e as pessoas que estavam comigo nesta tarefa poderão ter acreditado que a Judite voltaria porque nem todos entendiam que eu vivia mal, que sofria todas aquelas pressões, que tinha problemas para além de ser a senhora que conduz um jipe dos serviços.

Asilo Político, curso de medicina e a venda de quitutes, Lisboa 1976

Em Lisboa, os da UNITA que sabiam o que eu estava a passar já tinham preparado condições para eu pedir o meu asilo político. E por acaso eu trazia documentos porque normalmente somos presos, mas quando saímos da cadeia temos um documento que eles dão e com base neste documento em que eu fui presa várias vezes e também com base no desaparecimento do senhor meu marido que desapareceu na guerra sem sabermos o que lhe aconteceu, então deram-me o meu asilo político.

Continuo com o curso de medicina, a entrada em Lisboa não foi barata, não foi fácil, porque antes os funcionários públicos chegavam a Lisboa e eram integrados na função pública. Em Lisboa, eles consideraram-me já como angolana e como angolana eu que me virasse, já não era portuguesa com o estatuto antigo e como angolana. Na altura, eu já estava no terceiro ano de medicina em Angola, porque por causa das perseguições eu tinha decidido “sair de casa para o serviço e de lá para faculdade e depois para casa” para saberem sempre onde eu estou e não inventarem mais coisas. As minhas colegas que sabiam disso conseguiram-me uma bolsa de estudo e eu entrei na faculdade, mas eles não reconheceram a maioria das cadeiras que eu já tinha feito. 

Comecei por dar aulas de ginástica em colégios de crianças e depois no terceiro ano de lá os alunos já não podiam ser trabalhadores-estudantes, tinham de estar permanentemente ou nas aulas teóricas ou nas aulas práticas, ou nas enfermarias. Deixei de ser trabalhadora-estudante e a minha vida começou a andar para trás, porquê? Porque o curso de medicina não era o essencial para mim, o essencial era ajudar os meus filhos na sua caminhada e nessa altura se aparecesse um filho e dissesse “oh mãe estou a namorar e quero casar”, eu parava e fazia um trabalho. E o que fazia normalmente era tratar de idosos ou era cozinheira e cheguei a ser cozinheira do Cabé, o pai do Paulo Flores, ele tinha uma discoteca com cozinha, comiam, mas depois também dançavam, não era bem discoteca, ou trabalhava na cozinha ou com coisas parecidas.  

Então um dia, eu convivi com pessoas que eram colegas do meu primo Augusto de Vasconcelos que trabalhava no Instituto de Investigação Médica de Angola, entre eles o Dr. Champalimaud que já faleceu. Eles quando iam a minha casa eu fazia-lhes os quitutes angolanos e um dia eles chegaram a minha casa e eu fiz quitação, ficaram muito felizes e disseram “Judite tu podias fazer isto e vender” e eu disse e vender, onde? “Vamos te acompanhar e levamos-te as pessoas, a restaurantes que podem comprar” e este negócio floriu. Já estava no quarto ano, no quinto ano, mas repetia cadeiras, fazia umas cadeiras e acabava outras, levei nove anos a acabar o curso de medicina e acabei aos cinquenta e seis anos. Então, a Kitaba que eu batia até às quatro da manhã, depois metia nos frasquinhos, tudo muito bonito e pedia ao filho ou à filha para levar aos restaurantes e eu ia às aulas teóricas ou às aulas práticas. E pela graça de Deus o curso acabou, ainda consegui trabalhar doze anos e vivo neste momento com a reforma deste trabalho que eu fiz.

Reforma, Londres 2013

Fui reformada em 2013 e eu ainda queria trabalhar, aos dez anos de medicina é quando nós somos verdadeiramente médicos, é quando percebemos a profissão. Cheguei a Londres em 2013 e como eu era médica de família tinha três aldeias daqueles produtores que vendiam produtos agrícolas para os supermercados, ofereciam-me estes produtos agrícolas que forneciam aos supermercados, eram muito meus amigos, ofereciam-me coisas para além do vencimento que também não era grande coisa. Depois da reforma eu criei uma empresa de prestação de serviços médicos ao domicílio porque “os meus doentes quando precisam de ir ao hospital chamam-me e eu faço a consulta”.      

Só que aconteceu em Londres onde a minha filha mais velha vivia, a filha dela teve bebé. Em Londres, eles preocupam-se muito com as crianças, idosos e os incapazes e a minha filha trabalhava, a mãe também estava doente naquela altura e precisou de ser internada e a criança ser entregue as cuidadoras, estas cuidam muito mal enquanto a mãe não vem e quando a mãe chega a criança coitadinha e mais, é muito caro o trabalho de cuidadoras de crianças. Mas, se nós não provássemos que a criança estava a ser bem tratada, corríamos o risco de a criança ser entregue a uma família de acolhimento e por causa disso decidi anular a minha empresa e vou tomar conta da bisneta que agora tem seis anos e é a minha mascote.

Quais os conselhos às novas gerações?

A Missão de Reconciliar a Família, Dez 2022 – Fev 2023

Esta pergunta é curiosa e coincide precisamente com o objectivo da minha viagem para cá que durou três meses e que termina para mim com a sensação de missão cumprida. Somos uma família muito agredida pela guerra, conforme contei temos pessoas muito importantes no MPLA, na UNITA e na FNLA não sei se temos. Neste momento há esta filosofia de reconciliação nacional e eu achei que esta tem que partir também das famílias, e eu vim! Sou a pessoa mais velha de todos os descendentes do meu avô Guilherme e da minha avó Évadia e eles tiveram oito filhos, e esses filhos tiveram muitos netos destes avós e a minha mãe é filha deste casal e talvez conheçam o General Wambu é filho do irmão que segue minha mãe.

O que é que se passou? Passou-se que muitos dos nossos filhos e netos cresceram nas matas do Savimbi, os outros cresceram em cidades nos estrangeiros enviados pelo Savimbi e ainda outros cresceram em cidades enviadas pelo MPLA como na Ilha da Juventude em Cuba e nós não nos conhecemos.  

Em 2018, eu organizei o centenário do meu pai e mandei vir de todos os sítios, filhos, netos e bisnetos e a experiência foi excecional, porquê? Porque primos que não se conheciam começaram a se corresponder, a pedir conselhos, a ajudarem-se e isso fez-me voltar e congregar para eu lhes dizer quem somos nós, por exemplo o meu avô foi o Guilherme Chindondo, nós tivemos Chindondo`s que tiveram uma missão nesta guerra, quer seja antes da revolução, quer seja ao longo da revolução, quer seja agora, durante e depois. Primeiro, ligado a UNITA e depois a oposição porque os que não são do governo são da oposição e havia aquilo “não vou a casa do primo porque o primo é da oposição”. Por acaso, o sistema que eu tenho usado é de não falar. Fui ao Namibe, passei pelo Lobito, depois ao Huambo e agora em Luanda.  Juntar aqueles que me conhecem e os que não me conhecem, que me conhecem mal, o tipo de conversa que eu faço e estou aqui e agora façam as perguntas que quiserem.  E é nesta experiência, foi nessa experiência que eu tive a oportunidade de explicar os porquês.

Porquê que vocês lutaram contra os portugueses? Porque vocês diziam, ou a UNITA, ou o Savimbi dizia que não gostam dos mulatos?  E eu aí explico. Porque esta pergunta “eu me sinto incomodada com isto que existe” porque há pessoas da minha família que dizem que não gostam de mulatos, porquê? Mas o meu pai é neto de um mulato e a minha avó Chimuma era filha de mulato e preto e eu explico que quando eu nasci isso não existia.  E essa coisa, de mulatos e pretos quando eu cresci isso não existia na família. E não só, eu tenho seis netos e só uma é que é filha de preto com preto o resto são filhos dos colegas dos meus filhos, o meu filho casou com uma algarvia e a minha filha casou com um português de Cascais, a minha família está assim constituída e quando a minha filha casou com o primeiro branco eu disse-lhe “você não pense que é o primeiro branco da minha família”. 

E isso tem de ser conversado abertamente com todas as pessoas, eu disse aos meus netos, “vocês não aceitem que quando chegarem a Angola alguém vos diga ainda por cima um mulato que estudou em Lisboa, vocês têm a mania”. Não “vocês têm a mania que vocês têm, ou outros tem a mania que tem” e esta experiência é real, eu tenho uma amiga branca com que andei no liceu e vou a casa dela e digo “eu não tenho roupa” e ela dá-me roupa, e durmo. E o que eu quero dizer a esta geração é “não aceitem que digam que quem estudou em Londres ou nos Estados Unidos…”, que convivam primeiro com as pessoas, para mim só existem duas raças, a raça dos bons e as raças dos maus, não há mais raças e é necessário isso, porque vocês afinal mataram uns aos outros. Até a própria bíblia relata a caminhada de um povo e ao longo deste caminho, este povo matou-se uns aos outros, depois se arrependeu e depois fizeram as pazes. Esta é a história, não aceitem que coloquem () na vossa cabeça.

Outra, leiam, esta geração não lê e os que leem “temos que saber o que é que leem” e a Marinela tem razão a história de Angola tem que ser escrita por nós, então se não leem, oiçam os vossos velhos, gravem o que eles dizem porque amanhã eu já não estou cá.

Tem partilhado memórias da tradição oral da sua família sobre a escravatura angolana, pode falar sobre isso?

Factos sobre a escravatura africana

Esta é uma pergunta muito inteligente, a escravatura sempre aconteceu, lembro-me que em 1959-1960 aconteceu um episódio em minha casa, eu estava no liceu no Huambo, os meus primos regressaram da igreja e encontraram a arma do meu pai meu pai que estava para matar um milhafre e este fugiu antes do meu pai disparar. O meu pai encostou a arma num canto e os meus primos e os meus irmãos começaram a brincar com a arma. O meu irmão deu um tiro ao meu primo Luís e na gíria cresceram como o Luis caçado e o Luis caçador.  Os parentes da minha mãe vieram em cima do meu pai “isto não foi nada acidente, ele preparou os filhos para matar o Luís”. 

E o médico no hospital do Dondi conseguiu convencê-los, o tio Luís não morreu, ele ficou sem um ou dois dos dedos, o médico fez de tudo, mas ficou uma bala que se encravou na cabeça e disse que se a bala não saísse o primo Luís ia morrer. Sabem quem nos veio salvar? Um escravo que veio do Samba Caxange, neto de um escravo dos meus avós. Depois que acabou a escravatura os escravos viraram da nossa família, ele trouxe uma composição que levava óleo de jiboia, este tio Luís caçado até chegou a tirar o curso de medicina e morreu na guerra.

Este tipo de escravatura era uma escravatura limitada, limitada como? Vou explicar. Era uma escravatura quase consentida e eu vou explicar como, era uma escravatura que era útil. Imaginem a Dra. M tem filhos, o irmão da Dra. M tem filhos, e o irmão porque na nossa cultura os filhos da M são filhos dos irmãos da M, não são filhas do irmão do marido. Imaginem que o marido dela teve um acidente, matou uma vaca ou atirou uma lança que tirou o olho a uma pessoa, são convocados a uma reunião dirigida pelo soba e eles dizem que o irmão da M tem de pagar, pagar o quê? Mandam-lhe pagar um boi, uma vaca e uma pessoa e ele não tem um boi ou boi e dois porcos, eles vão dizer “M o meu filho tem que ir servir como escravo na família onde eu arranjei maka”. 

E na bíblia também está escrito, há um tempo determinado que ele vai servir como escravo durante um “x” tempo e quando este tempo acaba a família vai lá, leva um galo, uma galinha, faz a festa. E vamos levar o nosso filho porque ele já serviu. Este tipo de escravatura tem limite, é de acordo a tradição porque a família teve que reunir, nós temos bois? Não. E o António vai lá servir consciente de “eu estou a substituir a desgraça que caiu sobre o meu tio” e pode ser que se enamore e se case naquela tribo.  

A outra escravatura era: havia as viagens que se faziam do Sul e do Norte para Benguela   veem para Benguela trocar com sal, com panos, com óleo de palma, coca, os materiais que lá não se produz, e estas viagens levavam meses e um povo uma tribo que não quer que a outro passe pelo seu território, quem são? Somos o povo tal e eles não querem deixar passar e ou chegam a acordo, ou lutam e é nestas lutas que (se tornam) há escravos.

Esta escravatura não tem limite estabelecido, mas uma vez que ele casou com a nossa filha já não é considerado escravo. Ele pode ser considerado escravo, um filho dele podia ser selecionado para escravo para continuar a servir, mas penso que esta escravatura tradicional acabou quando acabou a escravatura. Esta é a resposta à noção dos africanos sobre escravos.

Este depoimento foi realizado em Fevereiro de 2023, em Luanda, Bairro Benfica.

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