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É quase uma geração perdida “não somos de lá, nem somos de cá” – A Geração Esquecida do 27 de Maio de 1977| Patrícia Garrocho

A construção da memória colectiva pressupõe a inclusão e a integridade moral. Os angolanos são confrontados com um dos maiores traumas sociais conhecido como o 27 de Maio e uma das  suas consequências foi o desaparecimento físico de cidadãos. Tal como a guerra, esta tragédia provocou danos directos às famílias sendo incontornável escrever a história social do país se estes órfãos não expressarem os sentimentos que norteiam a sua orfandade. 

Alguns dos nossos depoentes têm contornado esta questão, mas sem esquecer este facto marcante na sua vida. No verão de 2022, a primeira angolana residente na diáspora londrina a encomendar o livro em diálogo com a HSA disse “Vocês deveriam incluir memórias dos órfãos do 27 de Maio residentes em Angola e na diáspora porque a última vez que estive em Angola conheci uma angolana cuja trajetória de vida se cruza com a minha e os sentimentos de esquecimento, de silenciamento deste segmento da população, da exclusão da memória colectiva e outras questões sociais foram compartilhados, apresentando semelhanças”

Excluir esta franja de “jovens da geração que viu Angola a nascer” não seria academicamente credível e porque outras purgas e expiação sociais nos demonstram a necessidade de abordar as componentes menos positivas enquanto forma de preservação e de construção da cultura de paz. Aliás 46 anos depois, o Governo de Angola na 125ª Sessão do Comité para os Direitos Humanos das Nações Unidas desencadeou um processo abrangente a outros casos de direitos humanos ocorridos durante o período de guerra civil1 que de acordo com a sua condução poderá se assemelhar ao de outro país da SADC, a Comissão da Verdade da África do Sul. 

A HSA agradece o interesse da Patrícia Garrocho em partilhar suas memórias com as actuais gerações visando como sempre o conhecimento e o estudo da história social de Angola na versão de quem a viveu, pois o 27 de Maio para além de ser narrado por vários protagonistas, tem sido objecto de teses na CPLP, sobretudo pela academia brasileira e esta é mais uma razão para inclusão destas memórias. Felizmente a reposição da memória está em curso, este depoimento traz-nos a dimensão social, esta filha de Angola foi “arrancada” do seu país e pretende regressar e colaborar na melhoria da condição de vida dos recém nascidos e das suas mães. Alguns angolanos possuem forte capacidade de perdoar e de reintegração social, esperemos que este depoimento contribua para o reforço da cultura de paz a nível nacional. 

Não pretendendo tornar este depoimento “colectivo” pelo facto da entrevistadora ter conhecido os pais da depoente, surge aqui como co-depoente com o objectivo de contextualizar ausências de memória (a depoente não tem memórias antes dos cinco anos). Também, se incluiu extractos de uma conversa em torno da declaração do Governo de Angola. Afinal, os mais velhos devem se preparar para novos questionamentos destes órfãos conforme a tradição, se previa o “levantar de poeiras”. Finalmente, porque a prática da entrevista muitas vezes coloca o entrevistador no papel do entrevistado, o que acontece neste depoimento, vários profissionais o omitem. Neste caso a HSA se permitiu incluir de acordo as boas práticas. 

A transversalidade da Intentona 27 de Maio| Marinela Cerqueira 

Conheço a Patrícia Garrocho Cardoso desde o seu nascimento, cheguei a tomar conta dela antes da sua mãe, a viúva Cremilde Garrocho Cardoso optar por emigrar para Portugal onde podia encontrar emprego no banco Totta Açores para o qual trabalhara em Luanda até à criação da banca angolana. A minha mãe dizia “ajuda à tua prima” e eu ia tomar conta dos filhos dela, do Miguel e da Patrícia, eu gostava, até porque a minha prima tratava-me bem, oferecia-me calças jeans e umas camisas vindas de Portugal, eu era fã dela por ela ter cantado no Chá das Seis. A Cremilde e Martinho faziam parte dos angolanos que em 1977 já viajavam para o exterior, ele como engenheiro da NCR frequentava estágios em Portugal. 

Quando ela se mudou para Lisboa deixou os livros do Martinho Cardoso com os meus pais e como a estante-armário da sala acomodava a colecção da Colliers, livros bonitos e símbolo do conhecimento universal naquela época, os nossos novos livros ficaram na estante do quarto partilhado com a nossa avó materna Catarina Paulino. Com o passar do tempo, eu e o Nelo fomos os dos primeiros adolescentes a “engolir” o Manifesto do Partido Comunista da URSS e deixamos atrás o complexo Capital, apenas lido enquanto estudante do Instituto Karl Marx e depois de economia socialista na Universidade António Agostinho Neto. Também, havia outros livros incluindo banda desenhada, um dos hobbies favoritos do dono original destes livros. 

Um par de anos mais tarde, a prima Crê regressa a Luanda e nos primeiros tempos se hospeda em nossa casa, pois era muito amiga da sua tia materna mais nova, Fátima Vasconcelos. Durante este curto período voltei a conviver com a Patrícia e o Miguel ainda miúdos. Aquando da segunda partida a Crê deixou alguns vinis da época estava em voga a música Disco. 

Recordo a razão principal da sua primeira partida, dela dizer “ não consigo viver aqui nesta indefinição, prefiro ficar longe da família, longe do meu país”, na época poucos angolanos viajavam e os que o faziam era por pouco tempo e sempre para consultas , comprar alguns eletrodomésticos e vestuário. Desta vez, ela partia por mais outra razão “não consigo obter o certificado de óbito, em Portugal não consigo matricular os meus filhos como órfãos”, fazem-me perguntas “se não tem o atestado de óbito como quer que o estado português considere seus filhos órfãos e você viúva?”. Tenho a percepção dos inocentes filhos não se aperceberem das razões principais destas mudanças de residência. Esta segunda ida foi definitiva, pois regressa a Angola anos mais tarde.

Um tempo depois, o Gringo amigo de infância de Martinho Cardoso foi liberto com base na execução do acordo rubricado entre Portugal e Angola. Neste dia minha mãe de tanta alegria preparou com popa e circunstância uma faustosa recepção como se ele voltasse de uma expedição, parecia que o Gringo vivo ia almofadar a perda fisica do seu querido sobrinho, ainda hoje ela alega que a madeixa de cabelo branco surgida repentinamente na parte frontal foi devido a tanto sofrimento. Depois dos abraços o ex comando português disse “ não quero comer, como posso me satisfazer com este repasto, se me recordo ter ensinado aos colegas do campo a caçar os répteis comestíveisou queimados e insectos para sobrevivermos à fome” e neste dia da minha adolescência ouvi outras histórias ainda mais cruéis… ele chorava que nem uma criança, recordando, e (penso eu) pelo rejubilo de estar a salvo. 

Ficou a saber que o seu amigo de infância cujas mães viúvas os trouxeram para Luanda, depois dos pais portugueses terem sido mortos no Norte de Angola, estava desaparecido, supostamente morto. Recordo ele ter contado “ como vivia em frente a Rádio Nacional de Angola e ouvi o tiroteio, pensei, tenho de ir defender o “M”, e sem pensar fardei-me e fui para o largo da Rádio Nacional  onde fiquei até aparecerem os blindados e ser detido”, dizia não pertencer a uma das partes da “intentona”. Parece que os Portugueses libertos ao abrigo de tal acordo tinham como prerrogativa regressarem a Portugal, mas o Gringo neste dia dizia “ nunca vivi em Portugal, nossos pais foram assinados durante o massacre da UPA3, vou aonde? Aqui é a minha terra”, falava de Luanda onde reside até à data com a sua família. 

A Patrícia no final da década de 1980 regressou a Luanda, período o qual tornou a viver na residência dos meus pais com o meu irmão Eddy, o Walter Pimenta e o Tó, jovem simpática, integrou-se na sociedade luandense como jamais tivesse saído de lá, alguns anos depois emigra para Londres onde reside até hoje. Jamais abordei este sensível assunto evitando memórias que a orfandade infantil traz a qualquer mortal, até ao dia em que enquanto leitora manifestou o interesse em partilhar as suas memórias com a HSA. 

Patrícia Garrocho| É quase uma geração perdida “não somos de lá, nem somos de cá” 

Chamo-me Patrícia Garrocho Cardoso, tenho 49 anos, nasci em Luanda nas Ingombotas.

“É quase uma geração perdida, porque não somos de lá, nem somos de cá”, somos quase uma geração perdida, viemos para Portugal com um saco às costas, ninguém fala destes angolanos. As famílias de indivíduos mortos no  27 de Maio residentes em Luanda estão a dizer a mesma coisa. O trauma de quem ficou viúva e órfã, dou o exemplo da minha mãe, a maneira como o comportamento dela na sequência do ocorrido e provavelmente de outras mães afetam a nossa geração porque da última vez que estive em Angola encontrei uma rapariga da minha idade que o pai desapareceu na mesma circunstância do nosso pai “só quando nós falamos uns com os outros, entendemos a nossa condição”. A outra órfã que conheci em Angola teve um percurso diferente uma vez que não saiu de Angola e por isso sempre esteve no meio da família e da sua cultura. O nosso entendimento em que não foi preciso palavras “foi no aperto forte de mãos e abraçou com lágrimas, olhos nos olhos, quando falamos sobre as mães viúvas e como isso nos afectou…”.  Eu só a conheci naquele dia, mas quando começamos a falar foi como se nos conhecêssemos há anos, talvez devido a experiência comum, quem sabe. 

Faz várias referências às consequências indirectas ao estado de saúde e às crises da sua mãe. Como isto afectou a sua família? 

Exactamente, porque toda vida vi a minha mãe como a viúva de vinte e três anos, a contornar as crises de coração partido recorrendo aos antidepressivos para tratar as depressões profundas a ponto de ir parar a reabilitação várias vezes, com outras sequelas na saúde mental derivadas pelo estado constante de revolta e injustiça. 

Em relação ao meu irmão, ele não fala sobre o assunto, indivíduo tranquilo e alegre, ele diz-me “não vale a pena sofrer, porquê que queres saber disto, já aconteceu!”, ele conseguiu crescer e reagir a orfandade de forma diferente. 

As pessoas falam de quem morreu no 27 de Maio e nós, os órfãos? Somos a geração sofrida, o trauma de te veres crescer e constatar que o teu pai, a tua mãe nunca foram pessoas (emoção). Não somos pessoas comuns, eu posso dizer que os problemas de saúde que a minha mãe teve foram consequências deste facto, é uma bola de neve e afecta as pessoas durante a vida toda. Falando com outros descendentes podemos explicar como lidamos com a situação, com o estigma e  com os danos morais.  

Faz parte de uma geração de órfãos esquecidos

As pessoas subestimam a falta de família e da comunidade na vida delas e por isso existem tantos problemas mentais, actualmente há tantos suicídios e solidão. Porque por exemplo “ vives aqui na Inglaterra, na grande cidade, mas vives isolada… continuas isolada” por estares na cultura inglesa ou portuguesa. A sociedade mudou substancialmente num curto espaço de tempo e isso está a afectar a forma como vivemos, saíres da tua cultura africana que na altura ainda era orientada para a família e a comunidade e de repente te apercebes estar num sítio onde vives a vinte anos e nem sequer sabes quem são os teus vizinhos, eu acho que isso desestabiliza. A maioria das pessoas pensa que por residirmos na Europa, julgam “eles estão bem, aquilo é tudo o que é bom” mas, nós não fazemos parte de nada, “nós não temos nada”, ter bens materiais não é tudo na vida, há muita coisa que nos falta, sobretudo a consequência de não termos laços nenhuns com a terra. 

Eu não sigo muito a história do 27 de Maio, mas por vezes chegam notícias das redes sociais e dos chamados “revús”.  Mesmo as pessoas que ficaram em Luanda que percurso de vida é que elas levaram? Mas, enviam-me livros nacionais e internacionais e os que ficaram o que é que se passa com eles, onde é que eles andam? São as inquietações e perguntas que ocorrem no meu pensamento. 

O que sei sobre o Martinho 

Nunca ninguém me contou nada sobre o meu pai e quando falam, falam “no Martinho”, não particularizam “o Martinho, meu pai”. Por exemplo, sobre a relação dele com os filhos, foi muito pouco tempo. Contaram-me que o Martinho foi levado para Portugal pelo exército português e pela Cruz Vermelha depois do pai ser morto, estava escondido na fazenda onde o pai morreu esquartejado, ainda era miúdo e foi posto num orfanato em Portugal. A avó Emília (mulher do meu avô) andou à procura dele e depois o foi encontrar nessa instituição, ele estudou em Portugal e regressou anos mais tarde a Angola. O Martinho nasceu no Golungo Alto  a 11 de Novembro. A avó Emília foi generosa em procurá-lo e tinha um filho, o meu tio irmão do Martinho. 

Recordações da infância em Luanda 

As primeiras imagens que tenho da minha infância foram estarmos em casa da minha avó Rosa na Vila Alice, eu, o meu irmão e os meus primos Paulo e Celma, por volta dos meus sete anos. Eu sabia que estava com a avó porque o Martinho5 tinha morrido há pouco tempo e a nossa mãe estava em Portugal a criar condições. 

Foi dos momentos mais felizes da minha vida, lembro-me de fazer a primeira classe em Luanda tinha o meu uniformezinho de pioneira, calção azul escuro e t-shirt clara, lembro-me que todos os dias de manhã tínhamos de cantar o hino, por baixo das enormes escadas. 

Também, me lembro de não sentirmos calor na escola porque a ventilação circulava e  isto é uma das coisas em que às vezes penso “porquê que as pessoas não tiram exemplos da construção de certos países?”, quando me lembro que quando era criança não era preciso ar condicionado para estarmos em ambiente confortável de estudo. 

Outra recordação, era roubarmos as mangas da mangueira que a avó tinha no quintal, acordávamos antes da avó porque ela gostava de ficar com as melhores mangas, lembro-me que tínhamos galinhas no quintal. Também, recordo as viagens com o avô aos fins de semana, lembro-me de ir a praia na casinha de praia na Corimba, a praia era vazia, não tinha gente nenhuma, tinha muitas conchas. 

Foi mantida uma certa normalidade nas nossas vidas, pelo menos no início da infância. Os problemas psicológicos que a minha mãe teve a partir daí, acho não ser algo que se fala muito, mas como é que isso afectou estas viúvas? Imagino a quantidade de jovens, gerações e gerações de angolanos com este trauma. 

Os “Emigrantes” do 27 de Maio, Portugal anos 80 

Muitas famílias desta geração de angolanos foram tiradas de Angola, a gente vive de uma maneira quase diferente dos outros à parte dos sobreviventes do 27 de Maio porque quem sobreviveu sofre mais, eu lembro-me! Não me lembro de ver a minha mãe sem fazer recurso à comprimidos, sem anti ansiolíticos e antidepressivos, viver como mãe solteira com três filhos e não foi por escolha. 

Ela contava-nos que era a única pessoa negra a trabalhar no banco, ser a única angolana retornada negra e era racismo a sério, não puder ser promovida e a ser chamada de negra, tudo isto a acontecer no país onde ela trabalhava. 

Ter uma mãe com uma educação extremamente rígida e isso afectou a minha juventude. Quando fui para Portugal acho que repeti a primeira classe, cheguei a Portugal em 1980. O Miguel e eu viajamos como passageiros não acompanhados. 

Fomos para uma escola onde eu e o meu irmão, éerámos os únicos pretos na escola primária, não tinha colegas negros. Em Oeiras quase não moravam pretos, depois, começamos a encontrar outros emigrantes, cabo-verdianos e indianos de Goa. Primeiramente, vens de um país onde isto não se coloca, não te chamam “barrote queimado”, não gozam com a tua pronúncia; depois, em casa só tens a tua mãe, não tens amigos. Portanto, tens esta parte perdida, a cultura em que eu cresci até aos sete anos de idade, eu nunca me senti assentada em lado nenhum, mesmo os anos todos em que vive em Portugal, aquele conforto de teres um problema (emoção). 

Depois, tens o aspecto de teres uma mãe extremamente jovem, fica viúva aos 23 anos, extremamente cedo, como é que isto afectou a vida dela (pensativa). Praticamente, os amigos que o meu pai tinha em Angola e que não foram mortos, provavelmente por serem portugueses, voltaram para Portugal, lembro-me que os amigos da minha mãe tinham traumas, todos eles tomavam medicamentos para traumas, lembro-me do Zé Reis6. Recordo-me de passar festividades importantes em casa dessas famílias, lembro-me que os amigos da minha mãe pareciam emocionalmente instáveis, até uma miúda como eu se apercebeu de factos como beberem em excesso, divórcios, pareciam viver no limite. Hoje, me parece compreensível, afinal estamos a falar de jovens que foram torturados e retirados da sua terra de infância, por isso não é inesperado. 

Lembras-te de outros amigos, que apoio vos davam? 

A minha mãe conseguiu um certificado de óbito e o meu tio conseguiu outro. O meu pai foi criado pela madrasta, a avó Emília que regressou a Portugal, porém os contactos foram diminuindo e actualmente poucos laços afetivos existem com os meus familiares paternos. 

Provavelmente, foi fácil contornar as dificuldades relacionadas a identidade dessa orfandade devido a descendência portuguesa de meu pai. Não me lembro de ter tido o Bilhete de Identidade Azul concedido aos emigrantes que eventualmente viriam a obter a nacionalidade portuguesa. 

Regresso a Luanda, 90 

Regressei a Luanda onde acabei o liceu na Escola Portuguesa de Luanda, por opção regressei e residi em casa da minha tia avó Fátima Vasconcelos e o meu primo Eddy Vasconcelos foi o meu cicerone na sociedade luandense dos anos 90. Éramos muito jovens e ao fim de semana quando não havia uma festa, passávamos a noite na Discoteca Tartaruga, no Bairro Cassenda e sempre que a logística permitisse íamos para a ponta da Ilha do Mussulo passar o fim de semana. A minha amiga Angela passava as tardes e o fim de semana com a malta da Vila Alice, sobretudo com os membros da “Batida do Ferro” cujos membros se sentavam no ferro da loja da esquina  da ruas Fernando Pessoa Almeida Garrett pertencente a família Talaia, havia um pedestal em ferro, recordando o período em que o estabelecimento foi uma discoteca.  Esta foi a época da abertura de novas discotecas e os conhecidos dancings a céu aberto como o Paralelo, o Paulo`s e o Pandemônio, com éramos muito jovens a verba de fim de semana se adequava mais ao preçário da Tartaruga. 

Até regressar a Angola o meu relacionamento com angolanos era assente no relacionamento com familiares e amigos, nunca tive amigos angolanos até regressar nos anos 90, não existiam angolanos a residir ou estudar em Oeiras. 

Podia descrever as diferenças entre a integração na Escola Portuguesa de Luanda e as onde lhe chamaram “barrote queimado”? 

Escola Portuguesa de Luanda, 90 

A Escola Portuguesa de Luanda na altura era maioritariamente frequentada por filhos de portugueses, havia muito poucos angolanos. Apesar de não ser chamada de “barrote queimado” existia outro tipo de racismo, não havia muita mistura entre angolanos e portugueses e a maneira que nos tratavam era distinta. Infelizmente, ninguém nasce racista, é algo que se aprende em casa. Porque a maneira como certos colegas, os portugueses que lá viviam ou que estudavam naquela escola, a atitudes deles não era porque nasceram assim, aliás sabe-se que muitos portugueses nascidos em Angola e que lá ficaram ainda tem mentalidade de colonialistas, tenho ouvido coisas da boca das pessoas , talvez por estar na Inglaterra tempo demais, fico chocada “como é que alguém pode dizer isso tão livremente” e se um português disser isso no seio de portugueses “é tudo normal”. 

Estudei cerca de três anos em Luanda e foi a minha estadia mais longa em Angola, foram três anos seguidos, passava as férias grandes no Dundo com a minha mãe e o meu padrasto.

Funeral da Bisavô Catarina Paulino, 1992

Filhos e netos da bisavó Catarina Paulino, matriarca dos Rodrigues, participaram nos rituais tradicionais dos axiluandas aquando do seu falecimento. Esposa de Manuel Rodrigues, esta bessangana vendedora de quissangua, gengibre e cola nas Cajazeiras  faleceu em 1992. Durante o óbito aprendi como as famílias tradicionais luandenses honram os seus mortos. Recordo terem sido dias de choros, de angústia mas também de rituais que envolviam danças. Uma vez, amarraram-me o pano na bunda e dancei na roda do óbito, o amigo Manucho tocava em uma lata improvisada para substituir os batuques. O óbito foi no anexo da residência da filha mais velha, a tia Judite. Nós os mais novos passávamos a noite na conversa, rodeados de muita comida e bebida à boa maneira dos axiluandas. Pela primeira vez, conheci as outras bessanganas da minha família materna… 

Até regressar a Angola o meu relacionamento com angolanos era assente no relacionamento com familiares e amigos durante as suas férias anuais em Lisboa, nesta estadia aprendi a gostar mais do meu país e regressei às raízes. É neste país onde me senti feliz e onde quero acabar os meus dias. 

Emigrante no Reino Unido, anos 2000 

Sinto ter sido “arrancada” de um país para outro, vivo em um país onde não tenho família, não tenho amigos. Geralmente, quando tu emigras não tens nenhuma referência, um país completamente estranho, em que tu não tens nenhuma base familiar, onde não é possível aplicar o provérbio britânico ”It takes a village to raise a child” (é preciso uma aldeia para se criar uma criança). 

Emigrei para Londres e tempo depois recebi e ajudei a criar os meus irmãos em Londres, ao Miguel foi um apoio até ele emigrar para outro país, depois de uma curta estadia em Angola durante a qual foi baleado. Ao meu irmão mais novo o Tiago dei o amor e a orientação necessária para ele estudar, trabalhar até decidir emigrar para outro país. Como somos órfãos de pai e de mãe, vivemos em diferentes países, mas a responsabilidade de irmã mais velha não me impedirá de regressar a Angola para cumprir os meus sonhos, sinto saudades de tudo, do povo, da gastronomia, do mar e da terra. 

Dei um nome angolano à minha única filha, Matari significa pedra dura como forma de preservar as suas raízes, a sua cultura e incentivo os meus irmãos a fazerem o mesmo. 

A tua filha pergunta pelos avós? O que lhe dizes sobre o Martinho, o que contas sobre o teu pai e as outras pessoas, aos sobrinhos? 

Desde que isso aconteceu a nossa família, é tema tabu, não falamos entre nós ou com outras pessoas, talvez seja a forma de lidar com a perda, nunca mencionei o Martinho a minha filha, ela só sabe que morreu tal como a avó. Vou dizer o quê a minha filha se nunca ninguém me falou sobre o Martinho a mim e ao Miguel, a única coisa que tenho que dizer a minha filha é “ele foi fuzilado e antes foi torturado”, o que dizer a minha filha e aos meus sobrinhos? A maneira de como lidar com esta perda é tal que ate hoje raramente lido com livros e filmes sobre o holocausto, sobre a escravatura e sobre o 27 de Maio, não os leio e não quero ler por enquanto, nunca vi a Lista de Schindler, Porquê? sao temas (choros),  porque quando eu começo a ler, começo a chorar, a emoção começa a vir, porque digo, o holocausto foram postos em cameras de gás e tu começas a imaginar o que é que se passou com o teu pai, apesar de ninguem te dizer.  Mas, imaginas o que pode ter acontecido com o teu pai até ser morto, porque eu sei que eles foram torturados, até hoje se fala da tortura da Sita Valles antes de morrer e depois, estas a ver a televisão e alguem diz  “olha, aquele era bófia” prefiro não saber! 

O que dizer? Como explicar, até mesmo a morte da minha mãe? Ela nunca foi cem por cento  feliz, mesmo a morte dela foi uma consequência de vários episódios do que se passou na vida dela. Para quê falar? O sentimento de perda é tal que se eu marinar sobre o assunto vou também estar revoltada.

Querer ir buscar respostas ao actual governo? Virar revolucionária? No fim de contas não vale a pena, a vida é curta demais para se viver com tais amarguras e para além do mais, não vamos esquecer que não temos memória alguma dele. 

A minha mãe sempre se recusou a falar, o Miguel pode falar sobre isso directamente, mas eu não posso dar a opinião dele e dizer o que ele pensa porque nós nunca falamos nisso, nem com a minha mãe. Eu e o meu irmão sempre vivemos às escuras, a gente não sabe nada, absolutamente nada sobre o nosso pai porque a minha mãe desde que isso aconteceu nunca falou nisso, ela nunca falava sobre isso porque eu acho que ela não conseguia falar sobre isso, para ela simplesmente era um assunto em que não se tocava porque as depressões e tudo isso… se ela falasse sobre isso só lhe ia trazer mágoas e amarguras. Ela sempre viveu em um estado de revolta, um estado de revolta pela injustiça, sempre revoltada, questionava-me “se iria voltar para Angola para quê? a terra que me tirou isto e aquilo”. A minha mãe morreu de coração partido e tive conversas durante as quais por alto dizia “Ah o teu pai” não falava sobre ele, mas mencionava-o. 

A geração esquecida

Uma coisa é eu ter sido posta em Portugal e praticamente quase não ter voltado a Angola e outra é os que ficaram no país, no seio da sua família e no seu ambiente cultural. Como é que uma pessoa deixaria de se sentir parte de uma geração perdida? Por exemplo, um dos meu tio tem me falado sobre o actual processo em Angola sobre a identificação dos restos mortais, as pessoas falam sempre dos viúvos, dos que ficaram, mas o que eu acho é que se esquecem de falar dos descendentes e sobre o que aconteceu com eles, órfãos perdidos porquê? Porque as pessoas dizem que eles estão bem “mas nós não fazemos parte de nada”, não temos família por perto, mesmo essas que estão perto e as vemos por vezes durante as férias… mas, há muita coisa que nos falta que são consequências de não termos muitos laços com a terra. 

Não sei qual o ponto de vista dos que ficaram em Angola, mas seria interessante se saber a história de vida deles, as pessoas pensam que é tudo bonito porque saíram do país, o que se passa com os que ficaram? onde é que eles andam? Acho que o mecanismo de viver com estes assuntos do 27 de Maio dos que ficaram em Angola é diferente. 

Imagine jovens viúvas que não estão com a família e que tem de se conter para não chorar perante os filhos, isto não importa se é viúva em Angola ou na Europa, há diferença? Vão sempre estar a chorar, sempre sentiram-se injustiçadas, é um percurso de vida comum. Aqui na Europa as pessoas podem viajar e aqueles que ficaram em Angola sem condições de viajar? Por isso os mecanismos de defesa são diferentes. 

Onde há diferenças é entre os órfãos que ficaram e os que cresceram na Europa, mas também há similaridades no tocante a relativa instabilidade que alguns de nós apresentamos “O não poder chorar, ter recaídas e não queres chorar e não conseguires por isto cá para fora”. Eu ainda faço isto com a minha filha (choros), não consigo ter o tempo, poder ter o luto pela morte da minha mãe, esta coisa de ter de chorar, eu tenho uma filha “não vou chorar a frente dela” quando há aniversários…, com família podes dizer a tua filha “vai passar umas férias com alguém”. Na realidade aprendi esta forma de lidar com o luto. 

A minha mãe nunca teve uma única fotografia do Martinho em casa e quando o seu segundo marido morreu a minha mãe também retirou as dele, também não tenho nenhuma fotografia da minha mãe em casa porque “fora da tua vista, fora da tua cabeça”. No âmbito deste depósito da minha memória oral no outro dia perguntei ao Miguel porque é que nós nunca falamos sobre o Martinho? O meu irmão disse-me “só comecei a sentir e a pensar um bocadinho no Martinho depois da nossa mãe morrer”, porque após a morte da mãe ele sentiu que já não tem nenhum dos progenitores, é órfão de pai e mãe. Pessoalmente, não consigo explicar este sofrimento, não senti muito ser órfã do Martinho, era criança, mas ser órfã dos dois e quando éramos crianças e mesmo em adultos “era sempre a mãe a dar conselhos e de repente a mãe morreu”, sou mais velha e com quem vou falar? Não tenho ninguém e esta é mais uma razão de querer estar em Angola perto da tia Fátima Rodrigues Vasconcelos, pela sua educação e formação, quero estar com pessoas mais velhas, neste momento da minha vida o único ponto de referência sanguínea é esta minha tia-avó por ser a única nossa sobrevivente e que podemos considerar a nossa matriarca, ela e a minha mãe tinham uma relação muito forte que transcendia a relação tia sobrinha e também com o Martinho. Por vezes, olhamos (os três irmãos) uns para os outros e apenas temos esta referência, aprendemos a lidar com esta situação. 

Alguma vez, já pensou que este sentimento não é somente por ser órfã do 27 de Maio, mas também por serem emigrantes? 

Há uma diferença que eu acho crucial quando digo que gostava de ouvir a perspectiva dos que não saíram do país. Mas, olhando para o caso da minha mãe e de outros que depois foram libertos, incluindo os portugueses, acho que há uma diferença por não considerar que a minha mãe emigrou para Portugal. Por exemplo, eu tomei a decisão de vir para a Inglaterra por decidir que Portugal não dava para viver, bem assim como o meu irmão Miguel, mas o Tiago não decidiu, tinha acabado de fazer quinze anos quando veio para Inglaterra viver comigo..Quando as pessoas falam no caso dos ukranianos e outros, são  casos diferentes dos nossos? Os que saíram devido ao 27 Maio, saíram por razões políticas, “os 27 de Maio não emigraram, tiveram razões bem específicas para deixarem o país”, estes são considerados refugiados, exilados políticos, mas o 27 de Maio nunca foi reconhecido, nunca foi tratado. Nós não nos consideramos filhos de emigrantes, pode não ter sido reconhecido, mas para quem o viveu sabe que não foi emigração. 

Ouvia conversas entre os mais velhos porque quando chegamos a Lisboa fomos aos  almoços e a outros convívios com estas pessoas que tinham acabado de chegar de Angola. Em Angola ela sentia insegurança, infelizmente um dos vizinhos dela era parte da “bófia”. Por isso, eu não considero a saída da minha mãe de Angola, emigração porque ninguém decide emigrar quase somente com uma mala às costas, tendo uma boa vida, vivendo em Alvalade, com um bom emprego, ela dizia que depois do Martinho ter morrido sentir-se vigiada e insegura, pensando “qualquer dia desses eu também vou presa, para averiguarem se eu também sou…”, quem vai emigrar quando vives numa zona de ricos, tens uma vivenda em zona privilegiada, um bom carro, para ires viver em um país onde te vão chamar de “barrote queimado”. Não tens condições, começar do nada, dependente da bondade de outros. Ela não fugiu devido à guerra, mas por medo de ser morta por razões políticas. Acho que os outros descendentes de portugueses e até alguns nascidos em Angola não regressaram a Angola. Discordo com esta definição de emigração, isto é estares a sair do teu país para te sentires segura “e se um dia lhe batessem à porta e a levassem para nunca mais aparecer?”. Acho que as pessoas avisaram-lhe “ é melhor saíres daqui” e ela saiu a correr. 

E agora imagina ela chegar a um país sem apoio porque na altura ainda não havia nenhum familiar a viver neste país e teve apenas apoio de amigos, os que chegavam, felizmente sempre teve muitos amigos portugueses que tinham saído de Angola. Imagina uma miúda, não me vou esquecer da idade que ela tinha, vinte e três anos e de vir primeiro para criar condições para trazer os filhos. Lembro-me de vivermos em casa de uma amiga dela portuguesa, a Mariana, em Oeiras, durante uns tempos até a mãe conseguir arranjar a casa de Oeiras que o avô Garrocho ajudou a comprar, na Quinta das Palmeiras, mesmo ao lado da casa do meu avô. Por tudo isso, dizer que ela saiu de Angola como emigrante, não é verdade. 

Por isso, quando falo da solidão e do isolamento falo de sair de Angola, vens de um país, do seio de uma família que gosta de convívios, vires para Portugal e não teres isso, não teres nada desta parte familiar. Sempre tentei regressar a Angola, eu nunca quis estar na Europa “a minha mãe com os problemas que ela já teve sempre me desencorajou” e não nos vamos esquecer que a minha mãe saiu de Angola com uma mala às costas duas vezes, no 27 de Maio e nas eleições de 92, desta vez também deixou uma casa recheada e até o nosso cão ficou no Dundo. 

O regresso a Angola 

O meu plano a longo prazo é regressar a Angola, não tenho ilusões nem pretensões materiais, de ficar rica, Pretendo trabalhar para a melhoria das condições da natalidade, desenvolver algum projeto que contribua para o bem estar dos angolanos nos seus primeiros três meses de vida. Acredito com todo o meu coração no conceito de “pay it forward”5 (se algo te acontece na vida ou alguém te faz o bem, se tentares fazer o mesmo por outros, o mundo se vai tornar melhor) e o querer voltar para Angola por ser o sítio no mundo que me traz paz e alegria interna, se eu puder dar um pouco do mesmo a outros, morro feliz. Sinto que esse é o motivo por que estou por cá. Voltar para Angola para “ser rica” nunca foi o meu objectivo, viver para ajudar os outros faz mais sentido e qual o melhor sítio para o fazer senão Angola, começando pelas crianças, elas são no fim de contas o futuro da humanidade. 

O que acontece com quem não saiu de Angola? Eu tenho de tomar uma decisão de certa forma rápida sobre o que quero fazer no futuro. Quando a Matari estiver na universidade ela pode viver sozinha. Quando se vive na Europa há mais de quarenta anos há “prós e cons” e eu gosto é de paz e sossego, não quero viver na cidade, tenho conversado sobre este assunto com a minha filha e vamos começar a passar mais férias a Luanda, a intenção é ter uma base mais permanente lá, mas para isso é preciso começar a averiguar as condições para ficar. Falando com a minha filha sobre o que queria fazer em Angola era ajudar meninos, ela perguntou-me “posso ir contigo”. 

Conheço vários portugueses que não têm problemas em viver em Angola, de andar de candongueiro, uns cresceram em Portugal e quando aparece a oportunidade de emprego em Angola vão e não fazem planos de regressar tão cedo. Por isso, não entendo a resistência da família que já lá vive em desencorajar, em Angola residem angolanos e estrangeiros de todas as idades e diferentes condições. Se vamos pensar que temos que sair do país ou por causa da saúde ou de outras condições, quem vai ajudar a construir o país? Esta noção é quase o equivalente ao conceito de white privilege, essa noção que só viver na Europa e que é bom tem de acabar, senão o futuro da nação estará comprometido e na mão dos outros. 

Conselhos às gerações mais novas 

A Inglaterra é um país bonito, de oportunidades, a educação que se recebe aqui existe em poucos países. No final dos estudos poderíamos regressar a Angola, chamo a isso uma questão de incentivo. Eu não posso dizer que Angola deu-me tudo, como outras pessoas dizem, porque a minha mãe veio para Portugal e trabalhou, mas porque é que vou estar a pagar impostos se quase um terço do meu salário vai para os impostos, não estou a dizer que não são bem geridos, mas se eu for para Angola, contribuir e pagar impostos, os efeitos deste pagamento será completamente diferente por reverter a favor do meu povo

Ser africanista é pensar em África e ajudar o continente a se desenvolver, o que acontece com a diáspora? Independentemente das razões de emigração quando alguém dá uma ideia “eu gostava de voltar”, falando de pessoas que saíram pequenas, todas desencorajam o regresso, eu nunca tive alguém a encorajar-me a voltar , a excepção de uma amiga que estudou comigo na EPL, e encontramo-nos em Londres, ela regressou, nem sequer vive no centro de Luanda, vive nos arredores, casou-se, tem duas filhas e ela tem me dito “eu estou aqui e nunca saí de Angola”, estudar necessariamente em colégios caros ou na EPL e nem estar obcecada pela saúde, pretendo seguir o meu instinto.”

Este depoimento foi realizado em Dezembro de 2022 por whatsapps entre Lisboa e Londres.

Nota: A data da publicação a HSA tomou conhecimento que está em curso a organização do regresso da depoente ao seu país. 

Palavras chaves: 27 de Maio de 1977|Emigração l Londres| órfãos| Escola Portuguesa de Luanda| White Previllege| Racismo| Martinho Cardoso| Cremilde Garrocho| Barrote Queimado| Geração Esquecida|