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Vim Desconstruído e Destransformado, Adelino Fernandes | Parte II 

Adelino Fernandes

Adelino Fernandes, tem uma vida cheia de emoções e memórias da sua escola primária em Luanda, o Colégio das Madres da Ordem de São José de Cluny e dos primeiros passos de dança na Academia de Música de Luanda para a qual dançou sob orientação da Professora Clara Guerra Marques, o amor pela dança levou-o ao Grupo de Dança Chocolates da Professora Sheila Sirgado vencedor do primeiro concurso de dança da  Televisão Pública de Angola, o Explosão Musical. A fama dos Chocolates contribuiu para a sua participação em programas da Rádio Nacional de Angola entre os quais o Sol e o Futuro do Amanhã. Mesmo sem gostar de desporto participou no campeonato juvenil “Caçulinhas da Bola” criado por um radialista mais velho, seu vizinho na Vila Alice e por isso não conseguiu jogar com a equipa do seu grupo de bairro a “Batida do Ferro” e recorda que a Vila Alice tinha duas equipas nesta competição. Durante a produção do audiovisual, Adelino Fernandes passa por algumas destas memórias de forma subtil. Porém, o leitor poderá consultar a plataforma História Social de Angola e ler a Parte I do depoimento de Adelino Fernandes e viajar connosco para outras particularidades da sua adolescência como os concursos de moda, modelos angolanos, mas também com  semelhanças às de muitos outros  jovens nos primeiros anos do Pós Independência de Angola. 

Este depoimento retrata o período pós independência de um jovem que discorre a sua rigorosa educação e cenas “hilariantes” deste período onde os adolescentes circulavam em Luanda livremente, mesmo passando noites nas esquadras da polícia por  transgredirem o recolher obrigatório.

Os entrevistadores fazem referência contínua a necessidade deste depoente fazer referência a sua opção sexual e como a família, amigos e a sociedade daquela época o desafiou e contribuiu para Adelino Fernandes afirmar “eu já vim desconstruído e destransformado” e apresentar desafios inerentes aos LGBT nas sociedades africanas.  

Tabus e diferenças requerem a partilha de identidades e de memórias, pois a história das sociedades  é verdadeira quando é inclusiva, é um processo que necessita de ser balanceado entre os diferentes pesos e medidas. 

Contexto

Eu chamo-me Adelino Olavo Amaral Fernandes conhecido por Didi, nasci  em 31 de Maio de 1970,  em Tarrafal, em Cabo Verde, a minha mãe é angolana e o meu pai caboverdiano, portanto esta é uma família formada por um grupo de sete filhos numa totalidade de nove,  mas no final da vida somos neste momento seis porque nos falta um irmão e o pai. Vim para Angola com tenra idade e vivo aqui desde quando tinha entre  quatro e cinco anos, se bem me lembro desde quando sou gente. 

Trazer-me a Angola diz-me ser praticamente um cidadão nato, tem coisas que eu conheço de Luanda que muitas pessoas que nasceram aqui não sabem, nem sabem, como nasceu e como progrediu. Para dizer o seguinte, Luanda é uma cidade que eu conheço bem, não tendo nascido aqui. Conheço tudo aquilo que diz respeito à formação de uma sociedade no pós independência de Angola  e dessa maneira consigo dizer que tenho uma noção sobre tudo aquilo que diz respeito à nova sociedade até aos dias de hoje.

Portanto, chegado aqui com a família, passo a estudar numa das escolas que se chamava São José do Cluny que fica no Kinaxixi onde estudei até à entrada no ensino médio, eu vou estudar o pré universitário. A partir de 1979, ingressas e fazes o final da instrução primária, o ciclo preparatório até chegares à oitava classe. Depois, nós tínhamos de escolher o curso da universidade. Então, tu tinhas o ensino médio técnico, como o Makarenko, a escola de formação, o Instituto de Educação ou o pré universitário. Com as notas que eu tinha e com a autorização dos meus pais (não tive a autorização dos meus pais) para estudar fora da província, não me deixavam estudar fora da província porque se tratava de um período de guerra.  Eu queria estudar agronomia no Huambo e fui obrigado a optar pelo pré universitário, ciências biológicas e depois frequentei a faculdade de medicina na Universidade Agostinho Neto isso em 1987. Eu  fui diretamente do São José do Cluny para o PUNIV. Portanto, no São José do Cluny estávamos habituados a duas regras, a primeira era chegar à escola e ser obrigado a entrar na capela para rezar e depois ir para sala de aulas, a segunda fase era a obrigação de aprender o hino nacional e ter de cantar diariamente o hino nacional a entrada e á saída da aula, convivermos com aquilo que hoje em dia se chama a angolanidade que “é tu vires de fora e seres habituado a conviver com as regras locais”.  

Não me foi difícil habituar a situação, porque o homem por norma é um bicho de costumes e sendo de costumes normalmente adapta-se,  principalmente em tenra idade se és crianças habituaste muito mais rápido, se não és vais habituar-te gradualmente.

As actividades Extracurriculares| Os Chocolates e a Academia de Dança de Luanda

Posto isto, os anos vão passando gradualmente, o que acontece até eu chegar ao pré universitário? O meu pai trabalhava no Ministério da Cultura, nós não tínhamos uma educação rígida, mas sim dedicada. Quando nós saíamos da escola no período da manhã tínhamos aquilo que se chama extracurricular. Fomos colocados na antiga  Academia de Música e tinha duas vertentes, a música ou a dança, quando eu entrei era obrigatório  fazer as duas coisas. Passado três anos estudavas só música ou só dançar  e como o meu corpo tem a ver com movimento eu preferi dançar, passei a ser aluno da Ana Clara Guerra Marques no balé clássico onde estive até aos meus dezoito anos. 

A entrada no ballet e no mundo das artes teve muito a ver com aquilo que era o  extracurricular, como eles trabalhavam os dois nós tínhamos de fazer alguma coisa no período em que não estudávamos. Primeiramente, andamos nos Chocolates e depois fomos colocados na Academia de Música para fazer ballet clássico, eu até aos dezoito anos e o meu irmão mais novo até aos dezasseis.

Os Chocolates, Anos  80

Antes de estar na Academia de Música, em Luanda criou-se uma situação que advém dos anos 80 quando a América estava a criar os filmes de street dance e começam a aparecer aqueles filmes como o Breakdance, o Fame e o Flash Dance, nesta altura era música moderna ou street dance. Há uma pessoa que se chama Sheila Sirgado que era professora do maior grupo de dança, vencedor do melhor concurso de dança que se chamava Explosão Musical, estamos a falar de 1973-1974, portanto era pré adolescente, tinha catorze anos. Aos catorze anos temos muitas memórias. Nunca fiz desporto, eu sou um bocado cômodo, o meu corpo é cômodo demais para exercitar coisas que eu não quero.

O Recolher Obrigatório

Luanda era uma cidade fácil de lidar, sem o mínimo de risco, nós circulávamos  por  toda a cidade livremente, sem o mínimo constrangimento, preocupação de agressão, de sermos raptados ou sofrermos qualquer tipo de atentado.

Eu vivi uma situação na minha adolescência que se chamava “recolher obrigatório” em Angola. À meia noite “as portas fechavam para a cidade”, mas nós como adolescentes, não rebeldes, mas como adolescentes queríamos ir a todo lado e tudo que acontecia na madruga. Aquilo que se diz “corre-se tanto até que muitas vezes morre-se na praia”,  andava-se a pé uma noite inteira de festa em festa e a cinquenta metros à porta da festa encontrava-se uma barreira de polícia que te levava para passares o resto da tua noite… Quer dizer, às cinco da manhã deixavam-te na rua novamente, deixavam-te ir para casa porque já não era permitido manterem-te preso, mas sobrevivemos, quer dizer saías, ias a uma, a duas e a terceira festa que querias ir e no final “morrias na praia” por não conseguires chegar ao limite, eras preso. Normalmente, eras colocado no pátio da esquadra, sentado e uma das coisa mais hilariante era as pessoas recolhidas durante o recolher obrigatório trabalhavam antes de serem libertos, qual era o serviço? Os mais rebeldes faziam a limpeza das casas de banho e os outros apanhavam as beatas  todas da unidade policial, eu não acho isso normal “apanhar todas as beatas que estavam ao longo da unidade” e eram as pessoas que eram presas durante a noite que antes de saírem tinham de recolher aquilo tudo.

Hoje em dia eu consigo lembrar-me que não vivi uma má infância.

As Festas e a  Integração dos Cooperantes Escandinavos em Luanda, Anos 90

Quando começam a chegar os anos 90 a vida começa a mudar de figura, começam a chegar cooperantes escandinavos, a vida começa a mudar de figura porque há os acordos de Bicesse, há a dita paz em Angola. Então, começa a entrada de grandes multinacionais em  Angola, embora já existissem em número pequeno, como a Elf Aquitaine,  a TEXACO e  a AGIP, haviam pequenas empresas, não tão pequenas , mas na altura tornavam-se pequenas porque simplesmente o sistema não admitia que houvesse o alargamento.

O  que acontecia nas  noites de Luanda naquela altura? Produto da entrada desses estrangeiros em  Angola e de  uma pequena comunidade angolana habituada a viajar uma ou duas vezes por ano para fora do país. Então, eram essas  as pessoas mais abalizadas a trabalhar nestes sítios  e a conviver com estas pessoas.  As festas e as noites  luandenses eram praticamente produzidas por eles. Hoje há festa do francês da empresa “x” no sítio “x”, amanhã a festa de “y”, eu nunca vi tanto sueco  como na altura do comunismo em Angola. Hoje não conheço nenhum, naquela altura havia 15 mil suecos em Angola, viviam todos nas redondezas de Cacuaco. Nós saíamos da cidade às dezoito horas porque a festa começava às 21 horas, voltávamos às seis da manhã porque havia o dito “recolher obrigatório” para não termos nenhum problema.

Os Limites de Luanda, 80`

Naquela altura, ires a Cacuaco era quase como ires hoje a Benguela, não é muito esquisito? Hoje tu vais à Talatona, vais a qualquer lado.  Antigamente,  na minha infância a cidade terminava no aeroporto, onde agora é a base da Força Aérea de Angola, havia ali um retorno onde a cidade terminava e dali para frente havia somente capim, não havia a estrada que hoje existe chamada Rocha Pinto. A única estrada que existia era a Estrada da Samba, com duas vias, uma para ir, outra para vir, acabava próximo ao antigo  Hotel Costa do Sol que era o sítio mais longe onde nós íamos para depois podermos atravessar o mar para ir ao Mussulo. Havia aquelas pessoas que iam um pouco mais longe até as Palmeirinhas (praia), outros viajavam para as províncias. Mas era aquela estrada diminuta. Naquela altura, não se viaja porque não era possível, primeiro porque os carros não permitiam e além de mais, não havia nada a meio do caminho que te permitisse essa trajetória. 

Brincar à chuva

Não tive muitas brincadeiras de infância porque eu fui educado de uma outra maneira.  Eu conseguia ver chover em  Luanda e ver todas a criançada do bairro a passar para brincar  a chuva e eu estou dentro do quintal a ver isso e não puder ir brincar, porque não me era prometido, cada um educa o seu filho a sua maneira e eu fui educado dessa maneira “eu não tinha de andar na rua!”.  

Eu só consegui andar na rua a partir dos doze anos quando já andava no ciclo preparatório. Consigo andar na rua quando já andava na universidade, eu era um dos únicos alunos da universidade que o pai deixava e apanhava à porta. Tinha os dois períodos e nos dois períodos o meu pai levava-me no seu carro, de manhã deixava-me às oito e meia e a tarde deixava-me às duas e apanhava-me às sete da tarde.  E eu estava dentro da sala e entrava um colega e dizia “o teu pai está lá fora”, não acontecia isso com quase mais ninguém. Se com a idade de universitário o meu pai ia levar-me e buscar-me à universidade, imaginem quando eu era criança.

Não é propriamente fácil desprender-se dessa educação, levas até onde te permitem  levar uma vida normal. Não tive uma má infância  só tive a minha infância , eu podia ter sido criança de outra maneira, brincar com os outros. Eu tinha os meus amigos, só que eu não brincava com aquelas crianças que eu achava com quem também devia brincar, “então está a chover, passa todo mundo a correr e porque é que eu não posso ir brincar? porque vou ficar doente, e os outros não vão ficar doentes?” cada um com o seu tipo de educação e foi com esta com que eu cresci.

Não julgo, e felizmente estou aqui com alguns problemas que são normais. Por causa dessa superproteção uma pessoa não adquire anticorpos, fica doente mais rapidamente na velhice. 

Alimentação

Hoje aquilo que às crianças ou a juventude tem acesso como terem um shopping center, terem uma loja em condições com mil e quinhentos artigos no meu tempo não se processava. Para tu ires a loja e juntares um kit básico rodeavam as lojas todas,  do qual todas elas tinham um ou dois produtos a loja inteira, estão a ver um Jumbo (antigo Hipermercado Pão de Açúcar) inteiro e todas as prateleiras só terem ou massa ou sabão,  saías do Jumbo porque só havia massa e sabão e a seguir entrava-se na Martal e só encontrava-se um outro produto, de uma loja para outra acontecia o mesmo.     Deparamo-nos com aquilo, são essas coisas que hoje eu me lembro e que já não fazem parte do dia a dia. Então não é complicado, mas é bonito tu perceberes que as coisas mudaram de uma  determinada maneira desde o final dos anos 80

O Cartão de Responsável

Como naquela altura havia esses problemas para alimentação diária de casa, também, posso dizer ter havido um certo privilégio familiar “ter um cartão de responsável”. Haviam determinadas lojas, onde algumas pessoas podiam ter acesso a  determinados produtos que a população em geral não tinha, não era uma grande coisa visto o que há hoje, mas era o que havia disponível. Assim sendo, eu cresci nisso, com a dificuldade do país, mas não a passar a grande necessidade que a maioria do país passou, claro que não. Não posso dizer que passei fome, isso não é verdade porque a bem ou a mal as coisas sempre apareceram em casa: uma maçã, uma coca cola, queijo, fiambre, essas coisas que a maior parte da população não beneficiava.   

Peixe Espada  “ O Cinturão das Tropas”

Algo hilariante aconteceu, sabem onde é que é o Zé Pirão? Ali havia dois restaurantes que serviam normalmente (até hoje eu não como esse peixe) peixe espada e arroz,    serviam um prato de comida e um fino, e a maior parte dos frequentadores do restaurante comprava dez pratos de comida para ter direito a dez finos “compras o  prato e como só queres beber, os pratos  ficam em cima da mesa”. Então, como é que tu vais a um restaurante mandas vir dez pratos de comida “não comes nenhum e bebes os dez finos?” era hilariante! Chamavam o cinturão das tropas, aconteceu! “Hoje não como este peixe nem que tu me pagues já comi demais, em demasia por este peixe a frente eu vou olhar para ele e vou dizer, eu não…” Foram muitos anos, muitos anos a “levar” com certas situações.

O Açúcar mascavo em Angola, 70`

Hoje em dia, todos acham muita piada ao açúcar mascavo, o único açúcar que eu uso hoje é este açúcar. Mas naquela altura, nós já tínhamos isso, mas não gostávamos. Primeiro, porque aquilo não adoçava nada “punhas doze, quinze colheres”, mas não achávamos piada. Era a altura, em que as comunidades dos “internacionalistas”  predominantes em Angola  seriam a russa e a cubana e este  açúcar vinha  importado de Cuba, Angola não tinha açúcar, as fábricas estavam completamente paradas.  Era tudo importado e este açúcar era importado de Cuba, nós consumimos esse açúcar, mas eu criança naquela altura… 

Claro, que eu tinha que pôr, adoçar o leite ou o chá “leite não havia todos os dias, mas chá havia todos os dias”, tinham de adoçar e nenhuma criança que eu saiba está habituada a tomar chá sem açúcar, hoje  em dia  todas as pessoas dizem ser benéfico, ninguém faz uso de açúcar branco, mas naquela altura era tudo que nós não queremos. 

Voltando à infância, no final dos anos 80 a refinaria de Luanda foi incendiada, actualmente a maioria dos habitantes desta cidade com estas idades não sabem.  Porque em determinado debate em casa de um amigo ele perguntou-me se eu era doido ou me estava a fazer de doido “tu estás doido”. Em determinada altura houve um atentado em Luanda, os sul africanos entraram em Luanda em um submarino.

A Cassumbula

Tens a situação que antigamente chamavam a cassumbula  que era tirarem-te o lanche de escola, quer dizer levas um bolo, uma coca cola, uma maçã, coisas que as pessoas não estavam habituadas a ter no seu dia a dia e se houvesse algum colega que a tivesse, prontamente era como se diz açambarcar aquilo que está na mão do outro. São situações às quais tivemos de nos habituar, embora não tivéssemos sido educados para isso mas a vida é como é.

Em termos de vivência aconteceu o seguinte, eu nunca fui um mau aluno na escola o meu pai e a minha mãe nunca tiveram muito a possibilidade…, embora a tivessem  porque eram pais “não vais aqui, não vais ali, porque tinha notas aceitáveis,  posso ir aqui, posso ir ali, e eles diziam podes”. Mas, eles também sabiam porquê? Porque tu vês “na escola   um tem uma nota pior do que a tua e vai ao mesmo sítio que queres ir sem muitas objeções, porque  eu nao podia ir?” Contestava até eu puder ir.

Por outro lado, a vida de Luanda muda todos os dias, mas não muda com grande frequência, só tem uma coisa que eu  apesar de gostar de Luanda desgosto dela porque    chegamos a um ponto onde se acha que tudo é normal, até aquilo que não é  fiável passa a ser.

Relações familiares e amigos de infância até assumir a sua postura

Com catorze, quinze anos não é que eu tenha já sido a pessoa adulta que  sou, mas nós vivemos uma situação onde nós éramos quase que obrigados a quase tornarmo-nos adultos porque a situação assim o obrigava. 

Nunca tive uma relação péssima com os meus familiares, isso não posso dizer sempre tive uma relação boa porqu o meu pai nasceu em 1925 e a minha mãe em 1936, já existe uma relação com a distância de nove anos entre eles, já está a ver um casamento que foi feito nos anos 50. Então, eles fizeram todos os filhos e educaram-nos  a maneira  que eles achavam o melhor que teria sido para nós sermos pessoas com um futuro, tudo aquilo que acharam mais útil, o que nos deixaram foi a educação, fizeram com que cada um de nós se sentisse preparado para enfrentar o mundo e  a vida.

A relação familiar é brutal, até hoje. Não foi preciso realmente haver aquilo que se chama “o assumir”, um pai e uma mãe sabem os filhos que têm em casa, nunca houve propriamente a conversa “eu sou isso, eu preciso disso, eu sou aquilo”, as coisas foram acontecendo e tivemos que lidar com a realidade momentânea, com aquilo com que a gente vive hoje. Eu nunca precisei de dizer nem a um ou a outro “eu sou,  porque eu sou”. Então, o que eu sou faz com que eu tenha a vivência que eu tenho com os meus amigos, a vivência laboral e a vivência que eu tenho socialmente.  Eu não tenho nenhum tipo de problema e eu não admito sequer que alguém questione porque a formação  pessoal que eu tenho é superior a qualquer opção que eu tenha na minha vida,  então daí “o eu ser aquilo que ninguém acha normal”, mas para toda vida eu sou um gajo normal.

Nascer desconstruído e destransformado, Anos 80

Mas, eu não me transformei, eu já vim destransformado, eu já vim desconstruído. “O problema é que não foi. Não existe descoberta, existe uma vida. Queres que eu te explique? Vais desmaiar!” 

Tu és rapaz que tens dez ou doze anos e tu olhas para o lado e tu tens um outro rapaz, olhas para o lado e tens doze garinas e o teu foco está aqui, mas também tu não dizes   nada e por outro intermédio tu recebes a orientação vinda dali, tranquila como se nada fosse. 

Tenho uma coisa que eu sempre digo, nós aqui nessa sociedade e nas sociedades africanas achamos que isto é fomentado por algo que vem de outro lado; isto não é verdade isto é sociedade, isto é corpo, isto é mente, isto é vida”  a coisa que mais me interessa na vida “se eu me ligo a ti todos os dias, vai acontecer”, é ligar-me a alguém pela tua cabeça porque o corpo…, eu não preciso porque quando eu estiver na tua cabeça o corpo vem por acréscimo. Toda a  minha vida eu fiz tudo centrado na mente,  a mente cria o corpo e o corpo vem de borla. 

Eu não tive que fazer nada para crescer em relação a isso porque toda a minha vida foi feita com base no conhecimento “eu tenho direito a ter amigos,  tu és meu amigo, o outro é meu amigo, tu tens amigos” e qualquer amigo tem o direito a querer estar com seu amigo em um estágio mais íntimo e os outros não precisam de saber. Então, aí começa a escola “porque que tu podes e eu não posso?”, porque não conquistaste a mente da pessoa “ok o corpo dela e não resolve a cabeça”, estás a entender? O teu corpo não resolve a tua pessoa, a tua cabeça resolve o teu corpo e se eu tiver a tua cabeça o teu corpo vem por acréscimo. Por isso, eu tenho o direito e o fascínio de poder viver uma situação diferente. 

Claro que eu já fui apedrejado nesta cidade, eu vivi uma situação que desde sempre…  Primeiro, eu andava numa escola de dança, eu já saía de casa vestido com meia, sapatilha, collant, camisola justa. Então, em todas as esquinas onde tu passas até chegares a escola vais encontrar um grupo de rapazes, onde todos eles são educados em que um homem é um homem e  uma mulher é uma mulher.

Claro, e eu estou cansado de saber. Mas, cada um de repente opta por aquilo que quer, não porque te disseram. Nos anos 80, eu não tive ninguém a dizer-me “isto é o que é bom”. O teu feeling e os teus hormônios começam a definir quem tu és, a tua cabeça começa a dizer a ti o que é que são as tuas preferências, então as tuas preferências  começam a incidir naquilo que vai ser o  teu ser adulto. Desde cedo tu começas a pré definir aquilo qual vai ser a tua caminhada. Quem quiser entender isto “muito bem”, mas também quem não quiser também está tudo bem porque sinceramente olhar de ânimo leve  e pensar que as coisas vão ser fáceis, não é nada disso.

Não existe nenhum sucesso que não tenha um pouco de sacrifício e para todo o sucesso que eu tenho hoje houve bastante sacrifício.

Não houve experiências, houve tentativas mas essas tentativas foram tão infrutíferas que não resultaram em nada de significativo, que fizeram com que eu continuasse a levar a minha cabeça para o sentido para o qual eu fui construído. Porque não adianta dizer que tu constróis a tua mente, tu és predefinido por algo e a tua mente segue  a lógica da tua predefinição para seguires a tua lógica até ao final da tua vida, a tua mente até pode te dizer “dizem isso, dizem isso” e tu tentas fazer, mas quando tu chegas a tentativa final…

O mundo da moda, 1992 

Depois, de eu ter passado muitos anos pelo mundo da dança, em 1992 foi transmitida pela Televisão Popular de Angola (TPA) na altura hoje é Televisão Pública, foi transmitida uma novela que se chamava Ti-Ti-Ti, onde uma das tramas era uma guerra entre dois costureiros, nesta altura eu e um amigo resolvemos penetrar nessa vertente. Eu não sou um grande desenhador, mas eu sou um grande construtor, por isso normalmente quando dizem “O Didi estilista” eu procuro sempre dizer o Didi não é estilista, é um criador de moda” um criador passa pela vertente da concepção daquilo que é um construtor de moda. Quando tu és um estilista implica dizer que tu és uma pessoa que vai desde o desenho, ao corte, à costura, a apresentarem a peça no final.

A minha vertente é normalmente o conceptual porque trabalho mais para aquilo que é o   interventivo que é “a opção”, ou dizer “não, não é opção, é a proposição” tu propões, um criador de moda propõe,  não decide, tudo aquilo que o criador propõe numa passerelle, não pressupõe o consumidor  realmente usar como aquilo que é visto.  Tanto mais que a maior parte das peças que tenho vendidas ou criadas para determinados clientes, elas nunca são usadas da maneira como eu  as proponho, tenho dez  ou doze clientes fiéis e sempre que as vejo elas são usadas de maneira diferente.

Normalmente, saem da minha casa  onde vão buscar as peças com aquilo que se chama um manual para vestires, tudo tem que ter um manual de instruções porque ela  não é uma peça para tu penduradas em um cabide. Numa peça eu consigo fazer três ou quatro formas de vestir a mesma peça, então ela leva uma manual de instruções em vídeo com  três ou quatro opções de vestir aquela  mesma peça porque eu procuro fazer o seguinte: quando construo uma roupa  em que ela só tem um  único fecho e eu consigo fazer para mulheres elegantes, mulheres do tamanho entre 36 ao 38.

Então, entrar para este mundo não foi muito difícil porque eu sou uma pessoa criativa, eu sou criativo. E o ser criativo faz de nós “pessoas de opção”. Teve um dia que alguém disse “mas  eu acho que as peças dessa pessoa não são as mais evidentes ou consideráveis para  se fazer para o mundo da moda”, Porque  alguém que é estilista  depende das roupas de um criador para sobreviver, não pode ou não deveria opinar muito  quando se fala em peças de roupa porque  se tu és uma pessoa que crias  estilos por peças já elaboradas porquê é  que tu achas ridículo algo que eventualmente se possa usares? O meu tempo é dedicado a criação, o tempo de um estilista é dedicado  a criação  em cima de algo feito,  são coisas totalmente diferentes, não tira o mérito de um estilista , este trabalha em cima de algo construído por uma pessoa,   mas não lhe dá o direito, nós  que passamos um ano a criar algo sejamos menos importante do que elas.

O mundo da moda levou-me a duas questões, como eu sou uma pessoa na vertente interventiva, fez de mim um dos criadores de moda menos incompreendidos no mercado nacional. Fazendo com que durante pelo menos dez a doze anos eu estivesse afastado do mercado em termos de apresentação de passarelles até que em 2011 eu resolvi aparecer e obrigar o público nacional a “levar com as ideias que eu tenho”  todos os dias, para  fazer sentir que aquilo que eu faço tem algum valor. É só nós olharmos para tudo aquilo que vem de Hollywood hoje em dia, como aquele cantor que aparece vestido de mulher e o outro de saias. Tudo aquilo que ele faz hoje em Hollywood já eu fiz em 2016-2017. 

O mundo da internet faz com que tudo que eu posto seja visto lá fora, absorvido lá fora. Mas, é transformado para um mundo do terceiro mundo, ja fiz, porque aquilo que eu faço aqui é incompreendido tem algum interesse? Não,  isto  quer dizer que nós vivemos numa sociedade totalmente deturpada em termos de análise, onde  tudo o que é feito no exterior é mais valorizado, eu já fiz duas comparações: nós fizemos aqui uma fotografia minha de 2017 e outra de 2022 com imagens  bem parecidas  onde só porque a outra é proveniente do tapete vermelho da entrega de Óscares é mais importante do que tudo aquilo que eu já fiz aqui  em Luanda, é muito complicado.

Conselhos as Gerações Actuais 

Conselhos para a geração actual ou gerações vindouras, tenho 54 anos neste momento,  não é grande coisa, mas já é alguma coisa e acredito que ter vivido até agora não faz de mim alguém menos do que os outros. Quando alguém  que tem 20 anos me diz hoje que sabe tanto ou igual a mim, isto não pode ser propriamente verdade, o que eu sei agora, isto quer dizer que eu estive 30 anos a dormir,  eu não dormi e não acredito que alguém tenha dormido e não acredito que alguém que tenha menos trinta anos do que eu saiba tanto quanto eu.     

Temos de respeitar o facto de todos estarmos a viver para realmente  aceitar e acreditar que viver é importante e das experiências que cada um tem com qualquer outro que seja mais novo do que nós, tenha a perspectiva de realizar e compreender aquilo que é a vida do outro.

Ser mais velho não quer dizer ter mais experiência, mas quer dizer de certeza que tem um bocado mais de sabedoria. A experiência e a sabedoria tem um significado  totalmente diferente, o eu viver trinta anos quer dizer que eu seja simplesmente mais sabedor do que quem vive dez anos. Experiência implica vivência diária, posso viver trinta anos e não ter uma experiência específica e outro viver dez anos e ter aquela experiência, então sabedoria e experiência são duas coisas bem diferentes. 

As gerações mais novas: vivam, prestem atenção a vida e gostava que  cada um de vocês tirassem de tudo aquilo que ouviu algo proveitoso, que tirassem algo para ensinar aos seus, algo que valha a pena para a vida. 

Experiências da vida que me tornam a pessoa que sou, não é fácil e nem é difícil, é só constrangedor. Como todo mundo sabe o Didi teve  uma vida e tem uma vida. Tivemos a falar da minha vida em termos sexuais e do que é a minha opção sexual, para eu trabalhar e viver o que vivo hoje, eu tive que condicionar uma sociedade inteira para aquilo que eu sou hoje e a minha opção sexual é a última coisa que pode ser condicionada, eu estudei como qualquer pessoa, por exemplo “conheces o Didi?” ou melhor, “qual Didi, o Panina?” Eu não sou “o panina”,  sou o Didi que estudou mais do que tu, o Didi que tem as coisas que tu não tens, qual é a parte em que a minha opção sexual é que vai me definir? O que me define é a experiência de toda a minha vida para me tornar naquilo que sou hoje. 

Este depoimento foi realizado na Marginal de Luanda, em Junho de 2023, pela equipa da Muki Produções.

Palavras chaves: Recolher Obrigatório| Cinturão da Tropa| Academia de Música de Luanda| Os Chocolates| Sheila Sirgado| Diferença entre o estilista e o criador| Opção sexual|

Transcrição do audiovisual, por Marinela Cerqueira, Julho de 2023.