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Entre Angola e a Diáspora Portuguesa e Inglesa, Carlos Leandro | Parte II

Contexto 

Este depoimento é o primeiro realizado  na diáspora angolana em Portugal, cuja Parte I está disponível na plataforma História Social de Angola[1], a Parte II é a transcrição fidedigna do audiovisual realizado em Outubro de 2023, volvido mais de um ano o depoente confirma suas memórias e partilha conselhos com a juventude da diáspora em Portugal, mas antes contextualiza a época dos retornados e a chegada de angolanos a Lisboa em 1979 durante o período de vigência do IARN. E afirma que a adaptação de angolanos em igual situação social foi facilitada pela forte cultura e valores sociais transmitidos pela família, bastante úteis para superarem os desafios e serem forjadores do movimento social africano existente hoje em Lisboa.

Trabalhar em Angola na última década ajudou a conhecer melhor as particularidades, mas está consciente dos actuais desafios que se impõem a todos nós.  

Introdução

Meu nome é Carlos Leandro, eu nasci na província da Huíla, numa pequena localidade que se chama Caconda, a sul de Angola, sou  filho de pai professor primário e de mãe doméstica. Essencialmente, a minha infância foi passada entre Caconda e a cidade do Lubango, capital da província da Huíla.  Depois, parte da minha infância e transição para a juventude já foi passada no norte de Angola, no Uíge, cidade de Carmona na altura. E parte da  juventude e vida  adulta já dividida entre Benguela e depois  Portugal.

Etapas marcantes do tempo de aluno e de estudante

Pois, a minha vida de estudante é muito ligada à vida do meu pai, professor primário. Lembro-me de ter iniciado a primária na província da Huíla. Os professores,   funcionários públicos na  altura  eram transferidos, moviam-se muito e hoje ainda creio ser assim, de um sítio para o outro e naquela altura da iniciação da vida profissional do meu pai creio que esta condição era muito mais intensa. O meu pai foi mais uma vez transferido da povoação na Huíla para a cidade do Lubango, iniciei a minha terceira classe no Lubango. E depois, mais uma vez fiz a quarta classe na cidade do Uíge. Na altura, da transição da quarta classe para o primeiro ciclo é quando se dá a entrada dos movimentos[2]  no país  e isto fez com que o meu pai e a família por força da mobilidade da  profissão do meu pai  se movesse para sul, para Benguela onde conclui  o ciclo primário. 

Depois, em consequência dos acontecimentos que todos nós sabemos, acabei por vir para Portugal  onde dei continuidade aos meus estudos.

As etapas da nossa vida são sempre marcantes sobretudo na  juventude quando nós temos maior consciência da importância da interacção social, onde nós temos a consciência cívica, política, etc. Portanto, essas fases são marcantes e foram marcantes comigo como já disse, no fundo eu vivi os acontecimentos que levaram à independência nessa fase e depois todos aqueles acontecimentos marcantes daquela etapa  do pós independência até ao 27 de Maio,eu vivi tudo isso, essas são realmente as etapas marcantes.

Depois, cingindo-me mais a etapa social é uma época em que eu estou envolvido no desporto, com aquela idade nós começamos a despertar interesse para coisas que no fundo marcam muito a interacção social, aquela questão de fazer amizades e namoradas. Naquela altura, por exemplo, lembro-me que  a cidade de Benguela era uma cidade relativamente pequena onde os meios de diversão não eram muitos. Então, tudo que se fazia vivia-se de forma intensa, estou a falar das festas típicas de famílias, falardas questões culturais, do cinema, da música e do desporto como já disse.

A importância da sua geração  partilhar as suas memórias sobre a juventude com as gerações mais novas

É muito importante, tanto é que  eu quando me foi proposto, colocado este desafio de participar neste projecto na condição em que estou a participar, eu imediatamente disse que sim porque faz parte da minha forma de estar e fui desenvolvendo esta forma de estar ao longo da vida. A importância da partilha é a responsabilidade que nós temos em deixar às gerações vindouras um testemunho e neste caso um testemunho que contribua (neste caso de uma obra que se está a edificar) realmente para que as gerações vindouras tenham contacto com a nossa história e que no fundo também é a sua própria história, o que nós estamos a passar é o testemunho e de facto abracei  logo a ideia porque acho importantíssimo.

Outras memórias relevantes relacionadas a habitação, saúde, emprego, em Angola, Portugal e Londres

Eu falar nessas memórias é falar um pouco da minha vida, do meu percurso que é semelhante a de outros, acredito que seja semelhante ao de muitos outros jovens que vieram naquela altura. Mas, cada história é uma história, quer dizer cada indivíduo vive de acordo as suas circunstâncias e eu creio que a minha história é uma história que merece ser partilhada por causa daquilo que já disse a pouco “deixar às gerações vindouras  o testemunho daquilo que é a nossa realidade”. Eu acho que nós crescemos e  tivemos o privilégio de viver a história recente de Angola de forma que diria com alegrias e tristezas porque foi assim a nossa história no pós independência. Então, tudo o que eu tive foi em função daquela Angola que foi se consolidando até hoje. Portanto, desde o trabalho até  as questões acadêmicas relacionadas com o estudo , o trabalho e a questão social se tornaram histórias que eu vivi, no fundo teria de falar da história da minha vida, não sei por onde começar.Começando pela minha infância, tendo nascido no meio rural, na vila de Caconda, aldeia e as outras povoações onde o meu pai passava, era um mundo rural, mas depois o interessante nisso é que o meu pai sendo professor tinha um papel crucial no desenvolvimento das pessoas e então eu assistia a tudo isso desde que me conheço e tenho memória como os meus pais viviam.  Por exemplo, naquela altura, sendo deslocado de uma povoação para outra eram as condições que existiam, não eram condições  de grande conforto.

E depois acompanhei também aquilo que foi a necessidade dos meus pais se afirmarem quer na condição social quer na financeira porque os salários na altura não eram grande  coisa, obviamente que ele estava no início da sua carreira. E testemunhei também a importância da minha mãe como mulher doméstica naquilo que foi ajudar a família a estabelecer-se, no fundo a pôr o pão na mesa e a ter a roupa lavada.

E depois ainda por cima, dá-se uma coisa interessante com os meus pais e costumo dizer isso,  a minha  filha ontem fez-me uma pergunta sobre a origem da família e acabei por falar nisso, “olha, que eu me lembre os teus avós nunca viveram sozinhos como casal, porquê? Porque iam trazendo familiares da aldeia deles, as irmãs do meu pai por exemplo e  outros familiares que precisavam de uma oportunidade, os pais pediam ao professor Leandro que o levasse para terem uma oportunidade, para estudar e fazerem-se homens e mulheres.

Portanto, são todas essas experiências que fazem parte dos elementos socioeconômicos do país “que eu vivi na pele” diariamente. Então como dizia, as condições habitacionais não eram as melhores, eram casas feitas de alvenaria.

Depois, havia a circunstância dos meus pais terem de fazer um esforço de se integrarem na sociedade portuguesa porque esse era o meio para serem aceites e inclusiva a nível profissional. Por exemplo, eu lembro-me dos meus pais contarem que o meu pai para ascender a uma certa categoria era obrigado a fazer um teste de cultura portuguesa, ou seja, ele tinha de provar que sabia comer comida portuguesa, sabia comer de faca e garfo. Portanto, tudo isso eu vivi e os meus pais contaram outras coisas que não me lembro, mas há provas disso.

Depois, ter mudado para a cidade também foi outra luta. A família mais numerosa, as dificuldades financeiras estavam sempre presentes e era preciso fazer um esforço enorme para alimentar todos nós e depois usufruir daquilo que é  a cidade.

Tudo isso foram experiências que eu vivi enquanto fui crescendo com os meus pais, com as minhas tias  que entretanto  os acompanharam das povoações onde eles viviam para a cidade, é esta experiência que eu vivenciei.

Pós Independência

Retornados Angolanos, 1979

Depois, dá-se a mudança para a Europa e aí claramente foi visível que muito pouco tempo depois percebemos que esse seria o nosso meio.  Portanto, o regresso a Angola  passou a ser uma miragem até porque a situação político social do país foi-se deteriorando e os nosso pais fizeram-nos assumir que aqui iria passar a ser a nossa casa, portanto teríamos de fazer o máximo de esforço possível e teríamos de nos adaptar para termos sucesso na vida teria de ser dessa forma. Então foi assim, quando nós chegamos felizmente já tínhamos cá família. A família por parte da minha mãe já cá estava, vieram naquela leva dos chamados Retornados, já estavam adaptados, eles vieram em 1974, nós viemos em 1979, já estavam adaptados a essa realidade e claro ajudaram-nos a integrar-nos com todas as condições possíveis, porque  tendo eles vindo na condição de retornados tiveram  que se adaptar a realidade  de um país, a Portugal que não é  o Portugal de hoje, hoje muito  mais desenvolvido. Naquela altura, foi justamente muito difícil e receber ainda mais  uma família de seis pessoas, também não foi fácil. Mas, é como digo, com a ajuda deles foi possível nós fazermos o nosso caminho até aqui e de tal forma  ambicionando mais em  1997 a solução foi emigrar para a Inglaterra, onde coincidentemente iniciei a minha família, casei-me cá.

Diáspora em Londres

Dois meses depois, estabeleci-me em Londres a estudar e a trabalhar, a minha filha nasceu  um ano depois, hoje tem vinte e quatro anos.  Portanto, foi outra etapa, outra realidade que constituiu uma experiência extremamente positiva porque obviamente  a Inglaterra é uma potência econômica, é um país com uma cultura forte. E depois  ainda mais, na circunstância de ser um país que acolhe muitas  comunidades, inclusive africanas, isto  foi uma oportunidade porque expôs-me a diversas culturas que me  enriqueceram muito. Hoje, eu creio que sou uma pessoa  diferente do que seria se não tivesse tido  a experiência de emigrar para um país dessa dimensão, então é tudo isso, é uma riqueza tremenda.

Escolas

Eu cheguei a Portugal, em Novembro de 1979, com dezassete anos, em termos académicos estava atrasado porque perdi dois anos em Angola devido aquelas turbulências existentes, estava atrasado em relação ao sistema português. Quando cheguei a dificuldade foi matricular-me e obviamente estando atrasado fui matriculado à noite porque já não havia vagas durante o dia,  logicamente desde logo isto constitui um desafio porque não estava habituado a essa situação. Para além do mais, a escola disponível distava da minha casa uns quilómetros, ou seja não era possível eu ir a pé, tinha de ir de comboio, eu vivia em Paço de Arcos e a escola era em Carcavelos.  Foi um pouco difícil até porque tinha receio pela segurança, mas rapidamente se percebeu que era seguro, mas foi difícil essa situação! Depois, consegui concluir um ano, mais uma vez pela idade deixei de ter lugar nessa escola e tive de ser transferido para Algés, era mais agradável e relativamente mais próximo.

Morar em  Paço de Arcos e em  Santo António dos Cavaleiros

O local onde fui habitar era o local onde os meus familiares já estavam, era uma pensão[3] que parte era ocupada pelos retornados do IARN, aqueles que estão familiarizados lembram-se do IARN. Nessa altura, os meus tios geriam parte da pensão e como eu estudava à noite os meus familiares fizeram com que eu trabalhasse na pensão durante o dia, ajudava no dia a dia da pensão e quando estudava de dia ajudava a noite na recepção de clientes e esta foi a minha primeira experiência de trabalho.

Depois, a família organizou-se e conseguiu comprar casa e curiosamente e não por coincidência, é uma questão de união de todos, as famílias compraram casa em Santo António dos Cavaleiros nesse local em que estamos hoje, os meus pais compraram aqui neste sítio e os tios e tias compraram noutros prédios aqui a volta.

E portanto,  dada essa união entre a família quando um dos primos mais velhos dez anos decidiu criar um negócio aqui em Santo António dos Cavaleiros convidou-me para trabalhar com ele, essa foi a minha segunda experiência profissional, já formal porque foi a primeira vez que descontei para a segurança social. Portanto, o meu histórico da  empregabilidade começa justamente aí, ele tinha o seu emprego e eu e a irmã dele éramos o braço direito dele nesse negócio, era uma mercearia e nós tomávamos conta dessa mercearia, durante o dia trabalhava ali e a noite estudava, foi quando conclui o 12º Ano, portanto, o meu prelúdio da minha ida para Inglaterra.

Conselhos às novas gerações

Contando essa minha  história e acredito que outros em condições semelhantes a minha também o fizeram eu acho que os jovens poderão rapidamente perceber o quão diferente hoje são as condições da diáspora portuguesa, as condições sócio econômicas desse país não tem nada haver com as condições da década de 80, houve uma evolução tremenda.

Movimento Cultural, Lisboa anos 80

Para nós, eu costumo dizer que fomos os primeiros” a iniciar esta corrente de pessoas que têm chegado constantemente a Portugal”. Costumo dizer que para nós e até em termos culturais, ajudamos a criar o movimento cultural nesse país, sobretudo na cidade de Lisboa que hoje  perpetua-se. Eu recordo um acontecimento  cultural ligado a África e a Angola em particular, eram as festas da independência, as festas da Embaixada de Angola, lembro-me das discotecas, as ditas africanas que foram um marco nesta cidade, o Kandando, o Kudissanga, o Aí o Ué, e portanto nós nos encontrávamos sempre nesses  lugares míticos.

Depois, a questão do desporto, porque nós, pessoas da minha geração, os homens sempre fomos muito ligados ao desporto e ao chegar cá deu-se essa continuidade,  assistir aos jogos de futebol do Benfica e do Sporting e aí nos encontrava-mos.

Nós demos muito ao movimento cultural de hoje que faz parte do mosaico cultural de Lisboa e não só, do país todo em geral. Portanto, se tivesse de dar um conselho às novas gerações “dessem continuidade a esse movimento que chamo cultural e também social porque o mundo hoje mudou, agora a globalização obrigou-nos a mudar”. Portanto, acho que com esse  tipo de atitude a diáspora se torna mais forte e também as ligações ao nosso país  se solidificam, isto é o que nós pretendemos.

Quer dizer que a diáspora sempre esteve ligada a Angola, a diáspora actual já tem uma vantagem, você regressou a Angola?

Eu regressei a Angola em 2012 de forma permanente, isto quer dizer que nos anos anteriores ia regularmente de férias, nunca perdi a ligação à nossa terra. O facto de ter regressado em permanência, num formato profissional, nunca tinha trabalhado na minha própria terra, abriu-me uma nova perspectiva e pela experiência em si. E nós temos sempre a tendência de comparar e nesse aspecto foi muito importante esses anos recentes que eu estive em Angola e que no fundo ajudaram-me a consolidar a ideia de que “Angola é o país e é a diáspora, isso é imutável”.

Agora também, entendo que os jovens devem fazer mais do que olhar só pelos seus interesses, constituir família, criar emprego é importante, mas é importante  também que os jovens se envolvam nessas questões em que estamos a falar e que no fundo contribuam de facto também para o desenvolvimento de Angola porque independentemente de não estarmos em Angola que é o nosso país somos todos angolanos, queremos todos o melhor para o nosso país, sabemos que nosso país  continua a atravessar dificuldades, mas só com o contributo de todos podemos ajudar e contribuir, era isso que eu queria dizer.

Eu pessoalmente, o meu contributo foi enquanto vivia em Londres, foi ter criado uma associação justamente para ajudar a preservar e até a promover a nossa cultura angolana na diáspora. E isso é algo que qualquer jovem pode fazer, qualquer um de nós pode fazer, o importante é ter a consciência que há-de contribuir com algo e esse algo é como eu estava a dizer  pode ser de várias formas, mas se nós ajudarmos a preservar a nossa cultura viva na diáspora estamos a contribuir para o desenvolvimento do nosso país .

Ainda tem esta preocupação, neste momento reside em Angola e tem iniciativas pessoais ou participa em colectivas?

Como disse isto está um pouco direi no ADN da minha família começando pelos meus pais, há pouco disse, respondendo a tal pergunta da minha filha eu disse-lhe que os meus pais nunca viveram sozinhos enquanto casal, portanto tiveram sempre a preocupação de ajudar os outros. Naquela altura, eles fizeram-no na própria terra ajudando os irmãos e familiares a saírem da aldeia para um meio mais desenvolvido. E isso teve continuidade.

Eles quando vieram para cá, particularmente o meu pai por estar em um meio acadêmico tinha  mais instrumentos para poder ajudar efectivamente as pessoas, em termos burocráticos ele sempre envolveu-se no movimento associativo cá e a minha mãe não tendo essa vertente, sempre foi uma mulher que se preocupou com o outro e ajudou sempre os familiares aqui aos membros da comunidade, ajudando-os a integrarem-se, ajudando-os nas melhores práticas para que tivessem melhor vida, portanto  nós os filhos também herdamos isso.

E é assim que recentemente criamos uma associação em Angola justamente para homenageá-los e que tem o condão de contribuir para o desenvolvimento do nosso país.

Pertence a uma família com uma tia avó que foi a anciã mais antiga na diáspora portuguesa, o que aprendeu com ela?

A saudosa avó Rita era uma figura para os outros fora do âmbito familiar porque com a idade que tinha viveu aqui todos esses anos, trinta e tal anos e era extremamente conhecida na comunidade porque era socialmente muito activa.

Ela era profundamente católica, logo frequentava a igreja, as actividades da igreja, era muito conhecida.

Depois, tinha uma característica que era interessante, com a idade que tinha morreu com 106 anos, movimentava-se muito, ela frequentava o café do sobrinho, sentava-se, conversava  com as pessoas.

De facto, eu particularmente sinto-me privilegiado por ter feito parte da vida dela, por muitos anos e ela contava muitas histórias, da sua realidade e da realidade em que ela nasceu e para mim isso foi um aprendizado “brutal”, quando ela contava as histórias eu escutava-as porque eram impressionantes. Ela tinha uma história de vida que é interessante, era minha tia avó e sendo tia avó nasceu obviamente no meio rural e só passado muitos anos é que ela foi para a cidade. Depois tem outra particularidade, ela nunca casou, e talvez por isso ela tinha tendência de “saltitar” de um lado para o outro e com isso mais histórias das suas experiências tinha para contar.

A avó Rita tinha essa particularidade de gostar de se arranjar bem. Por exemplo, gostava de comer bem, beber um bom vinho, portanto ela valorizava muito a vida, no fundo era isso, e isto foi uma experiência incrível para nós! Mesmo naquela idade em que faleceu ela recusava-se a sair de casa sem se arranjar, inclusivamente houve uma altura que eu lembro-me até pintava os lábios e poderia ser uma coisa normal, mas vindo da Avó Rita que até veio de um mundo rural, que até se expressava mal em português (passo a expressão), ter esta tendência para  o bom gosto é impressionante e um legado que ela deixa a todos. 

Após a independência muitos angolanos e portugueses vieram para Portugal, acha que no cômputo geral esses retornados foram bem recebidos? Se foram bem recebidos, foram bem integrados? Viveu experiências traumáticas?

Regra geral é um facto, os sociólogos e historiadores falam nisso, a integração dos  retornados não foi bem feita, o Estado português terá pecado nesse aspecto no cômputo geral. Da minha análise pessoal tem muito haver com dois factores: um país pobre sem recursos e um país culturalmente atrasado por força do regime que sofreu por décadas. Então, eu acho que foi mais o facto da sociedade portuguesa não estar de todo preparada para receber -nos do que propriamente nós integrarmo-nos,  eu acho que esses dois factores determinaram no fundo a nossa história e a história desse próprio país.

Então, dizer-me que eu agora a nível pessoal tive dificuldades,  tive dificuldades  sim senhora,  sofri descriminação?  Não sofri descriminação, no geral não sofri, em parte pelo seguinte:  felizmente, quando eu vim  já os meus familiares estavam cá, já estavam minimamente integrados e portanto ajudaram-me a essa integração. Depois, eu já disse isso a várias pessoas,eu pessoalmente e acredito que muitas pessoas da minha geração, na mesma condição social do que eu saí de Angola tiveram essa vantagem, nós  estávamos bem munidos culturalmente, o nosso conhecimento era forte, os nossos pais passaram-nos uma boa educação e isso ajudou-nos muito a integrarmo-nos cá. Digamos que ao chegar cá quase que sabíamos como lidar com as situações, assim que elas iam surgindo nós sabíamos, tínhamos a capacidade de lidarmos com as situações e isso ajudou na integração.

Na sua opinião, o que  poderia ter sido diferente?

A história do nosso país,  destes 50 anos é marcada pela circunstância e situação em que o país nasceu, para mim é muito simples: fruto daquilo que aconteceu em Portugal, a rotura, a queda do regime português levou a independência, fruto do contexto geopolítico a independência deu-se como se deu. Angola não foi feliz porque gerou um contexto de enorme instabilidade geopolítica como consequência económica e cultural.

Hoje, não sei se posso dizer que estamos a viver uma crise de identidade, mas o que é certo é que o que eu sinto, é que o angolano no geral não está feliz no seu país. E eu em particular, por mim aceito perfeitamente porque eu também não estou satisfeito com o meu país, poderia  ser diferente?

Sim, poderia ser diferente. Como eu disse há pouco, se o contexto em que nós ganhamos a  nossa independência, o controle do nosso país tivesse sido diferente. E portanto, volvidos quase cinquenta anos temos um país com essa crise de identidade cultural porque o país deixou de ser homogêneo. O país poderia ter sido um mosaico cultural e deixou de o ser. Andamos aqui agora a tentar colar as peças, mas dá a  sensação que é cada um por si. Muito boa gente tem vontade, no meio artístico e cultural há gente com talento incrível (acho eu), mas dá a sensação que este talento incrível não é expresso e não é  compreendido por todos. Há aqui um paradoxo, e então, quando assim é, acho que é difícil e por isso é que está a ser difícil nós termos um país onde nós  todos nos revemos. E isso  está cada vez a acontecer mais porque as pessoas estão cada vez mais a deixarem de se envolverem no seu próprio país, isso é muito triste e preocupante. 

Qual é a importância de os angolanos construírem a sua história social ?

É importante que os angolanos construam a sua própria história social por duas razões mais concretas. Eu constato que há um déficit da nossa intelectualidade, da nossa academia em produzir os factos e publicitá-los de forma a que todos os angolanos os possam colher. Por outro lado, temos a questão da nossa própria identidade africana da qual nós angolanos enquanto intelectuais creio eu está atrasada porque já assistimos hoje a um revivalismo da negritude, ou seja, os atores da sua própria história é que devem  contactar a sua história.

Eu acho que este tipo de projectos vai nessa direcção. Ficaria muito feliz e muito agradado se as instituições olhassem para este projecto com esta visão “está ali algo que pode ajudar-nos,  a nossa intelectualidade, a contar a nossa história”.

Este depoimento foi realizado na residência de Carlos Leandro, em Santo António dos Cavaleiros, em Lisboa, em Outubro de 2023.

Palavras-chaves: Diáspora Portuguesa| Retornados| Paço de Arcos| Santo António dos Cavaleiros| Revivalismo da Negritude| Movimento Cultural de Lisboa|

Entrevistadora/edição e transcrição do áudio:  Marinela Cerqueira

Publicação na Plataforma: Sónia Cançado

Audiovisual e Fotografia: Muki Produções

Duração: 55 minutos


[1] https://historiasocialdeangola.org/2022/03/31/entre-a-angola-e-a-diaspora-portuguesa-e-inglesa-carlos-leandro-3/

[2] Referindo-se aos movimentos de libertação nacional de Angola.

[3] Referindo-se a Pensão Moreira local de acolhimento de Retornados do IARN https://www.facebook.com/MunicipiodeOeiras/posts/10161109634393696/?locale=sw_KE