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A “Mãe Tuga” dos Estudantes Missionários de Angola em Portugal, Maria do Céu Amorim

Maria do Céu Amorim

Contexto

A Plataforma História Social de Angola ouviu falar da residência da Liga Evangélica de Acção Missionária de Lisboa, cujo principal papel era servir de local de acolhimento dos missionários a caminho dos chamados territórios ultramarinos, durante o depoimento de uma antiga estudante da Missão do Dondi, Ernestina Venâncio. No processo deste e de outros depoimentos ficamos a conhecer o papel deste lar, apelidado pelos antigos estudantes por Lumiar 122. Local onde se tratava parte da gestão organizacional e operacional entre as missões protestantes em Angola e o Império Colonial Português, incluindo do aprendizado de português dos missionários provenientes maioritariamente da Suíça, Canadá e dos Estados Unidos da América e também da  acomodação de angolanos, moçambicanos, guineenses e cabo-verdianos no âmbito das bolsas de estudo missionárias[1] e recebiam  apoio das funcionárias,  estas senhoras humildes entre outras relações sociais chegaram a estabelecer laços familiares com aqueles, a última  ainda em serviço é a Maria do Céu.

Esta senhora atendeu a nossa primeira chamada um dia depois de um residente da Lumiar 122 nos ceder o seu contacto telefónico. Não obstante, os pormenores do local fornecidos por Judite Lumumba e Ernestina Venâncio, o edifício não correspondia as descrições dadas, insistentemente, disse ao meu guia em Lisboa “João Leandro há tradição das joalharias se manterem no mesmo sítio e terem funcionários antigos”, pois o novo café de Lisboa tem empregados muitos novos e de outras nacionalidades.  Na Joalheria disseram-nos “agora, o Lar está exatamente na traseira do antigo endereço”. A antiga caixa de correio com o Padrão da Liga confirmou estarmos no endereço certo. Maria do Céu humildemente sugeriu a permissão de David Valente, actual gestor do Lar. Dias depois, este marcou uma audiência e assim iniciou o processo de recolha de dados de mais um do lugar de memória lisbonense, mas também da história social de Angola, da CPLP e do protestantismo em Portugal.

A Maria do Céu é uma fonte directa do passado e do presente, onde as memórias materiais e imateriais se encontram. Consegue descrever o passado e o presente do local onde os bolseiros missionários e outros protestantes residiam, faziam refeições, reuniões sociais, religiosas e provavelmente “o outro” local lisbonense onde foram forjados os nacionalismos das antigas colónias portuguesas em África e outros mecanismos da comunidade internacional protestante contribuir para o derrube do último bastião do colonialismo, acções e activismo indispensável a formação dos estudantes universitários e seminaristas que viriam a liderar a luta de libertação das antigas províncias ultramarinas e a formação de outros líderes pelo menos até a década de 1980.

A memória de Maria do Céu é rica e também simboliza as relações humanas entre os funcionários portugueses, estudantes e missionários, cujas acções representam uma outra face da história do colonialismo português e o papel destes na formação social de África.

Sempre que nos deslocamos a este lugar de Memória, Maria do Céu expressa a dedicação e o amor, nos pormenores dos seus testemunhos e na emoção incontida que se eleva. Afinal, é também a vida de uma trabalhadora portuguesa que aos dezoito anos, ainda muito jovem, recém-casada, com baixo acesso ao ensino, cuidava de jovens da mesma idade com os quais estabeleceu sentimentos maternais, fraternais e de irmandade, colmatando a fragilidade com que os bolseiros missionários africanos chegavam. A captação audiovisual desta memória transcreve o simbolismo do capital social investido na preservação deste património material português, mas integrado na história das missões protestantes nas “colónias” e no modelo desenvolvido da educação de angolanos. É nesta perspectiva de conhecer, reconhecer e preservar este capítulo da história social de angolanos protestantes que experienciamos em Portugal o recurso à memória oral enquanto ferramenta de produção de dados qualitativos de lugares de memória da história social de Angola em Portugal.

O depoimento integra a historiografia de diversas fontes, entre as quais fotografias, o livro de registo (contém endereços e mensagens), a biblioteca, o mobiliário e a descrição do antigo e do novo imóvel.

Os depoimentos se complementam, o do antigo estudante português David Valente, actual gestor da nova Residência, detalha demais dimensões na perspectiva de estudante que compartilhou o período universitário com estudantes africanos e missionários. A primeira parte deste depoimento foi recolhida durante visitas realizadas e a segunda parte é a transcrição do audiovisual, o processo conduziu a antigos estudantes para prossecução da investigação em curso.

Introdução

Eu nasci em Arco de Alverca, chamo-me Maria do Céu Amorim Vieira Gomes, trabalho aqui desde 21 de Março de 1980, portanto já estou “aqui” há 43 anos e em Março farei 44 anos. Eu estou na residência dos estudantes que pertence a Liga Evangélica, a minha função é tratar dos estudantes, recebê-los, tratar dos quartos e encaminhá-los para saberem o que devem fazer, o meu trabalho é trabalho doméstico e administrativo.

Na antiga Liga já não era assim, havia o pequeno almoço, o almoço, o lanche e o jantar, tínhamos uma cozinheira e uma outra empregada  que ajudava à tarde a dar o jantar.

Quando entrei havia cá mais de trinta estudantes, nunca tinha visto muitos africanos. Então, como diziam mal deles, que matavam e outras coisas, eu disse “eu não acredito, se estão aqui são de bem, naquilo que eu puder ajudar eu vou ajudar, eu não vou por aquilo que me dizem.” Depois, fiquei feliz porque oravam antes do pequeno almoço e ao almoço e eu aprendi muito coisa porque ler a bíblia é coisa que os católicos não fazem.

Então, vi que havia estudantes africanos, uns eram muito asseados, outros eram um pouco desmazelados. Os quartos eram divididos por três, eram camaratas e quando eles entravam explicava como deviam fazer as camas e eles “muito bem”, só que depois vim a descobrir que eles não queriam dormir nos lençóis e dormiam nos cobertores, eu dizia “não está certo”, mas eles diziam que tinham muito frio, porque a casa era muito grande e muito velha, enfim! Depois, vi que alguns “necessitavam” e com o meu pouco ordenado que tinha comprava uma fruta, sem ninguém ver, ia ajudando.

Passado muitos anos, começou a haver dificuldades porque faltavam as ajudas da Suíça e de outros países (que eu não sei quais), mas da Suíça sei. Isto começou a ir muito para baixo, a casa a precisar de obras, a gastar-se muito dinheiro e então, resolveram fechar a cozinha. Isto cada vez degrava-se mais, vieram mais estudantes e eles precisavam de ser ajudados e via que aqueles mais necessitados precisavam da minha ajuda, não com as coisas da residência “eu ia dividindo pela comunidade do meu próprio comer, o que eu tinha pelo meu salário, as roupas que me davam eu ajudava os estudantes”, gostava muito (de os ajudar). Do pouco que eu tinha ia dividindo com os estudantes… “porque dei consolo aquele filho que está muito longe mãe”.

Depois, eles falavam da cultura deles e gostava de os ouvir. Muitos choravam pela mãe, pelo pai e perguntava o que é que se passa “tens aqui uma mãe desabafava com o teu coração” e ajudava. E eu sentia-me feliz porque ia para casa cansada, mas ao mesmo tempo  ia realizada porque dei consolo aquele filho que estava muito longe do pai e da mãe, ia para casa realizada.

Eles diziam-me que eu devia ter mais filhos:

  • É bom ter poucos filhos, eu tenho um quarto para um filho e a minha vida foi sempre assim. Claro, vocês são muitos filhos deviam de ter uma médica para explicarem às mães quando não há pão para um, não pode haver para dois e para três, não há educação.
  •   É a nossa cultura.

Depois diziam a dona Céu só tem um filho devia ter mais um filho, é bom ter filhos

  •  Não é bom porque eu não tenho quarto para mais filhos, já tenho muitos filhos.

E a minha vida foi sempre assim.

Quando abriu aqui essa residência eu fiquei mais feliz porque cada um já tinha o seu quartinho, tinha a sua casa de banho, já podia dar mais apoio, fazerem as camas todas as semanas, enquanto na outra não era assim, cada um fazia a sua.

Qual o papel da liga na vida destes angolanos?

Eu acho que a importância para eles foi ter o aconchego, serem bem acolhidos, verem que aqui nós, não é porque…, houve uma vez uma angolana que disse que eu era racista e eu disse-lhe:

  • não, de maneira nenhuma se eu fosse racista não estava aqui a trabalhar, isto está na tua cabeça, não sejas assim.
  • ah mas, eu já sofri!
  • sofreste com alguém, não tenho culpa. Portanto, eu amo vocês todos, para mim não há diferença, a cor para mim não conta, porque se eu me der um golpe o sangue é igual ao vosso, não quero saber disso, eu amo a vocês todos da mesma maneira.

Depois, eles disseram “Sim, dona Céu, realmente é verdade, já reparei”.

Memórias do Pastor Jerônimo Panda

E houve uma fase em que um estudante que hoje é pastor estava mal, teve um problema de saúde. Mas antes, dele atravessar esse problema de saúde a dona Fernanda que era directora da casa na altura retirou os aquecedores todos e este estudante disse-lhe:

  • eu não dou o meu aquecedor, onde é que está o machado?

 a d. Fernanda pensou que era para rachar a lenha e disse-lhe:

  •  está aqui

 e ele chamou a d. Fernanda e disse-lhe:

  • eu vou partir o aquecedor na frente da dona Fernanda

e eu disse:

  • não faz isso!
  • vou fazer, é o meu aquecedor, eu vou partir o aquecedor a frente da dona Fernanda

e depois a d. Fernanda explicou-se:

  • eu quero tirar os aquecedores dos quartos porque estão a fazer-vos mal, estão a queimar o oxigênio, eu vou comprar-vos os vossos aquecedores a óleo para vocês terem os vossos quartos quentes e poderem dormir descansados.

Passado algum tempo, o que aconteceu com este estudante? Ele não podia mexer as mãos, foi operado, ficou sem a visão e a d. Fernanda disse “é fazer favor de ver se alguém ajuda o Jerônimo” (hoje ele é o Pastor Jerônimo Panda). Mas, ninguém o ajudou, os próprios angolanos recusaram dar-lhe de comer, fui eu que o ajudei, dei-lhe de comer a boca. Fui eu que lhe dei o banho com o consentimento da directora, ele vestiu o boxer e eu ajudei-o, dei-lhe de comer a boca.

E eu assinava os cheques quando ele pedia e eu dizia-lhe:

  • você não vê bem
  • mas, eu confio na Céu, preciso dessa importância.

Quando me veio visitar perguntei-lhe “Lembra-se quando pegou no machado e queria destruir o aquecedor? Não devia ter feito isso porque há uma providência, Deus está a ver tudo, olha “ fazer o bem e não olhar a quem” “.

Antes disso, a filha do Pastor Henrique, a Emília (que hoje está casada com o Dr. Ruben Sicato) virou-se para mim, eu estava a dar o sumo ao pai da antiga directora Maria Alice Evangelista e ela disse-me:

  • a Céu está a dar-lhe de comer porque é o pai da Maria Alice e ela é directora aqui
  • não, eu faria isso por um estudante, ele está doente

quando ela depois viu-me a dar de comer ao Jerônimo na cama ela disse:

  • Céu tenho de lhe pedir perdão
  • porquê, perdão porquê?
  • porque eu pensava que a Céu estava a tratar do pai da Maria Alice porque era branco
  • oh! Mas, o que é isso? Eu ajudo a todos porque eu amo vocês todos, eu gosto de vocês todos.

Agora, este Pastor Jerônimo veio cá há pouco tempo, teve um AVC em Angola quando estava a dar o culto, ele não pode andar bem e veio visitar-me está paralítico de uma perna e de um braço, eu disse-lhe:

  • pastor não deveria vir cá, veio visitar-me?
  • eu queria agradecer a Céu por tudo que fez por mim (comoção)
  • pastor veio sozinho, devia vir acompanhado por um filho
  • não, vim no meu devagarinho Maria do Céu

Eu desci e vi a minha carteira e disse:

  • eu não tenho mais nada, mas peguei em dez euros (só tenho dez euros)
  •  tome pastor, não tenho mais nada, é para uma ajuda, é para comprar o pão

 E dei-lhe dez euros

  •  não Maria do Céu.
  •  

Visto que está cá e em Angola não há os tratamentos que há em Portugal, ele precisa de ser tratado, de fazer fisioterapia. Graças a Deus ele conseguiu uma casa  através de uma igreja, paga a renda de uma casa e  está à espera da esposa. Mas, é como ele diz “a esposa está em Angola e sempre vai mandando algum dinheiro”, ele veio com os filhos. Ele ficou feliz e disse:

  • eu não quero esses dez euros
  • quer sim.

Quando ele foi embora, fui ao porta-moedas e o que eu vejo?  os dez euros estava outra vez lá, “estão lá”, eu disse “isso não pode ser”, eu não tinha mais dinheiro se eu tivesse mais dinheiro eu dava ao Pastor. E pensei “o que aconteceu”, eu não tinha mais dinheiro, foi qualquer coisa do além, não sei!

O que eu posso dizer? É abrir o meu coração é que eu me sinto feliz em ajudar o próximo. Sinto-me feliz quando vejo uma estudante feliz, que se deita na caminha limpinha, que tem um prato para comer.

E aconteceu outro episódio com um guineense, eu estava a comer uma canja e ele disse-me:

  • aí dona Céu, não tem aí  qualquer coisa que eu possa  comer porque eu estou fome
  • olha, tenho a minha canja, vamos dividir a canja, como vês, se não tens nojo?
  •  não dona Céu, de maneira nenhuma
  • então, senta-te aí, vamos dividir o pão
  • dona Céu, estou com a barriga tão cheia!
  • também fiquei cheia, olha meu filho assim foi Deus, Deus que nos dividiu, é como Jesus que dividiu o pão e o peixe, eu fiz a mesma coisa.

Porque sinto-me bem, apesar de não estar a frequentar muito à igreja porque deu-se essas coisas que os padres católicos estão a fazer. Porque a mim a igreja católica nunca me ensinou a ler a bíblia, foi aqui na residência que eu aprendi, aqui antes de começar a fazer o meu trabalho eu faço as minhas orações, agradeço por Deus me vigiar durante a noite e para que Deus me ajude nas minhas doenças para que possa trabalhar para que não me deixe “cair” e eu tenho encontrado isso. e tenho me agarrado muito, a Deus e tem me ajudado muito.

Os antigos estudantes realizam visitas?

Não, apenas tive notícias de um estudante que os pais estudaram aqui, os pais são angolanos, casaram e o filho no entretanto veio morar aqui, filho do Neves que o pai dele também era pastor, ele casou com a Dina e o pai dela também é pastor e o filho veio para a universidade, esteve aqui agora dois anos. Agora,  veio  o filho de uma  irmã do Neves que também está aqui a estudar, entrou no mês passado.

Os antigos do passado a única pessoa que veio visitar a residência foi a Graça (Graça Machel Mandela) que passou por aqui não me lembro bem, mas acho que foi em 1987 (vemos lá em cima no livro). Fora disso, nunca mais ninguém veio aqui saber. Veio cá o pastor Viegas e o Pastor Jerônimo, não soube de mais ninguém, tenho pena, muita pena!

Gostava muito que entrassem por aqui, que vissem as novas instalações da liga, não tem nada haver com a antiga liga, porque tinham de dividir a casa de banho por muitos, porque só tinham duas casas de banho para mais de vinte e tal estudantes. Agora pagam mais um bocado, mas é melhor, não tem refeições tem uma bela cozinha equipada, quando não sabem fazer a comida eu explico e eles vão fazendo.

Agora, aqui na residência não temos muitos africanos, temos apenas dois e para o mês que vem vai entrar um novo estudante africano.

Antigamente, cada um tinha de lavar a sua roupa e depois eu disse “não, eu vou lavar a roupa” e eles diziam “não, eu tenho de a lavar”. Agora, poupo mais água e electricidade a Liga e explico como é que se arruma a roupa. Porque muitos eram um pouco desmazelados, misturavam roupa transpirada com roupa limpa, eu ia aos quartos e dizia “não, não é assim, faz assim!” e eles começaram a aprender, porque nem todos em Angola tinham empregada? Vinham de lá longe, alguns só com a roupa do corpo, muitos deles vieram assim, um deles da Guiné veio que nem um pente tinha para pentear, eu é que lhe arranjei um pente e um pijama, no entretanto foi falando com certas pessoas e fui ajudando, hoje é diferente.

Tenho muita pena do Mário que está em Angola, é professor, tem aqui coisinhas deles.  Ele ajudava na igreja da Pastora Sitanela, ele toca órgão e ele disse-me “Dona Céu eu não posso pagar a Liga, por favor arruma as minhas coisas”. Eu dobrei tudo muito bem, arrumei as coisas dele, não pus ao monte, deixou os seus cobertores e quero falar com ele e se ele não conseguir levar os cobertores e as mantas que fique para a Liga. Mas se a Liga por acaso desistir, eu tenho a mãe de um estudante que veio de Angola com três crianças pequenas, eu vou dar essa roupa a essas crianças que vieram de Angola, eu vou dar essa roupa se ele consentir, para agasalhar essas crianças que vieram de Angola, não quero nada para mim, é para ajudar outros, mas se ele consentir vou dar, tenho muita pena do Mário porque ele ajudava-me muito. Não tenho mais nada de mais ninguém.

No entretanto, temos pessoas dos Açores, do Algarve, estudantes que se sentem bem aqui porque agora já não alugam quartos, alugam camas. E aqui não, tem comunidade, tem aqui salas, tem cozinha, tem a casa de banho que é muito importante e chegam a segunda-feira deitam-se numa cama limpa e asseada.

Não posso falar mais de outras coisas porque não é da minha competência.

Lembra-se do cotidiano dos bolseiros missionários?

Eu entrei aqui em 80, mas o que me contavam[2] é que havia as reuniões, jogavam, tinham uma mesa para jogar com aquela bola (já não é do meu tempo, eu vi fotografias) faziam os serões, a casa tinha uma caldeira e em cada apartamento havia o aquecedor a óleo, tínhamos de ligar a caldeira para aquecer a água e aquecia os tais aquecedores e eu ligava a caldeira à noite para ficarem com os quartos quentes e água quente.

O Natal

No Natal é que era mais bonito, estavam até a meia noite, depois abriam os embrulhinhos, havia os presentes à meia noite e havia o presente ou amigo secreto, chamavam “o amigo secreto”, havia o nome de todas as pessoas. Eu nunca assisti porque tinha o meu marido e o meu filho e nunca podia assistir, mas contribuía para isso, saía-me um nome e punha o presente, era muito engraçado e depois contavam-me.  Fazíamos batata doce e a carne assada, acendíamos o fogão grande que era a lenha. Eram coisas muito bonitas, tanto é que os últimos estudantes diziam “havia de ser todos os Dias Natal” e a dona Fernanda dizia “pois é, mas para ser Natal todos os dias vocês tinham de contribuir, mas vocês enfiam-se nos seus quartos. Antigamente sim, “arregaçaram as mangas”, os estudantes ajudavam, vinham descascar batata, lavavam a louça e ultimamente já não “as empregadas estão aqui que façam” e não podia ser assim.

Mensagem para os estudantes novos com base na convivência com os antigos estudantes?

O que eu quero dizer é o seguinte: os estudantes de agora são mais comodistas, têm lixo no quarto não querem saber. É mais estarem no quarto deles, fechados, levam a comidinha e vão para o quarto e podiam comer aqui, juntarem-se todos e comerem em comunidade, não é fugirem como os ratos e eu digo “para que levas o prato para o quarto, o que vai acontecer? Tu a noite vais dormir e terás o quarto a cheirar comida, não tens necessidade, come aqui, tens aqui uma salinha, se não queres comer sozinho, come comigo aqui na cozinha, não tens de fugir, eu faço-te companhia, tens um amigo para comer contigo, traz o teu prato para comer comigo, tudo bem, não o leves ao quarto para comer, comunica, não”. 

Estão a cozinhar, deixam a cozinha numa bagunça deixam cair comida para o chão, trazem a loiça suja deixam na cozinha e eu tenho de estar a escrever papéis, aquecem a comida, deixam o micro-ondas todo sujo e tenho de escrever papéis porque não sei quem foi; enquanto, os antigos não eram assim, eu chamava atenção, dizia e eles cumpriam, ajudavam. Houve um último estudante que os pais estiveram aqui a estudar que já trazia a roupa cá para baixo. Não custa nada, eu já não tenho vinte anos, podiam dizer “não, a dona Céu não pode, não é o facto de estarem a desfazer a cama que isso não me intressa, era trazerem a trouxa da roupa, mas trazerem o lixo do quarto” e não custava nada. Eu já caí aqui na residência, já rolei por escadas abaixo, compreende?  E agora pelo facto de ter sido operada aos pés tenho mais dificuldade a andar, a visão vai faltando.

É isso que eu quero passar, que não estejam só agarrados a tecnologia, há coisas muito modernas, certo, mas fazer a vidinha.

  • mas, oh dona Céu eu não tenho tempo, levanto-me muito cedo
  • calma, Deus dá-nos o tempo de graça, temos de saber organizar, eu levanto-me às seis da manhã, tomo o meu banho, faço a minha cama, deixo tudo organizado, deixo o almoço do meu marido. Eu chego a casa à noite e tenho de fazer o comer para os netos, faço tudo, eu chego aqui faço a minha obrigação, qual é a vossa? eu entro em quartos eu vejo uma bagunça, o que é isto?
  • mas, oh dona Céu mas eu não tenho tempo
  • não tens tempo porquê? o tempo é de graça, estás agarrado ao facebook, o tempo vai rolando, passa, ou a fazer as unhas ou a pôr a base na cara, ou a pôr os cremes, o que interessa isso?

Temos de ter outra beleza também porque organizar um quarto é uma beleza e já lhes disse que educação das crianças, de um jovem, vê-se numa casa e numa cozinha, se quando chegam aqui fazem bagunça é porque não foram educados, e eu disse quando vier o pai ou a mãe eu tenho de falar com eles, é porque não estão preparados para isso, porque eles não vieram preparados para entrarem numa residência “o quarto quando eu saio, podem fazer tudo” o espaço comum é para ser respeitado, quando vier cá o pai ou ha mae eu tenho de falar com eles.

  • Temos de saber organizar, eu chego aqui faço a minha obrigação e qual é a vossa?
  • não tenho tempo
  • não, não tens tempo? porque ver uma jovem embrulhada em um robe aqui no sofá, não tem jeito, o que é isso, não, é no quarto que tens de dormir não é aqui, porque organizar o quarto é uma beleza!
  • oh dona Céu não posso dormir no sofá?
  • Não. Podes dormir no teu quarto, o teu quarto está limpo, porque é uma sala de estar, o que é isto? Não, é no quarto que tens de dormir.

É só isso que tenho de passar a eles.

Conhece outros lares de estudantes africanos?

Só ouvi dizer que a residência Santa Teresinha que é aqui na Alameda da Linha das Torres acolhem sim, mas eu acho que é mais para professores e também quem sobe a Rainha Dona Amélia, mas aquilo tem a ver com a universidade.

Tivemos aqui uma estudante da Nigéria, o que aconteceu com ela? Eu tive pena dela, ela entrou feliz da vida porque foi acolhida e eu ia de férias, disse-lhe:

  •  eu vou de férias, quem é que a mandou cá?
  • foi Deus que me enviou para aqui”.

Veio através da GBU, eu apresentei-a um ou dois que estavam cá.

  •  mas aqui há regras, faz isto
  • Está bem dona Céu.

Vinha toda tapada, acontece que esta menina da Nigéria meteu mais duas pessoas, uma indiana que dizia que o marido ou o namorado lhe batia e vivia em um quarto. Ela teve pena dela e meteu-a para casa. Quando eu cheguei de férias, o que eu encontro? Entrei mais cedo e encontro a banheira em um estado lamentável, tudo muito sujo, lamentável, tudo muito sujo, a cozinha não queira saber:

  •  o que ́ é isto? a roupa está muito suja
  •  Dona Céu eu não sabia
  •  não sabia? Então você toma banho e não lava a casa de banho, o que é isto menina, aqui há regras.

Ela meteu aqui uma estudante e estava a receber o dinheiro para pagar o quarto, não podia fazer isso, isso não se faz, lia a bíblia, estás a ler a bíblia e como é isso?

Veio cá visitar mais de uma vez, queria voltar. Não é possível, foi cortada da residência por este motivo. Mas, ela vem cá visitar-me e é a única, ela está agora a estudar na universidade a estudar design e ainda tem cá coisas guardadas e ela está em Santa Maria há uma casa onde acolhem estudantes de enfermagem e ela está lá em um quarto e está a pagar 350 euros. Ela, entretanto, foi aprendendo aquilo que eu lhe disse e ela disse “é a nossa cultura”, é a vossa cultura! Mas, aprendeu muita coisa.

Outra coisa, elas choram e eu digo “não chora querida, o que te tenho a dizer, tenho que dizer de frente isto vai te servir para a tua vida futura” e ela hoje (a da Nigéria) veio cá, agradeceu-me diz-me “a dona Céu abriu-me os olhos e obrigada, não vou esquecer a mãe Maria do Céu”.

Todos eles chamam-me a “mãe tuga”, eu não sei o que quer dizer, quer dizer mãe portuguesa, é isso?  E eu disse “eu amo vocês todos meus filhos”. Eu fico feliz quando ajudo, ajudo tudo, seja angolano, seja guineense como eu já disse, indiano…

Eu estou a sofrer, esta guerra. Apetecia-me entrar pela televisão adentro, abraçar aqueles bebés, ajudar, andar descalça, não me importa, apetecia-me tudo, andar descalça, não me importava, eu queria ajudar (comoção).

Este depoimento realizado no Lar da Liga Evangélica de Acção Missionária de Lisboa, Lumiar, Lisboa, Outubro 2023.

Audiovisual: Muki & Produções

Entrevista: Marinela Cerqueira e Jorge de Palma

Revisão e Edição: Marinela Cerqueira, Sónia C.

Palavras Chaves: Liga de Acção Missionária de Lisboa| Pastora Idalina Sitanela| Fotografias| Livro de Registo| Mensagens de Estudantes| Maria Alice Evangelista| Graça Machel|


[1] Ouvimos o termo pela primeira vez durante a colecta da memória da antiga estudante Eunice Foreaid

[2] Na parte II Maria do Céu historiografia fontes de memória  entre as quais fotografias, quadros, mobiliário e episódios descritos pelas suas colegas e pela Maria Alice Evangelista.

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