Comecei a estudar em casa por ser filho de professor primário. Em 1969 fui aluno primário da escola onde o meu pai lecionava. Na época, o meu pai mais uma vez foi transferido da cidade do Lubango, capital da província da Huíla, para uma pequena localidade onde o edifício da escola tinha lugar de destaque em conjunto com dois outros edifícios, a administração e a igreja. Nesta escola frequentei a Pré Primária com o meu irmão mais velho Rui Leandro que frequentava a primeira classe. Íamos para a escola e regressamos a casa com o nosso pai. Dois anos depois, frequentei a segunda classe no Lubango, cidade para onde o meu pai é transferido pela segunda vez. No início de 1972, o pai é transferido para o Uíge onde frequento a terceira e a quarta classe e acaba a experiência de ser aluno do meu pai. O ensino primário foi marcante porque para além do meu irmão e eu sermos acompanhados pelo professor-pai, servimos de “cobaias” para a preparação da aula e muitas vezes não podíamos ir brincar com os amigos. Concluo a quarta classe na cidade do Uíge no período em que os movimentos de libertação nacional chegam aquela cidade.
Frequentei o ensino secundário na cidade de Benguela. Nesta fase de conflito armado surge a escassez de material, de professores e a interrupção das aulas, uma fase turbulenta que de certa forma interrompeu o trajecto usual do ensino. Era também a idade da socialização durante a qual passo a intercambiar com os colegas e professores, adquiro consciência política e inicio a prática desportiva, um pouco inspirado pelo trajecto dos basquetebolistas nacionais. Esta era a época do desporto, das festas e das namoradas, nesta fase desconcentrei-me um pouco dos estudos, pois a intermitência das aulas devido a guerra provocava passarmos longos períodos sem aulas e fora de casa, influenciando a baixa motivação.
Ainda em Benguela frequento o Liceu, em um edifício emblemático restaurado e alargado. É um mundo novo, já estou no oitavo ano quando os professores cubanos chegam a Angola e os professores dos países do leste, nomeadamente, búlgaros e jugoslavos. Para mim funcionou como uma introdução ao cosmopolitismo, a experiência com os professores estrangeiros, naturalmente uns mais abertos, outros mais reservados pela inerência do contacto com o velho continente e com um país em conflito armado.
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Em 1979 chego a Portugal aos 17 anos de idade, obviamente a questão da continuidade dos estudos foi uma condição sine qua non para os pais e para os familiares que nos acolheram. Muitos jovens interromperam os estudos para trabalharem, não foi o meu caso, fui logo matriculado. O mundo escolar de Portugal Continental passou a ser uma nova realidade, bem como as múltiplas dificuldades financeiras inerentes à migração de algumas famílias angolanas. Os nossos pais enviaram-me primeiro para evitar os riscos de vida do serviço militar obrigatório recorrendo a escassos recursos financeiros, fui acolhido por familiares que também não tinham muitas condições financeiras. Fiquei matriculado no período noturno, ficando com muito tempo durante o dia, então os tios organizados e proactivos trataram de imediato de preencher este vazio. Eu vivia com os meus familiares e outras famílias numa pensão alocada pelo IARN[1], tendo alguns dos meus familiares o mérito de serem indicados para a gerência desta unidade hoteleira onde tive a minha primeira experiência de trabalho. Estava encarregado de receber os clientes no horário entre o regresso da escola até a uma hora da manhã, também me ocupava de pintura e de outros pequenos serviços. Esta experiência de trabalho ajudou-me a perceber que a vida é feita de dificuldades. Passado um certo tempo, os familiares preocupam-se com a distância da escola para a casa, trajecto não muito recomendável sobretudo para um jovem recém chegado de Angola, percorrer a noite o caminho de Carcavelos a Paço de Arcos. No segundo ano fui matriculado em Algés. Já mais adaptado à realidade da cidade de Lisboa, tive bons professores que me receberam muito bem.
Na minha sala de aulas não senti o racismo que se falava existir em Portugal. Acredito que a aceitação depende grandemente da forma como nos apresentamos. No meu caso, vinha bem preparado de Angola, tinha uma cultura geral elevada e juntamente ao gosto pelo desporto, pela música e até pela política eu suscitava o interesse das outras pessoas, elas gostavam de conversar comigo. Foi fantástico porque podia expressar-me e falar sobre África com eles, dava-me uma satisfação enorme, eles pediam-me para falar de África! Os colegas deram-me a alcunha de “Funky” porque dançávamos e gravamos música em casa de colegas, ainda hoje tenho amigos deste tempo.
A vida da minha família sempre foi um pouco nómada, pois passados o período 1979-82 na linha de Cascais, finalmente os meus pais compraram uma casa em Sto António Dos Cavaleiros, Loures. Em família fomos obrigados a tomar uma decisão que passou por ter de estudar de noite, pois tinha que trabalhar de dia , uma vez que o pai chegado de Angola há dois anos, perdeu o emprego e ao estabelecer se em Lisboa viu-se obrigado a atravessar um longo percurso para readquirir a função de professor. Durante este tempo e em função desta realidade conclui o 12º ano de escolaridade, nunca mais voltei a estudar de dia!
A minha terceira experiência em instituições de ensino teve lugar no Reino Unido. Casei-me e decidi emigrar para Londres onde vivi 15 anos até 2012. Em Londres, decidi estudar o Inglês por reconhecer no aprendizado da língua uma das formas de integração naquele país. Foi fácil aprender o inglês por ter optado por esta língua internacional durante o ensino secundário e no liceal, já estava familiarizado com a língua devido ao gosto pelo cinema e pela música, a língua inglesa sempre esteve presente na minha vida.
Em Londres dá-se a segunda experiência de emigração, desta vez o foco foi sempre o trabalho em busca de melhores condições financeiras para a família. O contacto com o público no local de trabalho facilitou o aprendizado da língua ao casal. Cinco ano depois, decido retomar os estudos visando alcançar o sonho do curso superior, honestamente mais na ideia de acomodar os sonhos do meu pai, pois meu avô paterno enquanto catequista da aldeia natal Tchilanda foi durante muitos anos o único veículo do ensino colonial e da cultura portuguesa, tendo sido sucedido por meu pai, o professor primário António Leandro. Enveredei para o curso de recursos humanos para adultos orientado para negócios e organizações de empresas, realizado em três anos, em regime de forma aberta na Universidade de Birbeck. Esta foi uma experiência fabulosa em termos de convívio acadêmico porque foi possível interagir com pessoas de várias nacionalidades, vários interesses e várias formações, guardo com muito carinho a memória destes tempos. O aprendizado está sempre na mente deste filho de um professor primário. Enquanto vive em Londres liguei-me ao terceiro sector e bem organizado como é o Reino Unido tirei partido, fazendo várias formações. Também a empresa de catering onde trabalhei permitiu fazer várias formações até hoje valiosas na minha vida prática.
Em 2012 regressei a Angola ingressando em um projecto empresarial familiar e frequentei a formação para empreendedores no INAPEM. Enveredei pela carreira de gestão de hotéis pela oportunidade, onde me apercebi do valor das formações realizadas no RU, tendo passado pouco tempo depois a Formador, formei quadros que continuam a obter bons resultados. Em 2018 surgiu a ideia de me tornar um formador certificado. Para tal, dirigi-me a um Centro de Formação Profissional em Luanda e passo a frequentar uma formação pedagógica de formadores de formadores.
A data do depoimento Carlos Leandro reside entre Angola e Portugal, envolvido em projectos sociais familiares e em consultorias em ambos países enquanto alternativa sobretudo para apoiar a sua mãe e a tia avó Rita com 105 anos, anciã mais idosa registada no consulado de Angola em Portugal. O adolescente da diáspora angolana em Portugal nos anos 80 e o jovem emigrante no RU nos anos 90 ainda têm como lar a residência familiar em Santo António dos Cavaleiros Cidade Nova onde a família materna ocupa outros apartamentos no mesmo edifício e em Angola viaja entre a terra dos pais, a aldeia da Tchilanda e Luanda.