Reformada da OMA, com vasta experiência no aconselhamento de casos de violência doméstica, de uma família numerosa e tradicional de Luanda, criou a sua família nas cidades do Uíge e Menongue até à fuga desta cidade para Luanda. Esta bisavó de 79 anos tem muito para contar e aconselhar com base na sua experiência de vida e de trabalho, acompanhou a progressão da violência doméstica tendo participado directamente na resolução de vários conflitos familiares e intergeracionais.
Durante a colecta e tratamento das suas memórias esta veterana da defesa dos direitos da mulher, da criança e da família tradicional angolana expressou orgulho pela trajectória das mulheres que nos primórdios da independência abraçaram estas causas e cujo desempenho social contribuiu com experiências e soluções práticas para a elaboração do Código da Família angolano, tendo encorajado o HSA a prosseguir a divulgação da história social de Angola e a título de exemplo indicou outras duas grandes activistas do sector social nacional, a Boneca Feio e Maria Rufina Ramos da Cruz.
Sua carreira profissional contou com a aprendizagem com as comunidades e beneficiou de várias formações (alguns dos certificados constam destas memórias).
Eu chamo-me Maria Cristina José Carlos Vasconcelos, sou natural de Cabinda. Nasci em Cabinda, vim pequena e cresci em Luanda, estudei na escola nº 8, Emílio Monteverde no Kinaxixi e estudei também na escola nº 7, Sousa Coutinho, aquela ao pé do Governo Provincial, esta foi a minha trajetória até chegar à escola industrial. Recordo bem as minhas actividades com os colegas no tempo da instrução primária, participativa, comunicação, havia mesmo uma solidariedade e irmandade em que as professoras tinham muito carinho para connosco, aquele respeito de saber educar e educar, eu bebi daquela água e agradeço. Foi um tempo bonito, o convívio, não só com os meus colegas, mas também com o pessoal, aquele trabalhador, a senhora da limpeza, o “contino”, tinha que haver respeito para que eles também cuidassem e pudessem olhar por nós.
Período Colonial
A experiência do funcionalismo público
Casei-me em Luanda, depois fomos para Uíge, Cuando Cubango com os filhos, na altura tinha cinco filhos, quatro e um de criação, tinha um agregado familiar grande, cinco crianças e três adolescentes, duas sobrinhas e uma cunhada. As transferências do funcionalismo público no período colonial levaram a minha família de Luanda ao Uíge e ao Cuando Cubango até ao falecimento do meu esposo.
No início trabalhei no 1º Cartório, o meu marido era funcionário público, posta em Luanda vindo de Cuando Cubango, estava inserida no MPLA, na organização, daí convidaram-me para ir para a OMA, comecei a trabalhar, mas não sei como é que eu fui parar a este departamento, a minha chefe, a D. Rufina Ramos da Cruz convidou-me para lá ir e a partir desta data comecei a viver aquele momento, gostei do trabalho que me foi digitado, lidar directamente com a sociedade, com o povo, abracei esta causa durante 30 anos, trabalho árduo, bonito… eu sinto-me bastante valorizada, não quero que ninguém me elogie porque sei o trabalho que fiz.
O meu marido na altura era funcionário do notário, era terceiro ajudante, nestas terras as pessoas davam valor à posição da pessoa. Conhecemos um fazendeiro, um sujeito branco, levou-nos para ir passear, fomos conhecer a sua fazenda e a dada altura ele aponta uma parte toda branca, perguntou-me se sabia o que era, respondi que era cal e afinal era pó talco, fiquei admirada porque para mim tudo vinha de fora, nunca pensei que aqui teria aquilo, despertou-me muito a mente. O que mexeu mais comigo foi a viagem de carro de Luanda ao Uíge, falava-se muito em terroristas, paramos antes de chegar ao Uíge, fiquei com muito medo de sermos atacados.
25 de Abril de 1974
Quando se dá o 25 de Abril eu estou no Uíge, não sabia o que era, havia pessoas amigas que falavam dos movimentos entre os quais do MPLA e eu comecei a ouvir falar sobre os estatutos do MPLA. Ao ler o estatuto, percebi que o papel da mulher não se limitava no social, mas ocupavam um papel preponderante na guerra. Também tomei conhecimento de um grupo de mulheres que pertenciam ao esquadrão Cami, não percebi, mas sei que eram mulheres e por ler aquilo gostei e comecei a conversar com outras pessoas, ainda cheguei a participar numa reunião com alguns amigos nossos no Uíge e fiquei com “a pulga na orelha”.
Só me enquadrei na OMA no Cuando Cubango, no Uíge tive conhecimento do papel destas camaradas, do que elas estavam a fazer e quando se dá o 25 de Abril fiquei com medo, porque a PIDE já andava por lá e pensava “será que eles sabem?” e já o meu marido tinha ido para Cuando Cubango, mas felizmente não aconteceu nada e depois eu fui com a família. No Cuando Cubango foi onde eu me enquadrei, fiz parte de uma reunião, houve uma assembleia onde indicaram-me para dirigir a OMA, no princípio chamavam de coordenadora, agora chamam de secretária. Comecei o meu trabalho para a OMA em 1975.
Coordenadora da OMA no Cuando Cubango
O que me motivou a assumir este cargo, foi a forma como se falava nas reuniões, falava-se em ajudar as mulheres, era preciso mulher despertar, ter as suas próprias convicções e também podermos aparecer um dia na sociedade, mas o principal objectivo era tirá-las do analfabetismo para aprenderem a conduzir as outras mulheres e a sociedade em si. Praticamente fazia de tudo, era responsável pelas finanças, como eu sabia coser e tinha máquina de costura, recordo-me de fazer os primeiros galhardetes, as bandeiras que usávamos, ajudei a fazer estas insígnias com um grupo de senhoras que eu orientava.
No Cuando Cubango consegui leccionar as crianças do nosso comité, ajudá-las, dava-lhes aulas, consegui os matricular. Enquanto não tinham vaga na escola arranjei um quadro para o Centro da OMA onde elas iam estudar e mais tarde com um grupo de senhoras professoras começamos a dar aulas as adultas e fui fazendo este trabalho em prol da nação, naquela altura estávamos na euforia e eu abracei esta causa.
Pós Colonial
A Violência Doméstica em Luanda
Em Luanda dei continuidade a este trabalho, mas não na vertente de mobilização, vou para outro departamento, primeiro estive na administração e finanças e depois passei para o departamento de violência doméstica, por isso a nível de trabalho não senti diferença de uma cidade para outra, apenas fui para outro escalão.
Nós na OMA vivíamos todas as situações, recebíamos de tudo, situações com adultos, crianças abandonadas, maltratadas, sem conforto, mas tínhamos ligação com os outros órgãos, por exemplo com o Instituto Nacional da Criança (INAC), quando recebêssemos alguma criança, primeiro ouvíamos e depois as dirigíamos ao órgão competente, não resolvíamos os problemas das crianças, acompanhávamos o processo de resolução.
A Reinserção Social solicitava o nosso parecer e só depois resolviam as questões. Também tínhamos advogados, eu era conselheira, recebia, atendia, preenchia uma ficha com os dados pessoais de ambas as partes e também continha as deliberações finais do caso, se fosse alguma coisa que eu pudesse aconselhar, empregava toda a minha força, mas se fosse alguma coisa que ultrapassasse as minhas capacidades entregava o caso ao advogado, se fosse necessário enviava para a psicóloga, este era o método de trabalho lá no centro. Contudo havia muitos casos complicados que eram encaminhados para o tribunal, o órgão competente para a decisão, porque a OMA não decide, tem como objectivo apaziguar, aconselhar e nunca decidir.
É importante dizer que a OMA fez de tudo para que este centro, inicialmente designado como Centro de Aconselhamento e depois como Centro dos Direitos das Mulheres fosse reconhecido, com que a lei da violência doméstica fosse aprovada. Esta lei foi aprovada para podermos ajudar as mulheres e não só, porque muitos homens também são vítimas de violência doméstica e procuram o centro.
Casos de Violência Doméstica
Alguns casais deram-me muito trabalho, outros souberam solidarizar connosco… para podermos interagir é preciso a pessoa ter muita calma, saber escutar, porque neste trabalho somos apartidários, somos as fiscais de linha (como no futebol), para podermos tirar conclusões, poder ajudar a pessoa que fosse ao nosso encontro, porque só iria ao nosso encontro quem tivesse problema, podia ser físico como moral, a violência não é só física, é também psicológica, este era o nosso trabalho. Eu tinha o meu grupo de apoio, trabalhava com advogados, psicólogos e neurologistas, foi uma experiência boa, tive muitos apoios, entres eles da Dra. Maria do Carmo Medina, que me ajudou muito neste aspecto, foi professora catedrática, fez parte do Processo 50, era advogada e trabalhou durante muitos anos em prol desta causa, foi o meu grande suporte.
Lembro-me do caso de uma menina que contou uma história distorcida e eu que fui a favor, quando chamei a outra parte, não foi nada do que ela me disse. Por isso, chamo atenção as meninas para terem muito cuidado nos relacionamentos, saber como se envolver, conhecer o parceiro e aprender a conhecer. É muito bom nós sabermos escutar e por vezes devemos calar.
Outro exemplo, teve lugar durante o período do julgamento do Processo 50, dias antes tinha apanhado uma criança, uma jovem, vinha da OMA por volta das 19h30 perto da Maternidade da Sagrada Família, a miúda abordou-me e disse que estava perdida, entretanto deixei-a em minha casa, mas estava sempre a perguntar-lhe se sabia o caminho para a casa. Uma vez a menina estava no quintal, veio uma vizinha e diz “esta miúda esteve em casa da minha filha e fugiu”, a senhora levou-me a tal casa perto do sítio onde a encontrei, comecei a apertar muito com ela até que um dia indicou a casa dos padrinhos que ficava na marginal onde a deixei ficar, mas a “maka” vem agora… meses depois a madrinha vai-me bater a porta e diz-me assim “preciso falar consigo, vão a minha casa, a senhora, o seu irmão e mais alguém”, fui lá saber e ela me diz que a menina tinha sido engravidada pelo meu irmão, eu aceitei, perguntei ao meu irmão e aceitou assumir e ao aceitar foi porque algo fez. A criança nasce, o meu irmão assume, mas nós tínhamos um procedimento… depois a miúda foge com o bebé e já lá vão 30 e tal anos. Entretanto chamaram-me na PRG, perguntaram pelo senhor eu respondi que já tinha falecido e que era adulto e quem deveria responder era ele, mas alguém me disse uma coisa “não é bem o que vocês pensam nem o que vos disseram…” este um caso foi directamente relacionado comigo.
Outro caso foi o de uma jovem que foi para o centro, chamou-nos de analfabetas, estava com uma senhora mais velha, veio um jovem muito educado, gravei os dois nomes, o senhor disse-nos “eu nunca deixei de assistir a menina, a minha irmã é hospedeira e a minha mãe trabalha na Soares da Costa”, logo ela apoiava aquela neta e ele dava-lhe mil dólares… chamou-me de incompetente,” se vocês não podem mandem para o tribunal”, o jovem vira-se para ela e diz “oh Maria vai trabalhar, é o que tu menos gostas de fazer”, então lembro-me muito desta frase dele. O nosso dever é o seguinte, se conseguirmos reconciliar, fazer com que se resolva as coisas, chegam a um consenso e tudo fica gravado, com fichas devidamente preenchidas, mas como ela pediu, encaminhamos o processo para o tribunal e saí vitoriosa, ela saiu a perder porque o tribunal não manda dar mil dólares.
Tivemos o caso de uma moça jovem que aceitou um rapaz para namorar, rapidamente quis casar e ele estava contaminado com o HIV-SIDA, depois de sete meses ele morre e os familiares querem tirar-lhe os pertences, mas quando ele morre ela não sabia da doença. Nestes casos nós temos que apresentar queixa a DNIC para que não lhe fossem retirados os bens, passado algum tempo ela começa a sentir-se mal, fez os exames e no dia de receber os resultados pediu-me para acompanhá-la e os resultados confirmaram que estava infectada, ele sabia, todos os familiares sabiam, fiquei muito triste com esta situação, não consegui permanecer na sala e tive que sair…
Mas, a pior coisa para mim foi uma menina pequena que o pai a punha toda nua numa banheira com rosas, por incrível que pareça, queríamos privar este pai de estar com a filha, mas o tribunal autorizava que ele fosse buscar a filha aos fins de semana, deu muito trabalho privar o pai de ver esta menina, foi uma luta muito grande, mas conseguimos.
O facto de não poder demonstrar os meus sentimentos à frente das pessoas mexia muito comigo, por isso continuo a dizer que temos que ter muito cuidado e estar atentos a tudo. Uma vez tivemos um encontro com uma delegação da Suécia em que a promotora perguntou-me “oh dona Cristina, a senhora costuma fazer consulta com uma psicóloga?”, respondi que não e ela disse haver a necessidade desse acompanhamento porque estes casos mexem convosco todos os dias durante 365 dias do ano, fiquei a pensar no assunto, mas hoje reconheço, mas tinha que fazer o meu trabalho, abracei e adorei muito, porque sei que dei de mim e também recebi, a maneira como eles contavam as suas histórias, a forma como reflectia sobre o assunto, eu dava o meu número para ligarem a qualquer momento, o meu número é conhecido internacionalmente.
Eu tinha um método de abordagem diferente, gostava de falar com os pais, com os padrinhos de casamento e eu nunca aconselhava que os pais falassem com os filhos, só os padrinhos, é isso que eu procurava fazer… mas vou-lhe dizer uma coisa, uma vez apareceu um casal com os padrinhos, olhei para eles e pensei “o que é que estes jovens têm a dizer?”, mas o miúdo foi muito íntegro, gostei da abordagem, da explanação dele, uma coisa linda e disse a ele “então vamos trabalhar em conjunto, vamos conseguir fazer deles um casal feliz” e por acaso são, têm um casal de gémeos a quem deram o meu nome e o nome do padrinho.
O meu trabalho era assim, tinha momentos felizes e outros menos, mas é preciso ter atenção porque há muita violência. Quando comecei a fazer este trabalho pensei que ia receber apenas pessoas da periferia, pessoas que não têm nada, não têm educação, mas afinal enganei-me, começaram a aparecer os senhores de “colarinho” e perguntava “como é possível?” eu dizia “não basta só registar o filho, tem que sustentá-lo, procura o menino, conversa com o filho, vai saber do aproveitamento do menino na escola”, acompanhar o crescimento daquele filho, mas eles não querem fazer isso e eu admirei-me bastante porque apareciam muitos pais assim e nestes casos encaminhávamos para o tribunal e muitas das vezes não saíam soluções boas.
Isso para a ver a carga trabalho existente, por isso é preciso muita concentração, muitas vezes tínhamos de esquecer das nossas vidas para poder ajudar os outros, este é o principal factor, nunca tirar proveito, nunca defender… abracei esta causa, sem formação, quero aqui dizer que quando fui trabalhar não tinha formação, as formações apareceram depois, daí está a minha vaidade profissional e digo com todo o orgulho “consegui fazer o meu trabalho sem ser formada em direito, nem psicologia, em nada”, trabalhei com o meu coração e inteligência, recordando sempre a educação que recebi.
Primeiro ponto, a educação, saber transmitir às pessoas que fossem ao nosso encontro, saber conversar com elas, mostrá-las cada dia é um dia e o passo que devem seguir… é a minha vaidade! E volto a repetir, é isso que temos de fazer com as nossas meninas, com os nossos filhos, devemos sempre conversar com os filhos e vice versa, por isso quando este diálogo não existe…, se os pais estiverem brigados os filhos tiram partido e vão a cara dos pais, deve haver cumplicidade, eles têm de ser apaziguadores e quando isso não acontece, depende de vocês que não deram oportunidade aos miúdos, não os ensinaram o que é o amor, o respeito, o carinho, a solidariedade, a cumplicidade dentro de um lar, dentro uma família… saber tirar o chapéu na hora certa e saber colocá-lo, porque uma cabeça não leva dois chapéus, se queres colocar os dois quer dizer que queres esconder um, se não queres esconder tira, cada dia usa um, saber usá-lo para mais tarde não dizer “porquê? ou se eu soubesse”. E o momento é este, o momento que atravessamos, o momento que estamos a viver, esta angústia, esta apatia, a sociedade está um caos, os jovens! Se não nos assegurarmos agora, o que será deles amanhã? Não deixemos que isso aconteça… a bola está nas vossas mãos.
O Papel da Bíblia na educação social
Temos de ter muito cuidado com as nossas meninas, a igreja tem um papel muito importante, faz parte da nossa cultura, do nosso dia a dia, porque a bíblia é um grande livro, um bom ensinamento que nós temos, devemos é saber ler, meditar para poder interpretá-la e se não fizermos isso não vamos entender o que a bíblia nos ensina, o caminho que devemos seguir. Antigamente a bíblia era escrita em latim e não sabíamos o que a bíblia dizia, só o Pai Nosso e Ave Maria, agora já sabemos como partilhá-la e como podemos interagir com as pessoas e pregar. É por isso que nós as mães devemos ter muito cuidado, saber ensinar as nossas meninas, saber educá-las para serem boas esposas, boas mães e boas companheiras.
A religião tinha um papel importante, eu não sei se na escola ainda há a disciplina de educação cívica e moral, mas devia continuar para levar esses meninos ao “lugar” … nós os africanos temos uma educação bonita, temos uma trajetória linda, então não vamos desperdiçar, vamos agarrá-la.
A Activista Reformada
Reformei-me há 4 anos, aos 75 anos de idade, mas continuo a lá ir, porque fui mentora de uma jovem que já trabalhava comigo, ela fez psicologia, conversamos muito, sempre que tem algum caso mais difícil liga-me e digo “não te recordas o que eu te disse, aqui tudo é possível quando a pessoa quer e tu tens de ter em mente que vais fazer e bem, porque ninguém é burro, somos todos inteligentes”. A OMA é praticamente uma faculdade porque muitos estudantes passam por lá, psicólogos, advogados, sociólogos, encaminhados pelos próprios institutos para estágios, porque no centro eles vivem o dia a dia da situação. Por mim passaram muitos estudantes, eles transmitiram o que aprenderam e eu também transmiti o que sabia e como fazia. Passei por lá há 15 dias atrás e encontrei um grupo de jovens que entraram agora para estagiar.
Existe uma grande diferença em relação há trinta anos atrás, agora as pessoas, sobretudo as mulheres estão mais informadas, a violência ainda existe e nota-se maior abrangência e a afluência para estes centros continua a ser grande.
Um dia alguém vai falar do meu trabalho, porque se for eu, podem dizer “olha aquela oportunista”, mas vou apenas dizer uma coisa, sinto-me bastante feliz, envaidecida do trabalho que fiz ao longo dos trinta anos, acredito que fui útil, senão não estaríamos até hoje, o resto o tempo dirá…, mas vai aparecer alguém que vai falar do meu trabalho para o bem e para o mal.
Quais as etapas marcantes dos seus tempos de aluno e estudante?
Posso dizer, além da educação que recebida em casa, do papa, da mamã, dos irmãos mais velhos e aquele respeito que nós tínhamos pelos amigos dos manos, também eram os nossos irmãos.
Não digo que era difícil ou era fácil, nós tínhamos é que saber captar, ouvir o que os nossos professores estavam a transmitir e saber interagir com eles. O respeito era muito importante senão, vejamos os nossos professores eram os nossos segundos pais, nós passávamos mais tempo com eles, então nós deveríamos saber respeitá-los, ouvir, receber o que eles estavam a dar e quando chegássemos a casa teríamos a continuidade. Não havia grande rebeldia, isto não quer dizer que não houvesse as nossas trapalhices, sempre com respeito, saber que está ali a professora, até está ali a senhora, a “contina”, por ser uma mais velha que está a cuidar de nós. Esta era a vivência que nós tínhamos na escola.
Quando estudava na Escola 8 soube do mito que os albinos terem medo de gémeos, e um dia como eu queria apanhar “maçãs da Índia”, disse que era gémea, bem eu devia ter nessa altura os meus oito anos, “porquê que eu me recordo?” Ninguém, é burro neste mundo… há muita coisa que nos marca, a mim marcou-me muito a educação que tivemos e hoje estou a ver a ser deteriorada sem motivo, são vocês que devem dar continuidade, conversar muito com os vossos filhos, não escondam, em vez de falarem de pai para filho, falem de homem para homem, contem a história, saberem o que vão fazer, como seguirem, não devem esconder nada, deêm-lhes exemplos, eles têm de saber de muita coisa e tudo começa em casa…
Recordo-me quando na 4ª classe havia um caderno de problemas de matemática chamado caderno 1111 (eu conto isso muitas vezes aos meus netos) e tinha as soluções, arranquei a página e tinha a minha cábula, até que um dia a professora disse “oh Cristina vai ao quadro”, mas eu não sabia resolver o problema porque eu cabulei, porque encontrei tudo na solução, ela pôs-me de parte e avisou o meu pai e ele teve de comprar outro caderno 1111, mas já com a solução fora e fiquei a pensar naquilo, achei normal e segui… recordo-me muito disto porque se a professora não tivesse atenção para comigo ou connosco as alunas eu podia não assimilar e continuar naquela burrice, não dar vazão, porque não queria estudar e ficaria ali, ponto final… penso muito nisso. Prova é que há dois anos em Lisboa cruzei-me com uma senhora e ela vira-se para mim diz “Maria Cristina, tu eras uma cábula”, eu não me recordo dela e disse-me “eu estudei contigo, lembras-te quando escreveste na perna, o teu professor era o professor Durval” e eu lembro-me deste professor porque ele nos batia… mas depois de setenta e tal anos, cruzar com alguém e recordar-se de mim, fiquei contente.
Não frequentava muitas festas e outros ambientes juvenis e por isso uma neta a dias perguntou-me “como é que o avô engatou a avó?”, respondi “olha calhou, encontramo-nos e almoçamos”, porque eu não tenho muita coisa para contar sobre a juventude. Gostava muito de ficar com o meu irmão, gostava de jogar a bola, a bilha, de ouvir música, nada de bonecas nem andar em muitas festas, sei que havia muitos clubes, mas a minha mãe não nos deixava ir. Aprendi a dançar com os meus irmãos, ir a aniversários e festas familiares, sim. Mas, outras diversões sair não me recordo. O meu pai quando faleceu eu tinha 18 anos, gostava muito de ficar em casa, por isso é que eu aprendi a costurar cedo, gostava de coser, uma vez vi um soutien e fiz um semelhante, rasguei um lençol da minha mãe e fiz… eu era uma miúda de escola-casa, casa-escola, também gostava muito de ir a igreja, ia com a minha mamã à igreja de São Paulo. Depois de casar foi pior ainda, não saía mesmo de casa.
Tenho boas referências dos meus manos, que eu adoro, que foram pacientes e dos amigos deles a quem eu agradeço e rendo homenagem. Também tenho boas referências das minhas professoras que também rendo homenagem porque souberam pegar em mim, educar-me, instruir-me, para ser hoje o que sou, para além dos meus pais, agradeço aos meus professores, se não fossem eles não seria esta pessoa.
Metade do meu serviço também foi por intuição minha, atirei-me e consegui fazer este trabalho por trinta anos. Trabalhei no centro de aconselhamento com casais vítimas de violência, na altura ainda não estava nada legalizado, trabalhava esporadicamente, até que foi aprovada a lei, aí começamos a trabalhar afincadamente, tínhamos os nossos grupos bem delineados para podermos atender as pessoas que necessitasse de nós, e aí foi a minha vida trinta anos…
Gostaria de deixar algum conselho aos jovens ou à sociedade em geral?
Como eu dizia no início, antigamente as mamãs sabiam educar os filhos, porque nós recebíamos meninas que os nossos pais ajudavam a criar, hoje ainda acontece, embora agora muitos pais não querem dar os seus filhos a outras famílias para os criarem porque não sabem o fim que vão dar a estas crianças, se vão estudar ou não.
Agora as crianças não querem ouvir de ninguém, têm o vício de irem para a rua, já não respeitam nem ouvem os pais, embora se diga que muitos pais mandam os filhos para a rua para irem pedir. Há instituições onde estes miúdos podem ser cuidados sem ficarem fechados, e deveriam aceitar. Não me recordo o nome de uma instituição em Luanda que recebe muitas crianças, umas abandonadas e outras levadas pelos pais, é um trabalho árduo e temos de o fazer, acredito haver muitas senhoras das igrejas a ajudarem essas crianças, isto é trabalhar com a sociedade. Por exemplo, há pouco tempo vi uma senhora a conversar com muitas crianças próximo ao supermercado Jumbo, falava sobre “não brincarem com o lixo, da importância da escola…” um trabalho bonito, mas o que é que falta?
O governo tem de apoiar aberturas destes centros, é preciso pegar nestas crianças e tirá-las das ruas. Isso é um problema que vem de há muito tempo, como já referi há crianças que querem estar na rua outras são impostas pelos pais, mas é de todo impossível passar essa responsabilidade para as mães zungueiras estão a trabalhar nas ruas para no final do dia terem algum sustento, estão a lutar para a sobrevivência, é o trabalho que elas têm! A mesma coisa se pode dizer das kinguilas, algumas que deixam os filhos a deambularem, outras têm alguém a cuidar delas. O importante é deixarmos de dar dinheiro a estes miúdos para alimentarem estes vícios.
Antigamente isso não acontecia, as mães trabalhavam fora de casa e os irmãos mais velhos tomavam conta dos mais novos, embora a lei não permita, era uma questão de sobrevivência, mas isso também é uma questão de educação. Neste caso, o trabalho a ser feito é o de sensibilização, a ser realizado com as jovens mães para não colocarem os filhos na rua. Contudo, é preciso dizer que a sociedade tem de ser responsabilizada por isso, porque acredito que muitos de nós somos incapazes de ajudar as instituições que tratam de crianças como é o caso do padre Horácio. Antes havia muitos centros que acolhiam estas crianças e hoje temos grandes homens que saíram dessas instituições, como por exemplo da Missão de São Paulo, do Dom Pedro V, do Abrigo dos Pequeninos, etc. O São José do Cluny era para quem tinha posses, no nosso tempo havia estes sítios, é isso que nós temos de fazer, para falar a verdade eu nem me lembro se havia crianças na rua como há agora.
Atualmente, os jovens dizem que estamos “ultrapassados”, mas nós não estamos “ultrapassados”, nós respeitamos a todos, é isso que falta aos jovens de hoje… e nós estamos a deixar isso prosseguir… a minha geração está a transmitir esses valores, cabe a vocês darem continuidade, os pais do futuro são vocês. No nosso tempo quando os nossos pais estavam a ouvir o noticiário, muitas vezes estávamos à mesa em silêncio, não levantávamos a voz, agora o pai está a ver TV, chega o filho bate à porta, até pode mudar o canal, não! O filho chega, encontra uma pessoa mais velha e pode até não a saudar…é preciso mostrar estes valores aos vossos filhos, porque isto tudo faz parte da educação, a educação começa em casa…
Instituições, temos muitas, as pessoas que estão nessas instituições fazem a diferença e cabe aos pais darem continuidade em casa, há programas bons na rádio, abracem esses programas para poder salvaguardar o futuro desses pequenos jovens que andam a deambular pelas ruas… eu não aceito quando dizem que “há crise”, há duas coisas que eu não sei o que é, “crise e sistema” e não aceito, podemos lutar com o sistema… como é que eu posso dizer? Vamos cultivar os campos, vamos renascer outra vez, vamos trabalhar porque muitos dos nossos avós não foram à escola; quitandeiras, lavadeiras educaram tantos homens, então não vamos esperar só ser director de um banco, presidente de algum conselho, agora dizem PCA, não! Podemos fazer outros trabalhos, lavrar a terra, ir para o mar, isto é que os jovens têm de fazer porque nem todos nasceram para serem doutores, ninguém quer ser professor, nós antigamente com o 2º ano, agora com a 6ª classe podíamos ser professoras de posto, nós íamos para as aldeias, dei aulas no Uíge. Criar serralharias, carpintarias e vamos salvar estes jovens, tirá-los da criminalidade e pô-los nestes sítios. Vocês que são os nossos continuadores devem fazer isso, vamos acabar com esta tristeza, esta maldade, este oportunismo que existe porque não há motivo.
Angola é um país lindo, temos valores para abraçar, um deles a nossa educação tradicional, saber falar com os jovens mostrar-lhes o caminho a seguir para tornar essa Angola um país melhor, são eles que vão continuar aqui, quem irá dirigir este país? Vamos pôr os nossos jovens no caminho certo, não esquecendo o papel da igreja, mas também devemos ter muito cuidado com as igrejas, o ser humano é inteligente, então vamos pôr isso na prática, vamos falar com os jovens, não precisamos de nenhuma instituição específica para fazer este trabalho, qualquer cidadão é um mentor, um activista social, para salvarmos os nossos filhos, netos, eu que já tenho um bisneto de 14 anos… meus queridos façam isso!
Cuidar dos idosos é uma recomendação…
Outro tema interessante e que iria enriquecer o vosso trabalho é a questão dos idosos no nosso país, há uma Associação de Idosos criada pela avó Boneca Feio que faz um excelente trabalho, é uma Associação legal com uma pequena participação do Estado, começou com a Associação Cassules de Maculusso, as meninas Gingas do Maculusso, cantoras e começaram lá, na altura a avó Boneca recebia crianças para ocupar os tempos livres e ensinar-lhes costura, artes, etc. A Avó Boneca já está com 100 anos e a actual presidente é a D. Emília de Almeida.
Timidamente, no final do depoimento, Maria Cristina Carlos Vasconcelos partilhou com o HSA o hábito de tirar notas sobre aspectos sociais sensíveis, não raramente liberta suas preocupações fazendo poesia, entre as quais uma a ser entregue um dia a Paulo Flores. Esta revelação diz-nos que esta nacionalista tem muito mais para contar as novas gerações, se calhar até pela partilha dos seus poemas, um deles se torna hoje publico:
“Preparemos a mente, o tempo atravessa em busca de solução, como encontrá-lo?
Os dias são marcados pela intolerância, através de caminhos longínquos e tormentos.
O ser humano não se encontra, a terra é redonda,
Mas, aos que pretendem mudar com os seus prazeres, mundos e atitudes intolerantes,
Hoje não existe respeito, nem amor,
Olhando para o céu vê-se a nuvem que contempla o nosso viver com carinho,
Que bom viver, cantar, pular e sorrir!”
Este depoimento foi realizado em Março de 2022, na Marginal de Luanda.
Palavras-chaves: Violência Doméstica| Crianças na rua| Centro da OMA| Mentores Sociais| Idosos| Aconselhamento