Skip to content Skip to footer

As Missões Evangélicas e a Educação em Angola -Judite Luvumba| Parte I

Sob indicação de amigos comuns, tive o primeiro contacto com a Dra. Judite Chimuma Joaquim Luvumba. Eis os primeiros dados que colhi, dos extratos das memórias de Judite Luvumba sobre factos da sua própria vivência no contexto da história social de Angola. A começar, mostrei interesse em conhecer particularmente aspectos singulares dos resultados sociais do ensino em Angola pelos missionários católicos, evangélicos, protestantes e outros. 

O primeiro esclarecimento foi sobre a ordem de chegada dos missionários a Angola. Segundo Judite Luvumba os primeiros missionários a chegar a Angola na altura dos Descobrimentos, foram os sacerdotes Católicos Romanos, divididos em Ordens (Congregação do Espírito Santo, Jesuítas e outras). Seguiram-se os missionários do ramo Protestante (Metodistas, Baptistas Congregacionais) os primeiros a fixarem-se no interior do País. Os mais recentes foram os chamados Evangélicos (do ramo Pentecostal), bem como os Movimentos religiosos independentes de inspiração africanista (Kimbanguismo e Tocoismo) foram os mais recentes. Ultimamente estabeleceram-se em Angola os da religião Islâmica.

Peremptoriamente, Judite afirmou que as influências destas incursões religiosas no Norte, Centro e Sul de Angola foram distintas. Daí os angolanos não poderem seguir uma única linha de educação. Da mesma maneira que no nosso alimento básico, os diversos tipos de pirão/funge são confeccionados com componentes de carboidratos específicos, cultivados preponderantemente em cada região do nosso país, entre os quais o milho, a massambala e a mandioca, batata doce, inhame, banana, influenciaram de facto as diferenças da nossa cultura gastronómica. 

Rapidamente Judite percebeu e concordou comigo quanto à urgência da colheita e armazenamento correcto de dados em forma de repositório de consulta, para servir a futuros pesquisadores. Nestes termos, solidarizou-se plenamente com a necessidade de obtermos dados credíveis e armazená-los. Bem como dar prioridade à recolha das memórias dos mais idosos, uma vez que, pela inerência do período de vida considerado, ser mais fácil expressarmos os aspectos relevantes da nossa vivência. Também se entusiasma pelo facto de o cariz deste repositório de história social de Angola “obrigar-nos” a desviar um pouco do foco político-partidário dos habituais escritores das nossas gerações. Sem negar que tudo o que se relacione às nossas vivências tenha implicações políticas”. 

Outra dimensão deste repositório partilhado foi a necessidade de as novas gerações conhecerem as várias dimensões do período colonial, como, por exemplo, as relações sociais entre diversas classes de angolanos entre si e angolanos versus portugueses. No que diz respeito ao racismo, Judite Luvumba defende ser o “grupismo” (que define como ilhas de agrupamentos numa mesma classe social) muito mais expressivo, frequente e mais intensamente lesivo, do que aquilo a que hoje chamamos de racismo. Ela refere que quando está com os seus diversos amigos, não pensa no seu tom de pele. Contudo, no “grupismo” ela sente a necessidade de entender quem realmente seria dos “nossos” e a quem temos de excluir. É como no clubismo desportivo: cada clube, cada grupo, identifica-se destacado sua supremacia sobre outros, mesmo, por vezes, os clubes melhor sucedidos. Esta é, para Judite Luvumba a tendência humana, de se constituir em grupos discriminatórios que mutuamente se depreciam.

Prosseguindo, Judite afirma ser necessário que o conhecimento se baseie em factos reais e não em “contos” puramente eivados de idéias sedimentadas em preconceitos e transmitidas de geração a geração como sendo A VERDADE. Para mim a ideia que se segue era para ilustrar a evolução dos tipos de discriminação que vivenciei. A discriminação entre católicos e protestantes não deveria existir, pois a base comum é a fé e o resto são organizações humanas, pessoas da mesma aldeia, católicos e protestantes desfiavam-se para colher água. O classificar angolanos em assimilados e não assimilados (indígena), criou a distinção entre pessoas da mesma aldeia, e até da mesma família. Depois a distinção passou a ser entre terroristas e não terroristas e no final da época colonial entre ser da PIDE e não ser da PIDE. Destaca a necessidade de se transmitir às novas gerações factos sobre o desempenho de pessoas singulares, grupos civis, governantes, (até os da época colonial), líderes nacionais ou de países amigos cujas acções se destacaram contribuindo para o desenvolvimento dos nossos povos colonizados. Nesse sentido, realça, por exemplo, a necessidade que sente de investigar dados sobre o apoio que Norton de Matos prestou ao Missionário canadiano John Tucker, nos primórdios das Missões protestantes do Centro/Sul de Angola onde ela nasceu e cresceu. 

Tais factos remontam aos tempos dos seus ascendentes nascidos destas relações, época do reinado da Rainha Ginga. Para Judite Luvumba, este reinado pode servir de linha de transição entre o período em que o português branco considerava o preto parceiro de negócios, quiçá amigo. Tudo o que depois se passou, para depois transformar Angola nesta “coisa” entre brancos, mulatos e pretos, é de desmontar e reedificar, para proveito de todos. 

A última dimensão do repositório que se adiantou, trata da necessidade de a história social de Angola ser construída pelos próprios angolanos. 

Judite Luvumba traduz sua opinião com o provérbio tradicional “uma mesma montanha galgada por pessoas que partem de sítios diferentes, as descrições que vão fazer da mesma montanha não serão iguais.”, portanto ninguém pode dizer ao outro que a sua descrição não possa também ser verdadeira. 

Esta primeira conversa ao telefone serviu para a introdução dos objetivos da Plataforma Digital- História Social de Angola e abriu o caminho para esta anciã angolana na diáspora contar as suas memórias ao HSA.

Parte I – 22.03.2022, Lisboa

Na diáspora angolana Judite Luvumba tem sido abordada por jovens descendentes dos portugueses que residiram e combateram em Angola que manifestam seu desconforto com o facto de que ouvem falar de uma guerra colonial, mas na escola não tem sido esclarecido qual foi o motivo, o que foi na realidade o sentido dessa guerra, que impacto teve nas populações e quais as implicações para a vida deles. Com base neste facto, Judite gostaria de convidar alguns desses seus amigos para participarem na apresentação do livro A Juventude Angolana no Período Pós-Colonial. Quem sabe poderemos criar neles algum interesse para também aderirem a esta iniciativa

Prossegue dizendo que, no momento actual, apenas se ouve falar de nomes, como os PALOP, CPLP, mas faz falta alguém lhes explicar quais as manifestações com algum interesse que estão a acontecer com tendência a promover o cruzamento futuro da história dos nossos povos. Judite afirma que mesmo os seus netos, estão sempre escutar a avó contando coisas da sua vida em tempos da guerra em Angola. Um deles diz que gostaria de ser cineasta para encenar os contos da avó. “Gostaria de levar os meus netos à apresentação do HSA porque eles fartam-se de me pedir informações” termina a entrevistada.

Esta é matéria que está a interessar a juventude, actualmente a ficar mais alerta. E não acontece apenas com jovens angolanos, mas a todos os dos outros povos que cruzaram connosco. Atrevo-me a admitir que  jovens cubanos, jovens russos, sul africanos e outros que tiveram pais que combateram na guerra de Angola, podem estar interessados no projecto HSA isto porque os pais, os avós falam, mas é preciso estruturar melhor a informação, porquê? Porque as coisas sobre Angola têm sido escritas maioritariamente por pessoas estranhas, que tem uma visão que nos é estranha. 

O TRIBUTO E A ESCRAVATURA NO CENTRO SUL DE ANGOLA

Antigamente entre os nossos avós que não só vendiam, mas transportavam o que produziam do Huambo para Benguela e quando passassem por uma zona tinham que pagar um tributo, demoravam três meses a fazer o caminho de ida e volta, percorrendo os trezentos quilômetros até Benguela, ao passarem por uma zona que não era deles tinham que pagar um tributo. E os desafios entre eles, eram na base de práticas como feitiçaria, de mitos, por exemplo, o rei dizia poder se transformar em uma águia e outro dizia, mas eu transformo-me em um Leão, era forma deles pensarem desafios sobre a sabedoria, sobre a capacidade, ou faziam amizade, ou persistia a inimizade, quer dizer já havia escravatura, mas era diferente. Por exemplo eu devia-te alguma coisa e não conseguia pagar, no caso, eu entregava o meu sobrinho para te servir durante o tempo x para pagar o que eu não podia pagar e depois devolves-me o sobrinho. Outro exemplo, alguém tem um  acidente e mata uma pessoa de uma outra tribo,  se for a morte de alguém muito importante no caso se pagava com um casal, um homem e uma mulher,  também no caso de alguém ter um filho e se apaixonar pela filha de outro, de terem filhos, a escravatura se transformava em parentesco, em família por este se casar com alguém da tribo onde prestava serviços,  quer dizer era uma escravatura que tinha prazos! Lendo na bíblia era uma escravatura de sete anos, depois acabava.

MEMÓRIAS ANTIGAS

Para as pessoas da minha geração, e no ambiente das nossas missões protestantes, as memórias referentes a este processo da independência de Angola, remontam aos anos cinquenta.Éramos jovens, éramos ousados e atrevidos e até tínhamos perguntas sem resposta. Nossos mais velhos juntavam-se às escondidas. Cochichavam juntos, o pai, o tio o avô. Por vezes vinham à nossa casa, comiam e depois ficavam a conversar e nós tínhamos de sair. Outras vezes eram eles que saíam, combinavam um encontro, quase sempre uma farra. Eu intrigada, pensava comigo mesma: com farram tanto, se o meu pai não gosta nem sabe dançar? Viemos a compreender mais tarde que essas sessões de almoços, dança e encontros à noite, não eram em nada inocentes. Abrimos os olhos, quando alguns acabaram de ser enviados para as prisões que os portugueses fizeram em SÃO TOMÉ e PRÍNCIPE, no TARRAFAL e MISSOMBO, PEU-PEU e SÃO NICOLAU. Temos nomes de pessoas que lá perderam a vida. Afinal os TIOS não se juntavam para comer, nem para dançar, o que eles não queriam era que nós ouvíssemos as suas conversas. Mas daquilo que não nos diziam nós criávamos nossa imaginação, pois alguns de nós já éramos muito curiosos e esses tipos de encontros de tão especiais não nos deixavam indiferentes.

AS ELITES SOCIAIS DESSA ÉPOCA

A quem nós chamávamos tios? Aos professores, pastores, diáconos, enfermeiros e outros que eram líderes na nossa comunidade. Tais como os meus pais, faziam parte da quarta geração das famílias pertencentes a esta elite rural educada pelos missionários. Uns tios faziam agricultura e ensinavam-nos como cultivar, regar, outros eram professores de matemática, outros instrutores dos vários ofícios ensinados nas missões. Já lidavam com os brancos no comércio, deslocando-se em veículos motorizados que compravam a prestações pagas quando colhessem seus produtos agrícolas. A batata, na nossa área, era das maiores fontes de rendimento das famílias. Então, nós chamávamos tios a esses colegas dos pais que não eram parentes. Era uma forma respeitosa de trato social entre os UMBUNDUS e não só.  

Aliás, aquilo a que nos últimos tempos chamamos negativamente de tribos, naquela altura eram grupos específicos, que se distinguiam naturalmente uns dos outros. Por exemplo, antigamente havia formas distintas de se falar Umbundu, isto é, os do Bié, os do Bailundo, dos da Chissamba. Quer dizer, embora seja a mesma língua Umbundo eles usavam os diversos dialetos da língua Umbundu. Eu creio que acontece o mesmo com o Kimbundu falado em Malange que difere do que se fala nos Kuanza Sul e Norte, e do Kimbundu de Luanda. E mesmo em Luanda os da Ilha de Luanda tem diferente entoação. Só quem está por dentro reconhece bem as diferenças. Nesta altura as missões recebiam alunos destas tribos para criar uma sociedade evoluída. Contudo, ao invés dessa realidade tribal havia nas Missões uma espécie de irmandade intelectual.

O PAPEL DAS MISSÕES E DOS MISSIONÁRIOS

Os missionários traziam alunos destas diferentes origens “tribais” Balundu, Chissamba, Chilesso, Elende, Galangui, Kamundongo, Cuanhama, Sambu, Viye e outros. Os relacionamentos ancestrais entre esses grupos, nem sempre foram pacíficos. Os vizinhos nas tribos Mbalundu  e Viye, por exemplo, muitas vezes desafiavam entre si riquezas, conhecimento, e até artes e práticas culturais.

O que os missionários fizeram ao nosso povo, nesse trabalho educativo, foi transformar essas rivalidades em relacionamentos positivos. Assim, estabeleceram grupos a que chamavam “primos entre si”. Isto é, grupos que ganharam relacionamentos de amizade e solidariedade, ao invés de agressividade e desprezo. Nestes termos, a liderança dos internatos da Missão organizava a recepção dos novos alunos dessa maneira: daqueles que outrora pertenciam a tribos “de costas viradas”, os alunos do 3º ano eram incentivados a adoptarem os caloiros vindos das tribos “rivais” para os proteger e acompanhar no processo da sua integração. Entre colegas, passava a haver mais” primos” através de “afilhados” dos primos mais velhos. Nessa altura havia internatos separadamente masculinos e femininos, que se cruzavam apenas aos Domingos, após o culto realizado no Templo principal da Missão. Foi assim que, após pouquíssimas gerações de internos dessas missões, tais rivalidades tribais transformaram-se em relacionamentos de camaradagem, solidariedade e de mútua proteção.

Quer dizer, no conceito que eu tenho, admito ter havido a cúmplice aliança entre as tribos destes “Tios” que foram contemporâneos na sua formação, e que acabavam por ser colegas de estudo e de trabalho. Esse processo chegou a levar os missionários a promover encontros juvenis entre diferentes comunidades eclesiásticas. Como por exemplo alunos das Missão do Quêssua e os das diversas missões concentradas nos Internatos do Dôndi, isto é, Escola Means (raparigas) e Instituto Currie do Dôndi. Esse intercâmbio veio a ser muito útil ao longo da nossa vivência pré e pós-independência.  E assim chegamos aos anos 60, altura dos tempos dos defensores da indivisibilidade do Império Luso em que eram considerados “terroristas” todos os indivíduos com ideias nacionalistas. Afinal aqueles encontros dos “Tios” a que me referia há pouco, eram simplesmente a forma de desviar a atenção dos “informadores”. 

É histórico o facto de a maioria dos principais líderes dos partidos políticos de então, bem como outros valorosos dirigentes nacionalistas, terem sido quadros formados nessas missões e escolas. Citam-se nomeadamente, Agostinho Neto, Holden Roberto, Jonas Savimbi, Daniel Chipenda e vários dos seus parceiros mais próximos. Todos eles são educandos de nível alto das Missões Protestantes e dos Seminários Católicos, como é o caso do Cardeal Dom Alexandre do Nascimento, Dom Eugênio Salesso, Dom Francisco Viti, Don Camuenho e tantos outros que se destacaram nas instituições religiosas, no ensino, na guerra e depois na política. Alguns são muito próximos em termos familiares. Posso referir, por exemplo os meus avós, pais da minha mãe e do meu tio Pedro Chindondo. Nas memórias que minha mãe deixou, conta como os dois foram entregues à escola dos missionários, ela com 11 anos e o irmão com cerca de 9, para aí serem educados até se casarem. Os missionários trataram deles, convivendo com os dois irmãos até à altura do casamento de cada um.

Então, comecei por dizer que para quem é vinte anos mais novo do que eu, da geração posterior à minha, a nossa referência juvenil da história de Angola que começa nos anos cinquenta e muitos, pode muito bem ser algo mal conhecido. Nessa época, (eu terei quinze a dezasseis anos) já este processo das independências africanas decorria noutros países vizinhos. Nossos missionários afirmavam: – “a vossa terra vai mudar…vai haver profundas alterações na vossa terra”, e diziam isso várias vezes. Mais tarde ficamos a saber que muitos países africanos já estavam independentes, e outros em vias de. Afinal eles sabiam que isto viria a acontecer também em Angola.   Alguns dos estudantes, nossos mais velhos, por exemplo, nesta altura tinham sido enviados para estudar no estrangeiro. O objetivo dos missionários seria preparar futuros líderes das missões, uma vez que concebiam a sua iminente retirada do nosso País, normal ou compulsivamente. Portanto, eles criaram condições para que os naturais fossem capacitados para conduzir, nas suas localidades, o desenvolvimento do seu país!

Na altura, eu estou a fazer a preparação para o exame da quarta classe, que me permitiria transitar do ensino particular na Missão, para o público nos liceus oficiais.

O ensino nas missões tinha os seguintes ciclos de ensino:

– nas aldeias havia a escola infantil, onde aprendemos a ler, a escrever e a conhecer a bíblia; 

– na primária, geralmente em Centros locais ou apenas às escolas da Missão,  para além da bíblia, incluíam o estudo da agricultura que era uma disciplina base e a língua portuguesa.

– seguia-se a formação preparatória para a vida, especificamente exigindo o internamento nas missões. Tínhamos disciplinas habituais das escolas normais. Também aprendíamos cestaria, bordar e coisas de interesse da nossa cultura. Algumas disciplinas como as matemáticas eram dadas de forma muito rudimentar, mas muito bem sedimentadas. A conclusão dessa etapa dava saída para: a)  acesso ao Ensino Oficial do Liceu ou Escolas profissionais; b) ocupações da vida adulta, preferencialmente inseridos nos locais de origem; c) especialização em quadros da liderança missionária como pastores, esposas de pastores, professores, diáconos, enfermeiros, parteiras de formação básica, alfabetizadores, líderes comunitários, etc. 

Lembro-me perfeitamente que nos finais dos anos 50 o colono já exigia que os assimilados deixassem de ensinar umbundu aos seus filhos e falassem apenas Português. Os nativos que viviam nestes ambientes nasciam a falar umbundu, mas depois que iam para o internato, o Umbundu só se ensinava nos estudos da Bíblia. Mesmo sendo filha de líderes da escola, eu fui obrigada a viver no internato porque na(data), já o ensino particular ministrado nas missões estava a ser controlado. O Governo enviava professores portugueses que naquela altura já eram funcionários da PIDE, para ensinar nas missões. Eles eram obrigados a contar ao Estado tudo o que se passava nas Missões. Nesta altura já havia uma intromissão das coisas do ensino português nos programas do ensino tipicamente da Igreja.  Impunham o exame da quarta classe que tinha de ser feito por examinadores deles. Para as moças de então a quarta classe era o nível mais alto desejado do ensino comunitário. Essa imposição era um entrave, pois com examinadores estranhos a reprovação era o pão de cada dia.  Depois da quarta classe as raparigas iam para o curso de preparação do casamento. 

Nesse tempo, muitos dos jovens formados nas Missões casavam de acordo com a orientação dos seus líderes. A minha mãe conta o caso de um estudante do Instituto Curie do Dôndi que era o mais novo de três irmãos. Os dois mais velhos eram bem-comportados de acordo com os critérios da Missão. O terceiro andava com más companhias. Fumava, bebia, e fazia coisas consideradas indignas. Um jovem missionário recém-chegado do Canadá decidiu empenhar-se na recuperação desse aluno. Foi buscá-lo à cidade de Nova Lisboa. Reintegrou-o no Internato, sob disciplina, a fazer alguns trabalhos tipo “forçados”. Quando foi considerado restaurado, a liderança decidiu escolher no grupo da minha mãe, uma das alunas finalistas para casar com ele. As colegas, em solidariedade, choraram com ela. Mas no final das contas, segundo minha mãe, esse casamento acabou por ser o mais bem-sucedido de todos os que elas tiveram. Tanto o “Tio” como a “Tia” prestaram importantes serviços à Igreja, por onde eles andaram. O exemplo serviu aos seus descendentes que até hoje são bons líderes das comunidades que integram.

A ideia dos missionários era capacitar as melhores alunas para o casamento com os futuros líderes das próprias missões (pastores, professores, médicos e outros). 

Tradicionalmente, nas gerações anteriores à minha, a conversa sobre os casamentos era tratada pelos pais dos pretensos noivos. Na minha geração, no entanto, eram os próprios jovens que assumiam os seus relacionamentos. O namoro estabelecia-se através da troca de cartas. O pedido era feito pelo rapaz, diretamente à moça. Era hábito nós recebermos cartas de vários pretendentes ao mesmo tempo. Nós fazíamo-nos rogadas. Certo dia minha mãe chamou-me atenção ao saber que eu tinha rejeitado a cartas de dois a três rapazes num só dia. Disse-me que isso poderia ser visto como arrogância da minha parte. Que as pessoas, acabariam por passar a tratar-me com desdém, o que criaria inimizades desnecessárias. E concluiu, declarando ser ainda muito cedo para um namoro sério. O melhor seria aceitar a qualquer um deles, ainda que não gostasse. Assim ganharia respeito de todos os demais por saberem que já era namorada de alguém. Eu concordei e decidi aceitar invariavelmente ao primeiro que me enviasse carta de pedido de namoro nesse dia. 

Nesse tempo éramos um grupo de internas da escola feminina (Escola Means) que frequentava o primeiro Ciclo Liceal oficial, a ser ministrado por professores portugueses no Internato masculino (Instituto Curie do Dôndi). Íamos todos os dias a pé, estudar para a escola que distava cerca de sete quilômetros do local onde vivíamos. Nossos relacionamentos com rapazes eram apenas de colegas, parceiros e amigos. Alguns desses relacionamentos de amizade permanecem até ao dia de hoje.

 Eu pertenço a uma tribo de cultura familiar matriarcal. Sendo a primeira filha, a primeira neta e a primeira sobrinha, tal como minha mãe também o foi, este facto faz com que nos sejam atribuídas responsabilidades especiais no seio da família. E no que diz respeito à geração a que damos início, essa responsabilidade é acrescida. Nesse sentido, o meu casamento era para ser preparado com muita seriedade pelos avós, pais, tios e o resto dos principais membros da família. Cito um exemplo: houve um rapaz que gostava de mim. Ele pediu a seu pai que escrevesse uma carta ao meu pai a pedir a minha mão. O meu pai, antes de responder, chamou-me para termos uma conversa solene. E a conversa foi assim:

 – Mamã, (Chimuma é o nome da minha avó paterna) podes dizer-me quantos filhos rapazes há na família do tio fulano, e meninas? Perguntou-me.

 Eu, sem entender nada, respondi acertadamente.

O meu pai continuou: 

– E na família do outro parente fulano, quantas meninas e quantos rapazes?…a filha lembra da prima fulana e do que aconteceu com o seu casamento?…

– Ficou viúva e está a criar os filhos sozinha”. 

No final do interrogatório chegamos à conclusão de que em quase todas as famílias nasciam mais mulheres do que homens.

– Pois, filha, acrescentou. É que no vosso tempo nem todas as mulheres irão casar; nem todos os casamentos correrão bem; muitas de vocês poderão ter casamento duradouro, mas algumas ficarão eternamente solteiras, outras assumirão a responsabilidade de criar filhos fora do lar. E mais, tereis de prestar assistência aos vossos idosos pais. 

Portanto, filha, concluiu: 

–  O que te quero dizer é que deves preparar-te para vires a ter a tua vida adulta com uma certa autonomia económica. O casamento a acontecer ou não, poderá ser a tua segunda prioridade, sendo a primeira o obteres uma boa formação profissional para enfrentar a vida.

Por isso é que, dois anos mais tarde, quando chegou a altura de me matricularem na Escola Industrial Sarmento Rodrigues, na então cidade de Nova Lisboa, eu recusei-me estudar apenas para vir a ser uma boa dona de casa. À revelia dos missionários, fiz o teste de ingresso no Liceu Norton de Matos, e, sem ninguém saber, matriculei-me no Terceiro Ano. Quando os missionários tomaram conhecimento, foi um problema sério para mim e para meus pais. Graças ao Dr. Murray Childs, o então pai do nosso Lar Académico, permitiu-me seguir o ramo liceal. 

MEMÓRIAS DO PROCESSO QUE NOS LEVA À CLANDESTINIDADE

Minhas memórias do processo que nos levou à clandestinidade dista dos tempos em que já éramos jovens ativos na sociedade. Nossos colegas que haviam optado pela vida laboral, estavam espalhados pelas missões, eram professores, diretores de escolas. Muitos dos nossos mais velhos, com bom nível da cultura portuguesa, já tinham uma educação extra missionária, porque fizeram o primeiro ciclo em colégios particulares. 

Não sei explicar muito bem, mas há de ter existido acordos entre as missões e escolas privadas, para haver educandos com essas habilitações. Tais quadros eram a elite das nossas comunidades, e alguns já pertenciam aos quadros da Função Pública, muito na mira das perseguições pidescas.

Eu pertenço ao segundo grupo de meninas das Missões Protestantes que entraram no Liceu Nacional de Nova Lisboa no ano académico de 1960/61. No início, refiro-me ao ano anterior, fomos todas matriculadas no Curso de Formação Feminina da Escola Industrial. Nessa altura o ambiente estudantil era assim: havia muitos poucos pretos.  Éramos três ou quatro pretinhos no meio de cento e sessenta e tal colegas brancos em turmas mistas de rapazes e raparigas. Não era fácil, mas conseguimos singrar.  É que nós viemos das missões já maduras e com uma sólida base de conhecimento académico geral. Éramos muito boas a matemática, o que nos facilitou a simpatia dos colegas. Quando tínhamos provas escritas quase todos procuravam sentar-se ao nosso lado para os ajudarmos, a resolver os problemas. Claro que tivemos de ultrapassar coisas que nos chocavam seriamente, como a cena da nossa primeira aula de Educação Moral ministrada pelo Capelão Padre Cachadinha.  Uma colega fez um comentário referindo-se aos terroristas. Tema bastante constrangedor para todos, nessa altura. Um colega gritou lá do fundo do anfiteatro: – oh senhor padre, porque é que não matam os pretos todos? O padre ficou tão vermelho, tendo o olhar fixo na fila da frente onde eu, a Caetano e a Benedita estávamos sentadas. Nenhuma de nós expressou qualquer reação. O padre acabou por não dizer nada. Limitou-se a rabiscar o sumário da aula no quadro preto e essa foi a apresentação. 

Não posso negar ter havido nesse tempo um clima de crispação entre os diversos grupos forçados a conviver numa cidade tão recentemente criada: estudantes dos Liceus transferidos de várias proveniências do “Império português”; militares recrutados da Metrópole e dos diversos cantos da “Província” e de outras províncias, uns para assentar praça, outros como oficiais instrutores; funcionários públicos de todas as raças e competências, e também de diversos posicionamentos políticos. Alguns, não poucos, com assumidas atitudes racistas, por exemplo a de não permitir a entrada nos cafés e restaurantes a pretos e, o que provocava reações radicais dos estudantes solidários. Também tivemos gente “do contra”, por exemplo, um professor de História, oriundo de Macau que nos dizia que a vitória na Batalha de Aljubarrota era uma farsa…Por outro lado, a nível do mundo estudantil, estávamos empiricamente organizados para, em grupo, defendermos qualquer colega, cujos pais e/ou educadores se opusessem aos namoros assumidamente multiétnicos e multiculturais que se vulgarizaram nessa época.   Rapidamente se estabeleceram, entre nós, laços de amizade, solidariedade e cumplicidade, muitos dos quais  perduram até hoje.  Tenho colegas amigas dessa vivência, por todo o mundo, como em Odivelas, Porto, Suíça, Canadá, e outras terras, os quais poderiam complementar as minhas memórias. 

A TENTATIVA DE FUGA PARA SE JUNTAREM AOS NACIONALISTAS 

A verdade é que os ideais independentistas dos países africanos vizinhos já se haviam implantado em todas as expressões populacionais em Angola, das aldeias mais interiores às grandes cidades. Mas, quero dizer que nesta altura todos os protestantes homens que concluíssem o Sétimo ano dos Liceus, ou outra formação particular ou religiosa equivalente eram suspeitos, ou mesmo catalogados como terroristas. Muitos desses chegaram a ser convidados ou instados a serem informadores e perseguidores, ligados à polícia política. 

Os missionários faziam de tudo para tentar proteger aqueles que corriam maior risco. Procuravam formas de conseguir que fugissem para fora de Angola. Outros, com sorte, entraram na tropa. Com as raparigas que fizessem o Quinto Ano liceal acontecia o mesmo. Tal como muitos estudantes, nossas duas colegas do primeiro grupo de Bolseiras das Missões tiveram de ser bruscamente evacuadas, uma para os Estados Unidos e outra para o Canadá, através dos países africanos limítrofes, já independentes ou em processos pré independência.  

No final do ano escolar de 1963/64 concluí o Quinto ano dos Liceus, com muito boa classificação (quadro de honra). A minha vida já havia começado a andar nas bocas de muitas autoridades atrás de mim: no liceu o professor de Música colocou no rol do reportório do nosso orfeão as cantigas da nossa cultura umbundu, ensinadas por mim com o apoio de outros colegas bolseiros da Missão. Um missionário Etnólogo pedia-me para ir estudar na biblioteca do Huambo, a fim de colher dados e fotos para aplicar nos seus escritos. Nosso professor de História pedia-me para levar e trazer recados ao Missionário com quem trocava literatura. Por outro lado, desde 1960 que nós, residentes do Lar Académico, participávamos de atividades clandestinas orquestradas dos Congos e que nos eram transmitidas por enviados especialmente capacitados, que circulavam por quase todos aos recantos de Angola, a distribuir novidades, orientações e tarefas. Eu e as minhas colegas chegamos a bordar uma bandeira, que seria içada numa manifestação a ser realizada algures na cidade de Nova Lisboa, numa data previamente determinada. Tal manifestação atempadamente denunciada, custou a vida a muita gente, inclusive uma família inteira de um colega nosso do Cuma. Nós teremos sido poupadas nessa altura por menoridade. Porém, após quatro anos, estando eu a completar os 21 anos considerados maioridade, mal sabia eu que corria sério risco, pois a PIDE seguiu sempre todos os meus passos, (facto que vim a confirmar através dos arquivos da Torre do Tombo). 

Foi assim que, aconselhados por parceiros de fora do Huambo, eu, o meu irmão e mais três amigos, entre os quais o Cololo, partimos para uma Excursão Estudantil, a catorze de 14 de maio de 1964. Inventamos essa digressão para Moçambique, a pretexto de termos a possibilidade de ir de avião até Luanda, onde encontraríamos outros grupos a prepararem a fuga para fora da Angola.  Pois os últimos dois estudantes que os missionários ajudaram a sair via Sudoeste Africano, tinham sido capturados pela polícia sul-africana e recambiados para Angola. 

Naquela altura muitos dos missionários não católicos já tinham sido forçados a abandonar Angola, por suspeita de estarem a patrocinar a fuga  dos angolanos. Por isso, as orientações passaram a ser emanadas dos movimentos nacionalistas fora de Angola. Não se falava de nomes. Nós não tínhamos ideia das suas designações, das lideranças, nem dos distintivos dos mesmos. Sabíamos apenas que todos lutávamos pela nossa independência.  

Partimos do aeroporto de Nova Lisboa sem qualquer entrave. Quando chegamos a Luanda fizeram-nos entrar apressadamente para um carro minúsculo e escuro. Viajamos ensanduichados por ruas escusas, até ao Musseque Rangel. Entramos rapidamente num beco, onde fomos abrigados numa casa de construção rústica, coberta a zinco. Deram-nos ordens expressas para não sair à rua, nem abrir porta a ninguém. Afinal o Enfermeiro de Luanda, pai de uma das excursionistas tinha denunciado à PIDE o verdadeiro propósito da nossa viagem. Eu era a única com vinte e um anos completos. Se a PIDE me apanhasse seria logo metida na cadeia. Foram os grupos clandestinos de Luanda, dos quais retenho nomes como Mendes, Simeão, Brito que receberam instruções para nos acolher e levar salvos para o esconderijo no Musseque Rangel. Lá havia becos sem saída, tanto que, mesmo os motoristas de táxi não aceitavam entrar em determinadas zonas desse bairro. A partir daí desvinculei-me da proteção comunitária das missões evangélicas e a minha caminhada seguiu outros rumos.

Uma vez gorada a pretensão de fugir da perseguição da PIDE, e travada a vontade de prosseguir meus estudos, restava-me apenas refazer a vida. Após um complicado percurso em que terminei sozinha no bairro Rangel. 

As equipas dos agrupamentos clandestinos deixaram-nos para trás porque os Contratados de uma fazenda agrícola colaboraram com os seus patrões portugueses quando foram atacados por guerrilheiros nacionalistas. Nesses tempos CONTRATADOS eram BAILUNDOS. Então na hora de sermos evacuados com outros candidatos para os MAQUIS, os preparadores das caminhadas recusaram-se ter Bailundos no grupo, porque “eram todos traidores”, diziam. Lentamente, e com ajuda de vários intervenientes, conseguimos dispersar o grupo.

Quase todos voltaram para as famílias, sem incidentes importantes. Meu pai, ao ser informado da minha situação, desenvolveu um quadro clínico de depressão reativa profunda. Os médicos consideraram um prognóstico muito reservado. minha mãe decidiu viajar até Luanda para me dizer que deveria ir ver meu pai antes de morrer. Por conta da chegada da minha mãe a Luanda fui parar nas garras do Subinspetor da PIDE, graças ao professor Afonso que dava aulas na Escola Evangélica Metodista da Baixa. Segundo Afonso e minha mãe, por este apresentado ao Oficial da PIDE na véspera, não havia dúvidas sobre o meu encarceramento. Um milagre livrou-me da condenação. Já no início do interrogatório, eu garanti ao excelentíssimo que o propósito de eu ter fugido de Nova Lisboa para Luanda era simplesmente poupar meus pais do desgosto de me verem casar com um oficial do Exército que era católico, sendo nós protestantes. Afinal foi minha mãe e o Afonso que levaram com o sermão, acusados de atrasar o desenvolvimento da juventude angolana com essas proibições de casamento entre católicos e protestantes.  Saímos do temeroso gabinete, eu com guias para ir ver meu pai; minha mãe responsável pelo meu regresso inadiável, 15 dias depois; o Afonso, cara toda vermelha, cabisbaixo, só repetia que o homem era muito mau, até para os próprios brancos, não percebendo o que se havia passado comigo.

Meu pai se recuperou, não sem me submeter a uma longa lista de quês e porquês. Entendemo-nos e fizemos alguns acordos. Ele próprio levou-me à estação das carreiras. Regressei a Luanda.  Casei-me com o oficial. Arranjamos casa no Rangel, ajudados por amigos, tive vizinhas que foram muito importantes na minha restauração: a Maria, uma das esposas do enfermeiro Mendes e a tia Júlia que foi colega da minha mãe na Escola MEANS. O tio Isaque foi colega do meu pai e o Jorge, filho dele, foi meu parceiro no Lar Acadêmico em Nova Lisboa.

ADAPTAÇÃO DE UMA BAILUNDA, A UM AMBIENTE HOSTIL EM LUANDA. PROMOÇÃO PARA CARGO DE OFICIAL DOS SERVIÇOS DE REGISTOS E NOTARIADO 

No que diz respeito à minha adaptação ao ambiente social de Luanda, o que me ocorre dizer é que, a vida de eu me fazer gente, sendo bailunda, sendo do mato, mesmo estando habilitada com o quinto ano dos liceus, quase que para nada isso me servia. Naquela altura as mulheres raramente trabalhavam em cargos altos dos serviços públicos. O debate era primeiro com o meu marido. Consegui a concordância dele. Concorri e fui colocada na Conservatória do Registo Civil, perto do Palácio do Governador. Fazíamos os assentos de nascimentos, casamentos e óbitos. Passávamos certidões e lavrávamos averbamentos.   Normalmente, os Umbundos que cresciam no mato não falavam bem Português. Eu sei muito bem porque eu falava bom Português. Mas não falava quimbundo e lá, ninguém entendia minha língua, que era desprezível. Até na rua, se me descuidasse a falar, chamavam-me monangamba, filha do servente (do empregado). Nos bairros a situação era assim: as mamãs tinham-me como uma filha, por exemplo quando nasceu a minha filha eu, sulana punha as crianças nas costas porque no Sul a maioria do ano o clima é frio. As crianças nas costas ficam aquecidas, bem como a própria mãe; mas em Luanda as mamãs pelas ruas perguntavam-me porque levava assim a criança? Não vês que estão as duas a transpirar? Está muito calor, coloca a Bebê da parte da frente. Tem muito sol, tapa a cabeça da criança com uma fralda… Mas para a população jovem de Luanda o trato era outro.  As diferenças iam desde o vestir. As que poderiam ser do meu nível apresentavam-se muito bem vestidas, enquanto ele lá no Sul, vestir é uma questão de tapar o corpo. Qualquer roupa bastava. Ter vestido bonito e cabelo alisado, muitas vezes era específico para quando íamos à Igreja. Até com queimaduras na testa por tentar alisar nossos cabelos com ferro de engomar… dessa forma as nossas colegas do Norte gozavam com a gente. Nós não tínhamos o jeito de atrair homens, mal sabíamos dançar como elas. Ficávamos sempre a perder. Em casa, meu trabalho era cozinhar, lavar, tratar das crianças e aguardar o marido para jantarmos. Mas quando ele chegasse, tarde e em má hora, dirigia-se ao banho, dizendo que não tinha fome. Todos os militares, nos fins-de-semana iam para as farras com as moças do bairro, nossas vizinhas. Depois elas ficavam o resto da semana a troçar das burras das esposas, que nunca sabiam por onde os maridos andavam com elas.

De resto, mesmo caminhando pelas ruas dos Musseques, varias vezes somos saudadas pelo característico assobio a cantarolar “monangambééé” ou ainda passarmos por um agrupamento de rapazes e raparigas e um deles dizer alto e em bom som: ela é mesmo muito bonita, que pena ser Baía(Bailunda)! 

Quer dizer, foi a luta que eu e minhas colegas tivemos no Huambo para nos afirmarmos como pessoas com dignidade, quando ouvíamos a pergunta, “porque não matam os pretos todos”. Até sermos aceites no grupo e ganharmos o nosso espaço merecido, valendo-nos a bagagem intelectual que possuíamos. Foi uma luta semelhante que tive de enfrentar quase sozinha, para impor-me como gente em Luanda. 

Quem me valeu foram os amigos, antigos parceiros das andanças juvenis das Missões que sempre me apoiaram, insistindo em manter alta a minha autoestima. Até porque na Conservatória na altura de assinar os registos que a tal Bailunda acabava de lavrar, as elegantes e vaidosas Mamãs das crianças, tinham de sujar os pintadinhos dedos com tinta da almofadinha, para apor no lugar da assinatura, pois não sabiam escrever. Por outro lado, na igreja do Sete onde passei a frequentar os cultos,  pediram-me para fazer palestras, dar aulas às senhoras dos diversos bairros e que pertenciam à mesma igreja. Passei a ser estimada e respeitada. Ganhei amizades duradouras. É o exemplo da minha comadre Josefa, mãe do conhecido Salomão Gonçalves que tenho como familiar, a ela e seus filhos. Aliás, cheguei à  igreja Metodista do SETE através da Comadre Josefa. Foi assim que eu consegui sentir-me gente em Luanda! Bem integrada, passei a adoptar o estilo de vida citadina. Com toda a dignidade de uma Bailunda igual a toda a gente. Não posso deixar de referir o carinhoso e paternal acolhimento do pai e da mãe Jardins. Eles também me deram a honra de frequentar seu lar como se de minha verdadeira família se tratasse.