Ernestina Venâncio natural de Nova Sintra, actual Catabola, sua educação e carreira profissional foi fortemente influenciada pelos missionários evangélicos da Igreja Baptista. Integra as gerações femininas da escola MEANS, na Missão do Dondi. Após a prisão do avô, uma missionária decide custear os seus estudos secundários e na escola industrial de Silva Porto em formação feminina. Durante este período o único contacto com a família e novidades sobre a sua comunidade foram cartas escritas em umbundu pelo avô materno.
Frequenta o Magistério Primário e leciona em Silva Porto chegando a assumir a responsabilidade pelo ensino secundário e liceal após a fuga dos retornados até o marido organizar o seu regresso para Luanda, cidade para onde é transferida por despacho do Ministro da Educação do Governo de Transição, o Dr. Jerónimo Wanga. Sob a orientação da Dra. Gabriela Antunes e com a recomendação de Dário de Melo seu colega de trabalho em Silva Porto encontra uma vaga de trabalho na Escola Alda Lara e participa no processo de selecção massiva quando estudar era uma ordem na República de Angola. Por imposição do esposo se reforma antecipadamente e antes da família emigrar para Portugal frequenta o curso de Análises Clínicas e o primeiro ano de Biologia na Universidade Agostinho Neto – UAA.
Em Lisboa, em colaboração com a amiga e colega de escola Judite Luvumba participaram na tradução de duas bíblias para umbundu, a primeira na versão orientada pelo Padre Luís Ribeiro e a segunda por um Missionário Americano. É neste ambiente missionário evangélico em Lisboa que reencontraram algumas missionárias da escola MEANS e o missionário americano consegue a fiança para a Ernestina residir na casa onde mora a cerca de trinta anos. A sua primeira morada em Lisboa foi na conhecida residência estudantil 122 em Lumiar e a segunda foi concedida pelo missionário do antigo seminário de Carcavelos, onde residiu com os filhos na antiga biblioteca, rodeada de campos cultivados por cidadãos anónimos até o proprietário construir os novos edifícios próximo a polícia de Carcavelos. A principal razão da mudança foi estar separada dos seus filhos, residentes em pontos geográficos opostos.
Conforme prometido o repositório da HSA nos seus primeiros meses prioriza a faixa etária dos oitenta anos e isto inclui angolanos na diáspora cuja história social apresenta particularidades como é o caso de Ernestina Venâncio. No depoimento apresenta memórias de descendentes de nacionais tradutores de umbundu que ensinaram esta língua aos missionários, permitindo-os escreverem os primeiros livros bíblicos e os de ensino, ferramentas para formação dos primeiros professores angolanos do ensino primário no sul de Angola. Alguns deles foram missionários e até bispos como o caso do Bispo da Igreja Metodista, Sua Reverendíssimo Emílio de Carvalho. Outros deram continuidade a estes estudos no pós independência no primeiro instituto de Línguas onde para além das línguas internacionais se aprendia quimbundu e umbundu, no caso trabalhava na escrita do alfabeto umbundu e o pai do terceiro Presidente de Angola, seu colega de infância trabalhava na escrita do alfabeto kimbundu.
O Ensino colonial no sul de Angola
Ernestina começa por expressar a sua maior preocupação social “os miúdos hoje não conhecem o sacrifício que as pessoas da minha geração passaram, para chegarmos onde chegamos.” Não foram os meus pais os responsáveis pela minha educação, foram os pais da minha mãe. Não posso dizer que os meus avós eram analfabetos, eles escreviam em umbundu e quando eu estava no colégio o meu avô escrevia-me cartas.
Na Chissamba, onde nasci havia um hospital grande, onde trabalhavam o Dr. Walter Strangera e a Dra. Elizabeth, falecida a 25 de abril de 2022. O meu avô só conheceu o hospital e a escola e queria que um dos seus netos fosse professor, tudo quanto ele fez foi para me incentivar a ser professora pois, no nosso tempo, o pai ou o educador orientavam-nos. Sempre pretendi ser enfermeira, porque ainda não se falava em ser médica, apenas em Luanda havia alguns rapazes e raparigas a fazerem curso de medicina. Os pais orientavam os seus filhos, hoje eu não posso dizer “meu filho gostaria que fosse médico, advogado”, hoje se ele disser que quer ser carpinteiro é assim, no meu tempo o encarregado de educação orientava, não abandonava o seu filho. Havia o posto médico, a administração, a escola primária e lojas, havia a escola da missão católica e o hospital das irmãs em Chicumbi, entre Andulo e Calussinga. As irmãs missionárias eram enfermeiras. Depois do 25 de abril fui transferida para General Machado, Camacupa onde passei o dia da independência, a festa da independência foi feita em Luanda.
No regime português estudávamos, mas nem sempre as notas correspondiam ao estudo feito para certas cadeiras. Para nós e os nossos mais velhos chegarmos à quarta classe tínhamos de estudar muito e quando fossemos fazer o exame, tínhamos de saber mais que os outros miúdos portugueses. Nem todos os professores portugueses faziam isso, mas uma grande parte, aí onde os filhos deles chegassem não era para nós.
No meu tempo os alunos estudavam até ao quinto ano. Havia o monitor escolar com a quarta classe, o professor de posto com o primeiro ciclo e a professora primária com o quinto ano. Estudei até ao quinto ano, nesta altura os meus avós já eram velhos, o meu avô já tinha passado pela cadeia, eu decidi parar os meus estudos para ajudar os meus irmãos.
Não segui enfermagem porque quando acabei a quarta classe o meu avô foi preso pela PIDE em 1961. “Bem, agora não vou estudar, não há dinheiro para pagar a escola”, o dinheiro saía das lavras, fiquei triste, mas a missionária da nossa missão decidiu pagar as propinas para eu frequentar o primeiro ciclo. Ela queria que eu fosse professora e não enfermeira, fiquei triste. Mas eu como não tinha possibilidades, tive de aceitar para não parar de estudar, fiz o primeiro ciclo, dispensei e ela decidiu enviar-me para a Escola Industrial de Nova Lisboa, pensei, “eu vou mesmo estudar, nunca tinha pensado nisso!” Acabei a industrial muito bem e estudei formação feminina, fiz o exame de aptidão necessário e segui o professorado. Não regressei à escola MEANS, pois a missionária tinha a intenção de eu dar continuidade ao professorado na área de formação das mulheres para o casamento e a minha ambição era prosseguir os estudos para ser enfermeira. Eu terminei o sexto ano e escrevi à Direcção geral a solicitar a bolsa de estudo de assistente social em contrapartida da apresentação das notas do quinto ano validadas pelo exame de aptidão. Na época quem completasse o quinto ano com a nota mínima de doze valores tinha direito a bolsa de estudo, porém, na altura da decisão final chegou a revolução. A outra razão foi o medo da família, os tios aconselharam-me a não estudar em Luanda, então desisti.
Outras colegas também concluíram o quinto ano, como a minha amiga Judite Luvumba que concluiu um curso da área social e também praticou educação física. Tenho memórias dela no período colonial, conheci os pais, não conheci o marido, ela saiu do Dondi e foi para Nova Lisboa para estudar porque nós tínhamos bolsas de estudo das igreja canadianas. Estudamos na mesma escola e no mesmo bairro, quando ela saiu do Dondi para estudar no liceu porque as meninas com mais capacidade não estudavam na escola MEANS, estudavam no liceu. Ela saiu porque quando se é bolseiro das missões tem que se seguir todas as regras e na altura ela namorava com o marido dela e a missão não aceitou, foi para Luanda, casou-se, residiu em Luanda até à independência.
A educação que a nossa sociedade nos oferecia era muito útil. Uma senhora com a idade de ser nossa mãe merecia todo o respeito e aquele senhor com a idade do seu avô podia chamar-lhe atenção. Tenho filhos e netos, mas a educação deles netos é diferente. Hoje se alguém chamar a atenção do meu neto, ele não aceita, porque para ele não és nada, está nossa educação perdeu-se e não conseguimos transmiti-la aos nossos descendentes. Por vezes há necessidade de chamarmos atenção, dizendo, “sou mãe da tua mãe e não podes falar assim comigo.”
25 de Abril em Calussinga e chegada a Luanda em Março 1976
No 25 de Abril de 1974 estava em Calussinga a trabalhar e recebi os professores de postos e primários, era uma vila com uma escola primária e eu era a directora. Havia o posto médico, a administração a escola primária e lojas, havia a escola da missão católica e o Hospital das Irmãs missionárias no Chicumbi, entre Andulo e Calussinga.
Os portugueses começaram a fugir, já estavam escritos nos adidos, chamavam-nos e apanhavam o avião em Silva Porto para a África do Sul e outros pontos. O meu marido era de Luanda, durante este tempo todo estávamos perplexos sem saber o que fazer.
Depois do 25 de Abril fui transferida para General Machado, Camacupa onde passei o dia da independência. Eu tinha a responsabilidade de todas as escolas primárias ao redor, do ciclo preparatório e do liceu, chamava alguns colegas, familiares e os que não conhecia e dizia, e agora? Temos que trabalhar e ajudar as crianças. Antes deste período, tive de assumir as três linhas de educação, primária, ciclo e liceu porque todos os portugueses foram-se embora. O Ministério da Educação mandava o dinheiro em sacos e selecionávamos o dinheiro em bom estado para ser aceito pelos comerciantes.
Então o que fazemos? já não havia meios de sobrevivência, a minha filha hoje quase com cinquenta anos, não tinha leite, não havia açúcar. A primeira solução foi fazer uma padaria. “Sempre trabalhei, o marido está em Luanda e como sustentarei a minha filha?” Foi uma situação geral do país. Ainda tentei fazer bolos, mas os meus bolos levavam muitos ingredientes e não eram rentáveis. Pensei, “vou abrir a padaria que estava abandonada, arranjar farinha e os outros ingredientes necessários”. Fui ao Lobito onde os comerciantes iam comprar o leite e a farinha. Fomos de camioneta, o Lobito ainda estava bonito, mas depois avisaram que tínhamos de partir caso quisessemos regressar porque os cubanos estavam à porta. Resultado, tinha leite e açúcar mas não tinha farinha. A minha filha tinha ficado em Camacupa. Saímos do Lobito a correr antes dos cubanos chegarem à entrada do Huambo e regressamos sem a farinha. A alternativa foi fazer uma bebida caseira, a kissangua forte para vender, sem vergonha nenhuma de dizer que era professora no liceu. Um senhor da minha aldeia disse-me, “Ernestina sinceramente tenho orgulho em ti porque não tens vergonha de fazeres isto sendo professora.” O meu marido conseguiu enviar um telex a dizer “Ernestina prepara-te para sair muito rápido e entrei em Luanda em Março de 1976.”
Até a independência só conhecia o Huambo e o Bié, pelo menos em Luanda as aulas já não eram as mesmas, os alunos já não tinham respeito pelos mais velhos. Eu dei aulas na Alda Lara até aos meus trinta anos quando saiu a ordem das mulheres se alistarem, perguntei, “eu vou para a tropa?” Confirmaram que até aos trinta anos as mulheres iam para a tropa. Eu disse “só se me forem buscar a casa.” A minha prima Cacilda, morreu em Dondi, foi uma das primeiras recrutas. Os homens fizeram dela o que quiseram, engravidou e não sabia quem era o pai, o bebe morreu no parto e ela morreu também de tristeza cerca de duas semanas após o parto. Fiquei traumatizada, provavelmente ainda tenha o cartão de alistamento. Naquela altura não esperava sair do meu país e não regressar. Imigrei para Portugal e a motivação principal foi a educação dos meus filhos, fiz tudo que podia fazer por eles, só não aproveitou quem não quis.
Contemporâneos filhos de professores e enfermeiros
Conheci o Faria Assis que dava explicações gratuitamente no lar onde eu morei. Ele foi morto no Huambo, se visse aqui no coração, meu Deus, não é possível! Fui a um funeral e estava a entrar outro quando me comunicaram ser o funeral do Assis Faria. Já era gente!
A Dra. Elizabeth faleceu a 25 de Abril de 2022, foi médica cirurgiã na missão da Chissamba, a mana Judite Luvumba também a conheceu. Chamo “mana” porque nestas escolas das missões onde passamos, as pessoas que encontrávamos eram tratadas por “manas”. A Dra. Elizabeth veio do Canadá com a vontade de ir à África, antes porém esteve em Portugal para aprender português, mas “ia falar português com quem? com os outros missionários?”, porque para além de serem professores e médicos a vontade era ensinar a bíblia aos africanos. Viajaram de Lisboa para o Lobito e de lá para o Dondi, onde aprenderam umbundu e depois de aprenderem é que foram para a localidade onde estudou o actual presidente de Angola. Este conheceu a Dra. Elisabeth e a enfermeira Edite, porque o seu pai quando saiu da prisão de São Nicolau foi transferido para a missão da Chissamba e depois é que a família se mudou para Silva Porto, cidade onde João Lourenço frequentou a escola industrial. Por estes factos, pensou-se na hipótese de convidar o Presidente João Lourenço para a homenagem a Dra. Elisabeth (Beth). O pai de João Lourenço era enfermeiro no hospital onde trabalhou com a falecida Dra. Elisabeth. Seus pais eram evangélicos, tal como os de muitos dirigentes importantes de Angola são oriundos de famílias educadas pelos evangélicos. Entre evangélicos consta que a oração noturna em casa de Agostinho Neto era lida por ele. O pai de Savimbi era professor, este conheceu bem a palavra (da bíblia) pelos pais.
Livros religiosos escritos em umbundu por angolanos
Quem começou a escrever a nossa língua umbundu foram os missionários ingleses, americanos e canadianos, que escreveram livros religiosos como bíblias e hinários. Tivemos uma tipografia no Dondi, na Bela Vista, hoje Catchiungo onde estes publicaram os livros, tenho alguns destes livros. A tipografia era próxima ao local onde a Judite Luvumba residiu, foi queimada em 1975, os restantes arquivos desapareceram porque naquela zona quase todos fugiram, há sempre quem fique, mas os que ficaram não tinham capacidade ou pensaram em guardar os resquícios. Perdemos muita coisa, muita coisa mesmo, as pessoas em vida podem retratar algumas componentes.
Nos anos 2000 o falecido pastor Henrique Etaungo escreveu e ensinou em Portugal hinários, livros bíblicos e dicionário umbundu, morreu a cerca de dez anos.
O evangelho de São Marcos foi traduzido de português para umbundu, trabalho realizado para o missionário americano em parceria com outra tradutora, a Judite Luvumba. O primeiro foi feito com outro Pastor do seminário de Algés. A Missão de Carcavelos tem todo respeito para comigo e ainda lá estou e penso que após a morte eu ficarei nesta igreja. Prestei trabalho de secretariado e fui muito ajudada.
Aprender, escrever e lecionar a língua umbundu
O meu avô quando foi preso pela PIDE em 1961, ficou três anos em Serpa Pinto, quando voltou falava português, mas até à data da sua prisão em Missombo não falava português para além de “obrigado e faz favor”. Falava e escrevia umbundu, enviava cartas com uma letra grande e bonita para a Bela Vista e depois para Nova Lisboa, no envelope era suficiente escrever o nome e o endereço em português e a missiva era em umbundu, eu já sabia ler e escrever em umbundu. Quem me ensinou a escrever e a ler o umbundu foram os evangélicos, nas missões evangélicas ensinavam a bíblia, líamos a bíblia, as histórias bíblicas, os seus heróis e reis, também os nossos avós, meus e da Judite aprenderam a ler por esta via. Comecei a escrever umbundu ensinado pela minha avó materna que já sabia ler e escrever. Não conheci os avós paternos, mas eram da mesma linha dos avós maternos e tenho a certeza que também sabiam ler e escrever. Todas as missões evangélicas de Angola ensinavam, todos aprendemos a ler e a escrever nas missões. Até sei que os nossos primeiros pastores angolanos não tinham grande conhecimento, só sabiam ler e escrever em umbundu porque para se fazer uma exortação tinha de ser feita na nossa língua para que a comunidade entendesse claramente, era sempre em umbundu e as nossas escolas eram só para africanos. Quem não soubesse escrever umbundu não avançava, nos primeiros tempos diziam: “você é africano, tem que aprender a língua da sua mãe.” Falo e escrevo bem umbundu, a Judite também, mas os nossos filhos não sabem falar umbundu, foi onde nós erramos.
Porém, não conservamos o ensinamento do umbundu aos nossos filhos. Por exemplo, a minha filha conhece algumas palavras do umbundu e do quimbundu porque a avó paterna falava com ela em kimbundu. Esta semana o meu Neto disse-me, “avo eu queria que a avó me explicasse bem esta música”, falava do Birim Birim Gongo Jami, cantada por Rui Mingas… Há semelhanças entre as línguas, sei que Gongo em umbundu e em quimbundo significa sofrimento. É muito triste ele não conseguir traduzir, “perguntou-me a avó não conhece mesmo ninguém?” Respondi-lhe, no local onde faço diálise há uma médica que fala kimbundo, prometi perguntar-lhe. Então, já perdemos muito! Tive um amigo português no tempo colonial, nascido no Congo e quando aquele país se tornou independente a família emigrou para Angola, encontramo-nos em Portugal e criamos proximidade, ele tratava-me por tia, éramos praticamente iguais, ele emigrou para o Brasil e ficava em minha casa quando viesse a Portugal e um dia disse-me “tia não está a ensinar a língua nacional ao seus filhos”, respondi que eles não se interessavam e respondeu-me, está a fazer mal!
Após a independência integrei a equipa de escrita do alfabeto umbundu no Instituto de Línguas de Luanda e o pai do actual Presidente de Angola, o Sr. Lourenço a do alfabeto Quimbundo, a mãe do actual presidente também falava umbundu. Na altura a directora do Instituto era de Silva Porto de cultura umbundu. Naquele tempo as pessoas evitavam identificar-se como sendo umbundos, falar umbundu era identificar-se como sulano, ela parecia não se aproximar muito dos sulanos para não ser conotada. O francês e o inglês também eram leccionados neste instituto, geralmente estudava-se uma língua internacional e uma nacional.
Alguns idiomas nacionais foram se unindo, por exemplo, o kyoko estava entre o umbundu e o baluba. Geralmente, as pessoas nascidas nestas regiões falavam duas línguas, pendiam para uma ou para outra. As tribos tinham poucas barreiras, conheço pessoas que não são umbundos mas falam umbundu como eu e também falam a língua deles, mas com o tempo deixaram de falar a sua língua. Em Sá da Bandeira também se falava fiote.
Não ficamos bem nem com a nossa língua nem com o português, pela televisão noto que se fala mal português em Angola, principalmente os jovens. Hoje não se conjuga plural-singular, (quem é que está aí? é as crianças” sei que o plural em umbundu é conjugado com a expressão “Omala”. Realça, quem fala uma língua nacional e quase não estudou acaba por não saber conjugar verbos e corresponder o singular ao plural em português. Angola desde a independência tem grandes problemas com o ensino.
Habitação Rural
A casa dos meus avós era de adobe, o meu avô era pedreiro, nasci em uma casa grande de adobe coberta de capim e a cozinha era separada do edifício principal. Ele construiu tudo como queria, a cozinha tinha fogão porque os missionários vendiam artigos antigos e o meu avô comprava. Não tínhamos casa de banho interna porque não havia condições de saneamento, por isso cada família construía uma retrete no exterior. Já havia uma direcção na construção rural. Uma aldeia tinha famílias com casas semelhantes às do meu avô, mas havia também casas de pau a pique de viúvas, pessoas menos favorecidas. A casa do meu avô tinha uma tranca e vegetação a demarcar os limites, trepadeiras ou árvores de frutos como as laranjeiras, macieiras, bananeiras ou mangueiras demarcavam os terrenos, mesmo que fossem as mesmas árvores de fruto cada família conhecia o seu limite territorial. Nas aldeias antigas havia a casa mãe com sala e quartos, a cozinha ficava à parte, pois era neste compartimento que as galinhas dormiam no galinheiro portátil e de manhã abríamos a tranca do galinheiro para elas saírem. Os cães e os gatos é que dormiam fora. Os idosos ou as viúvas viviam em casas onde a cozinha era um cômodo da casa principal. As casas tinham trancas, em 1986 encontrei uma casa numa aldeia em Portugal com o mesmo sistema de tranca. Durante o dia as casas ficavam fechadas com a tranca por fora, mas alguém podia abrir, na realidade as casas ficavam abertas de dia e fechadas à noite. Em Angola havia muitas casas dessas.
Alimentação Rural
Na época, a fruta não era vendida, “se os seus filhos gostassem da minha fruta podiam colher, não havia nenhum problema, ninguém dizia, o seu filho tirou a minha nêspera”. A divisão era para demarcar, para cada um saber isto é meu e aquilo é seu. Os nossos filhos brincavam juntos e na hora de comer comiam em casa do vizinho, a vizinha não dizia “menino vai embora” porque amanhã aconteceria o mesmo com o filho dela. Hoje isso não existe porque a situação não permite, não há dinheiro. Tudo que estava na nossa aldeia “se quiser comer, vou mesmo comer, vi um abacate no quintal da tia Felismina vou mesmo buscar e se os filhos dela viram outra fruta, batata doce, cana de açúcar podiam comer, mas não podíamos partir o arbusto da massaroca”. Tudo era comunitário, gostei muito desta fase da minha vida. A mãe apenas perguntava onde tiramos a fruta, respondíamos e a conversa ficava por aí.
Cada aldeia estava próxima de um rio, de um lado do rio os idosos construíam poços onde tiravam água para alimentação e do outro lado se lavava roupa. No sul de Angola temos dois períodos de cultivo, de Setembro a Outubro cultivamos lavras ao cimo do rio e de Junho a Julho cultivamos os mesmos produtos à beira do rio. A colheita era feita a cada dois meses, nunca faltava comida. A nossa terra é rica porque nunca faltava comida e a escolha do cultivo era decidida pela família.
A alimentação dos umbundos era à base de vegetais, comiam carne da sua criação, tinham cabritos, porcos, bois e galinhas. Por exemplo, quando se convidava alguém para almoçar em nossa casa, se cozinhava uma galinha do nosso galinheiro para fazer uma cabidela ou um churrasco, se convidasse uma família mandava-se matar um cabrito por ser necessário mais carne, não íamos ao talho, os animais criados por nós são para homenagear as nossas visitas e para ocasiões especiais como a morte de um familiar directo (pai ou mãe), se abatia um boi porque o nosso óbito é um ritual, vem muita gente, temos de chamar as famílias todas, é só dizer “fulano morreu, o funeral será dia tal”. O dia da chegada é diferente, por isso manda-se matar uma vaca. O animal era abatido e comido na altura do óbito, durante uma semana se ia cozinhando. Se fosse um porco este era conservado com base no método aprendido com os portugueses, que consistia em matar, cortar, cozinhar o porco em um tambor. A carne era conservada na banha do próprio animal, quando se quisesse comer cortava-se um pedaço meio cozido e se confeccionava a refeição, naquela altura em nossas casas não havia frigorífico.
Cada um cultivava os seus campos, as lavras eram grandes, por vezes o período do plantio ou da colheita estava a findar, alguém dizia “vou fazer a bebida tradicional quem quiser aparece”, toda gente aparecia, ajudava, ao final do trabalho se tivessem que levar algo para casa levavam e se um dia quando esta pessoa necessitasse recebia apoio dos outros. Quer dizer, alguém dizia que naquele dia havia Djuluka e fazíamos a ondjuluka.
Actualmente, dizem haver fome, sei que é verdade, mas acredito que nas aldeias não têm tanta fome porque continuam a fazer o que os seus mais velhos faziam antigamente e isso ajuda muito a população a ser auto suficiente. Hoje é difícil os jovens permanecerem nas aldeias, não sei para onde é que vamos! Na Europa há a tendência de pessoas residentes nas cidades voltarem aos campos porque a cultura biológica está em voga, mesmo no supermercado as pessoas têm o cuidado de ver se os produtos são biológicos, até porque são mais caros. As pessoas reconhecem a importância da agricultura e de viver no campo. Inicialmente não entendia o cuidado das pessoas a lerem os rótulos para analisarem a qualidade e a importância dos alimentos biológicos.
Indumentárias e Penteados
As avós tinham dois a três panos, panos para a igreja e panos para a lavra. Eu exigi ao meu avô a compra de um pano e ele comprou. Eu queria ter o pano, o quimono e o cinto, vesti por pouco tempo por esta indumentária ser interdita mesmo nas escolas missionárias. As mulheres a partir dos trinta anos usavam panos, podiam ter vestidos e saias, mas o pano era a indumentária do dia a dia e quando iam à igreja usavam vestidos ou saias e calçavam sapatos.
Os alunos da escola primária tinham batas, mas nas nossas aldeias a instrução primária era leccionada pelos tios, os estudantes na aldeia não tinham bata, usavam o seu calção e camisa lavada e alguns tinham sapatos, estávamos sempre bem penteados à moda portuguesa. As meninas não iam de tranças a escola, todos os dias penteavam, de manhã desmanchavam as tranças e soltavam o cabelo, esticando-o o melhor possível com o pente de pau. Na escola primária não se usava penteados com tranças africanas por ser sinónimo de transmissão de piolhos. As tranças eram desmanchadas no percurso de casa para a escola e refeitas no percurso inverso. O júri do ensino público podia aparecer na escola das missões e não as podiam encontrar com os penteados tradicionais. Na escola católica as meninas também não podiam usar tranças pelo mesmo motivo.
O pano e o quimono que pedi ao avô não eram para levar à escola, vestíamos calças, saias, vestidos e andávamos descalços, com o saco onde colocávamos todos os nossos haveres e quem tivesse peças de indumentárias a mais, as escondia. Corríamos tanto que o frio desaparecia e se usássemos casacos amarravámos a cintura, e no regresso a casa íamos trançando o cabelo e destrançavámos no dia seguinte a caminho da escola, pois os pentes artesanais faziam parte dos aparatos escolares. Enquanto o cabelo das outras meninas cresce, o nosso mesmo que cresça temos que tratar sempre para não ficar encolhido, na escola primária se o cabelo ficasse encolhido a professora corrigia o penteado com o pente europeu e penteava com força, doía, por isso faziamos tudo para evitar sermos penteadas pela professora da escola primária e também não se usava lenços na cabeça.
A indumentária da educação física era um calção curto e uma saia um bocadinho acima do joelho para não mostrar as pernas e uma camisolinha subida para tapar bem, fazíamos tudo que a professora fazia, mas não se mostrava as pernas, tudo tinha que estar resguardado.
As condições de aprendizagem nas escolas das missões
Os meus professores eram jovens africanos, preparados pelos missionários em umbundu, os missionários não sabiam umbundu o suficiente para nos ensinar. Os nossos mais velhos aprenderam e estudaram em umbundu, mas tinham todo interesse em aprender português, tinham uma visão diferente dos missionários e ensinaram-nos o português e o umbundu. Também havia madres e padres católicos, geralmente portugueses que ensinavam na escola primária e nos liceus em português.
Na missão onde estudei, raramente havia alunos de outras classes sociais, a maioria era muito pobre. No sul de Angola a partir de Junho era frio, a minha mãe tinha o cuidado de me comprar o casaquinho, mas as minhas colegas não tinham casaco e muito menos sapatos, eu tirava os sapatos e escondia em um arbusto para ir descalça a escola como as minhas amigas e escondia o casaco no saco. Não sei o que se passava na minha cabeça, era para não ser diferente, se fosses diferente as tuas amigas não te queriam. A minha mãe depois comprou-me uma pasta para eu pôr os livros e estarem separados do lanche, do casaco e do pente. Deixava a pasta em casa e continuei a colocar tudo no saco, pensava “eu e as minhas amigas somos iguais” e isto estava na mente das crianças, pensava “se elas têm frio eu não sou diferente das outras” e naquele tempo ninguém roubava os meus sapatos escondidos por baixo da copa de um arbusto. O meu grupo é este, então “nós não temos casacos, nós não temos casaco! Vamos dividir o pão e sem manteiga, comemos pão, massaroca e a fruta da época”. O professor não obrigava-os a partilhar mas acompanhava o ritmo do grupo.
A civilização da escola primária das missões era diferente a da escola pública
Depois da instrução primária, os que fossem para escolas mais avançadas as turmas já eram mistas, nós e as outras, em raça e sexo, no meu tempo as turmas eram separadas, escola de rapazes e escola de meninas. Nesta altura fazíamos tudo para nos compararmos aos outros porque com mais idade já conseguíamos pentear melhor, tudo tinha que ser melhorado seguindo o padrão europeu.
Independentemente da idade, os nacionais podiam iniciar os seus estudos primários nas escolas das missões e mais tarde esta enviava os alunos para as escolas mais avançadas e nestas escolas os portugueses avaliavam e concluíam “eles não sabem nada!” Tínhamos que saber muito mais que os nossos colegas, você pensava, estudava e chumbava porque ainda não conseguiu atingir aquele nível de escolaridade. Nas missões se estudava até ao segundo ciclo, foi o meu caso e o da Judite estudamos na missão do Dondi até ao primeiro ciclo. Nós estávamos muito mais avançados porque os professores que davam aulas aos nossos grupos tinham que ser muito rígidos, por exemplo, o padre Luís Ribeiro na missão do Dondi preparou-nos em português, história e geografia, outro professor em desenho e trabalhos manuais e os dois capitães do exército português, o Lima lecionava em ciências da natureza e o Valente em matemática, nunca encontrei um professor de matemática como o capitão Valente, no exame fiz todos os exercícios e o Padre Luís Ribeiro, professor de português era bem rígido, pois a nossa pronúncia ainda estava umbundizada, ele gozava tanto connosco, perguntava “o quê, o quê repete?”, nem tínhamos coragem de repetir… foram bons tempos. Quando fizemos o primeiro ciclo éramos vinte e nove, dispensaram vinte e sete, chumbou um colega e outro foi a oral. Fazíamos a terceira classe na missão e partíamos para o Dondi, lá repetimos a terceira ou a quarta classe até chegar àquele nível necessário.
As gerações mais novas frequentaram o ensino primário público.“As da minha geração estudaram na escola das missões e as mais novas estudaram na escola primária. As nossas mães tiveram muitos filhos, a minha mãe teve dez filhos, sou a primogénita”. Os nossos avós tinham interesse em estudarmos nas missões para aprendermos a bíblia, mas diziam “prefiro que voltes da escola reprovada que mal comportada”. Os pais começaram a perceber que o ensino da escola primária era melhor que o da missão, o da missão não era mau, mas a civilização dos estudantes das missões era diferente da da escola primária da vila. Os nossos professores ensinavam bem, quando saíssem da escola tentávamos falar português, mas a pronúncia não era igual a dos alunos da escola primária, e os mais velhos deram conta e diziam se for para aprender umbundu ensinamos nós, tive dois irmãos mais novos que estudaram na escola pública e no final do ano as professoras convidaram os meus irmão a jantarem em casa deles, ouvia dizer que os meus irmãos estavam a progredir.
As crenças Populares
Desde criança gostei da igreja, o meu avô era ancião da igreja, cresci neste espaço e o que fazia, fazia o bem, mas nem toda a gente gostava de ver as coisas bem feitas. Passei momentos trágicos nas missões, na escola MEANS. Aos catorze anos fui para o internato das meninas da Missão do Dondi, distanciado do internato dos rapazes. Eu era inteligente, estudava e não tinha dificuldades, durante o primeiro ano na escola MEANS falava-se muito de bruxas, por essa razão fui considerada bruxa, diziam que a noite eu roubava a inteligência das outras meninas. O pai da minha amiga Judite era o meu professor e um dia vui-me a chorar, pensou “como era possível?” Jantávamos às seis da tarde, íamos a casa lavar os dentes e voltavamos à sala de estudo até às nove da noite. Os professores vigiavam os estudos e eu sentava-me longe das minhas colegas, fugia delas por saber que nenhuma se sentaria ao meu lado e ver a sua inteligência a ser roubada. Um dia este professor foi ter comigo e pediu-me para limpar as lágrimas e disse-me:
“enquanto estás a chorar na carteira, as tuas amigas estão a estudar e amanhã se não responderes às perguntas da professora as tuas colegas ficarão felizes, limpa as lágrimas e não te quero ver sem estudar, sabes isto chama-se inveja. O que elas querem é que tu não tenhas capacidade de responder.”
Jamais me esquecerei deste meu professor. As igrejas das missões tiveram muito disso, se tivesses algo diferente, uma roupa, etc., tudo levava ao bruxedo. A igreja é feita pela população, não eram os missionários que ensinavam estas crenças, eram pensamentos da população, no meu caso fiquei traumatizada.
PÓS COLONIAL
Leccionar na Escola Alda Lara (1976-1983)
Durante a formação de professorado em Lisboa encontrei a Dra. Gabriela Antunes (Gaby), numa reunião profissional e ainda recordava-me dela porque no governo de transição ela trabalhou com o Ministro Jerônimo Wanga, o responsável pelo despacho da minha transferência de Silva Porto para Luanda. Quando cheguei a Luanda encontrei o Dr. Dário de Melo que já conhecia e disse-lhe que queria dar aulas. Deram-me a escolher entre a escola Alda Lara e a Dom João I, recebi uma mensagem escrita em papel com a recomendação de ser entregue dois dias depois à Dra. Gabriela Antunes, uma vez que este tinha acabado de chegar do gabinete dela. Depois deste período entreguei a mensagem à Dra. Gabriela Antunes que identificou o nome pelo despacho do Ministro e diz-me: “não podes ficar aqui, devias regressar e leccionar em Silva Porto devido a falta de professores no interior de Angola.” Ela orientou como chegar às escolas, a Dom João I já não tinha vaga, na escola Alda Lara encontrei o Dr. Jorge que também conhecia de Silva Porto.
Quando eu dava aulas em Luanda apercebi-me que teria de lidar com os alunos de forma diferente porque nem todos os pais queriam que o professor batesse o pé e isso estragou muito a nossa sociedade, “hoje, quem chama atenção sou eu porque sou mãe ou pai”, o miúdo ainda não tem consciência formada e pensa, “se este senhor me disser alguma coisa, conto ao meu pai”, a situação hoje é diferente da educação antiga.
Deixei de dar aulas em 1983, naquela época havia muita gente a querer estudar que não teve possibilidade de estudar no tempo colonial. Quando os portugueses saíram, os governantes diziam, “hoje toda a gente tem que estudar”, mesmo que os pais não fossem, os miúdos iam matricular-se. Participei no processo de matrícula porque nesta altura os professores ajudavam devido ao grande fluxo. A uma certa altura, disseram-me para ficar em casa e se precisassem chamavam, porquê? Nenhum aluno saía da fila sem se matricular, os alunos diziam: “querem se matricular, fiquem na fila da Professora Ernestina”. A ordem era todos vamos estudar, nem que fosse sentados numa lata de leite ou por baixo de uma mulemba, por isso eu dizia que todos têm de ser matriculados, “então não se diz que todos devem estudar!” Colaborei até ao momento em que me mandaram ficar em casa, “Fica em casa! Fico em casa? Porquê?” Não fiquei sem salário, pagaram-me. A partir desta época as escolas começam a ficar abarrotadas de alunos e inicia o processo de abertura dos Institutos Médios.
Estudante de Biologia da UAA – 1983
Fui para a UAA estudar medicina, sempre tive o sonho de ser enfermeira, pois no meu tempo não se lecionava medicina em Angola. Durante os anos em que leccionei na escola Alda Lara ocorreram as “confusões” em Luanda e sempre pensei “eu não paro por aqui”, por isso matriculei-me primeiro no curso de biologia, mas antes fiz o curso de análises clínicas e laboratório nos primórdios da independência leccionado por professores cubanos. Fui sempre uma boa aluna, estagiei no hospital Dom João III, no Prenda. Quando desiste sob influência do esposo a directora do curso até chorou e aconselhou-me, “Ernestina não faça isso por ser boa técnica”, por isso continuei a dar aulas na Alda Lara até o marido dizer-me para me reformar. Mais tarde, decidi matricular-me em biologia, pensei ser que era meio caminho andado, depois do primeiro ano mudo para medicina. Porém, o meu marido decidiu emigrar para Portugal devido à educação dos miúdos, e eu sim, “always yes”, e viemos para Portugal.
Professora na Escola Técnica em Lisboa
Trouxe os meus papéis e a Embaixada de Angola disse-me não haver nenhum pedido para a única vaga de medicina, porém aqui em Portugal não tinha ninguém para me apoiar e a decisão era imediata, escolhi tratar da casa, do marido, dos filhos…e como já tinha iniciado o magistério primário após concluir o professorado superior na Universidade Nova de Lisboa arranjei emprego em uma Escola Técnica em Lisboa. Nesta altura, aqui em Portugal dar aulas não era brincadeira, também havia “outras confusões”, tive medo, disse “como vou dar aulas acima da instrução primária”, tive medo, “eles vão aceitar mesmo que eu fique?” Desisti, os alunos gozavam chamando “Preta” e praticamente não conseguia trabalhar porque sinceramente tinha medo. Mesmo assim, leccionei pelo menos quatro anos na Escola Profissional perto da Estação de Santa Apolónia em Lisboa até a doença começar, parei e nunca mais dei aulas.
A última residente no Seminário Evangélico de Carcavelos (1982)
Primeiro residi na residência 122 do seminário em Lumiar e mudei para o seminário de Carcavelos após a separação porque o seminário estava ligado à residência. Na época pedi autorização ao missionário suíço da Igreja Baptista pela razão dos meus filhos estarem em internatos, a filha de dezasseis anos estava em um colégio em Sintra e o filho de doze anos estava em Porto Alegre, residiam em pontos opostos, falei com o pastor que me disse, aquilo está a cair, mas se conseguires la ficar…, pedi a minha amiga Judite para me ajudar na limpeza, cheguei à porta e pensei… A residência principal tornou-se num armazém, limpamos a biblioteca anexa a um quarto, cozinha e casa de banho. Como o campo ao redor estava abandonado, alguns agricultores cultivavam produtos e com eles aprendi a ferver batata rena com casca e retirar a casca após estar cozida. Vendiam esses produtos um pouco acima do preço, cerca de 1 ou 2 escudos portugueses. Residi naquele espaço cinco anos, a minha amiga Judite ainda plantou canteiros, até o dono do terreno bater à porta e dizer que iria derrubar o imovel para construir a urbanização próxima à esquadra da polícia em Carcavelos.
Aluguer de casas a imigrantes angolanos nos anos 1980
Mesmo com capacidade financeira ou com fiador, alugar uma casa não era fácil na condição de imigrante angolana em Portugal. Alugar casas era difícil porque as pessoas pensavam que nós não iríamos tratar da casa. Uma vez, uma amiga minha com pronúncia portuguesa telefonou a um senhor para alugar uma casa, o proprietário disse para ela aparecer, quando ela foi ver a casa, a resposta foi, “senhora peço desculpa, mas já tenho cliente.” Eu digo o que fazer se não tiver dinheiro para alugar uma casa, “oh Deus, como é que eu vou fazer?” falei, aqui e ali…Até aquela data as pessoas diziam se precisares de um fiador eu estou aqui, mas nesta altura as pessoas que me prometeram não se predispuseram. Dobrei os joelhos e perguntei: “Oh Deus para onde vou hoje?” Na altura a Judite e eu estávamos a traduzir o evangelho de São Marcos com um missionário americano que pagou a fiança para compra da minha casa. Encontrei um angolano que trabalhava no ramo imobiliário, responsável pela intermediação junto a um luso angolano vendedor de casas que iria negociar o aluguer. Este aconselhou-me a compra da casa em nome de um filho, decidi comprar em nome da minha filha mais velha por estar a frequentar o segundo ano da universidade e ser o próximo membro da família apto a encontrar um emprego. O vendedor prometeu tratar de toda a papelada, então o missionário pagou a fiança. Entrei nesta casa chorando de felicidade por sair daquele sítio. As três primeiras rendas foram provenientes do serviço prestado à escola do Dr. Joffre Justino, nesta escola também estudaram angolanos. Não sei explicar como estou aqui, mas sei que a minha família trabalha para pagar esta casa onde resido há quase trinta anos.
A Residência Académica, Nº 122
Nos anos 80, após a morte do Presidente Neto, ocorreu a segunda saída de quadros angolanos para Portugal. Em Lisboa ficamos hospedados na conhecida residência número 122 das igrejas evangélicas. A histórica residência hospedou célebres líderes e intelectuais angolanos, entre os quais, o Presidente Neto, Jerônimo Wanga, Jonnhy Pinnock Eduardo e o Pastor Emílio de Carvalho, Bispo da Metodista e sua esposa Dona Marilina, cujos 2 primeiros filhos nasceram no Dondi. Havia muitos quartos para estudantes, os seminaristas residiam e estudavam no seminário de Carcavelos e os estudantes de outros cursos residiam na 122. Para além, de angolanos residiam outros membros das igrejas evangélicas oriundos das outras províncias ultramarinas entre os quais moçambicanos.
O critério principal ao acesso era pertencer a uma igreja evangélica, cada igreja tratava dos pormenores com a residencial 122. A maioria dos estudantes era bolseiros dos missionários maioritariamente canadianos e norte americanos, responsáveis pelo sustento da residência e pela hospedagem dos estudantes. Estes recebiam a verba para pagar a universidade, em suma era um lar para estudantes. Embora as bolsas de estudos fossem gratuitas, havia necessidade de um pastor atestar esta condição.
Depois da independência vinham poucos estudantes das igrejas, presumo que se deva a perseguição a algumas missões como as do Dondi, da Chissamba e do Andulo. Consequentemente, a residência 122 abriu oportunidades a outros estudantes e a alguns funcionários do estado. Hoje em dia os missionários americanos e canadianos já não suportam esta residência, quem dirige são os actuais líderes portugueses da igreja evangélica. Nesta residência ainda se praticam costumes do século passado como o culto aos domingos na igreja.
Formação superior e apoio do governo Português a educação dos imigrantes
Até aos anos 90 o governo português ajudou muito os africanos e os pobres portugueses que estudavam nas escolas para os mais necessitados. As condições e a ajuda eram semelhantes às dos internatos onde vivemos durante a infância em Angola, incluindo a separação por género em internatos de rapazes e de meninas. Aqui perto de Cascais, depois da Parede havia uma casa de estudantes, outra em Porto Alegre em Alcácer do Sal onde o meu filho estudou em regime de internato, havia internatos do estado português para todos.
Eu pedi a bolsa para a Faculdade ao governo português para custear o curso de professorado na Universidade Nova de Lisboa, a secretaria aconselhou-me a pedir a bolsa porque o governo português estava a ajudar os africanos, fiz a carta, mas precisava do cartão consular para evitar a duplicação do benefício das bolsas de estudo concedidas, pois havia angolanos com bolsa de Angola e de Portugal. Como já tinha o cartão consular trazia o meu pedido e a resposta do governo português, mostrei a carta ao funcionário da embaixada, ele leu, estava escrito mostre o seu cartão consular da embaixada para a inclusão do seu nome na lista dos candidatos à bolsa de Portugal. Quando este viu a minha inscrição consular, comentou “natural de Silva Porto, exclamou, do Bié?” Disse-me “vá ligando”, e nunca mais me disseram nada! A bolsa não era de Angola, era do governo português para ajudar os angolanos, não recebi a bolsa portuguesa, mas fiz o curso dentro do prazo, comecei aos 43 anos, naquela altura o curso era de quatro anos, comecei em 1987 e concluí em 1991.
Relações difíceis entre estudantes angolanos durante a guerra
A Universidade Nova de Lisboa começou nas casernas militares e depois foi construído o edifício principal. Vinham muitos militares do governo estudar na Universidade Nova de Lisboa e estávamos com medo, muito medo dos militares. Como eles estavam à vontade, quem se coibia rapidamente se notava o medo. Quando houve a tomada do Cuito Cuanavale, no pátio da Nova de Lisboa estavam militares, passei por eles para entrar no bar, sentei-me um militar olhou para mim e ele estava a chorar, ele olhava para mim com um ódio, chorava. Pensei, “hoje tenho de fazer tudo para não ficar sozinha, ficar entre as moçambicanas”. Hoje vejo que já não há ódio, houve ódio nos anos 80 e 90. Você não dizia de onde era!
Os casos de angolanos não reformados em Angola e em Portugal
Trabalhei na escola profissional próxima à Estação de Santa Apolónia até começar o meu problema de saúde que me levou à reforma antecipada. Recebo a reforma mínima. Uma prima enviou-me o meu processo de trabalho de Angola para tratar da reforma referente ao período de trabalho colonial e o pós colonial em Angola. Não consegui a reforma do serviço prestado em Angola no período colonial, a ser regularizada em Portugal e foi em vão a tentativa de recuperar o período pós colonial por via de um escritório de advogados em Angola. O período de trabalho colonial não contou para a reforma em Portugal e o período laboral em Angola também não resultou em meu benefício. Uma das razões de não regressar ao país e poder beneficiar da reforma foi o tratamento da diálise realizada a cada dois dias. Os boletins oficiais do tempo colonial existem e apresentam dados dos registos dos períodos de serviço prestados por angolanos em Angola. Eu perdi os anos de serviço, há casos semelhantes de angolanos que não conseguiram se reformar nem em Angola, nem em Portugal.
Os angolanos residentes em Angola precisam conhecer como foi a adaptação a Europa, alguns têm a percepção que estar na Europa per si é um êxito. Uma considerável percentagem da emigração visava a preservação do nível de ensino dos filhos. Os pais que enviaram os filhos para estudar em Portugal fizeram muitos esforços, eram funcionários públicos ou a mãe também trabalhava em outro lugar, os pais puseram tudo o que possuíam na mão dos filhos, são poucos os filhos que vieram nestas condições e estudaram. Os angolanos para fazerem compras em centros comerciais alegavam qualquer coisa, como o frio para comprarem roupas e em muitos casos, ao invés de elevarem o nível de estudo elevaram o nível de discotecas e de outras coisas supérfluas, muitos voltaram para a terra e não levaram nada. Nós os pais bastava os filhos dizerem qualquer coisa e dávamos tudo. Na altura lá em Luanda, qualquer coisa que se fizesse dava dinheiro. Antes de emigrar algumas pessoas propuseram trazer os meus filhos e eu respondia “os meus filhos só vão para Portugal quando eu for”, não quer dizer que eu fiz bem!
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