Filomena Kitumba filha de uma numerosa família oriunda da província de Malanje é uma das cinco filhas de Lourenço Manuel da Silva, teve quatro filhas todas formadas pelo Magistério Primário, Josefina, Fátima, Assunção e Filomena foram professoras do segundo ciclo no período colonial nas província de Malange, Kuanza Norte, Kuanza Sul, Cabinda e Luanda tendo sido professoras no ensino médio no período pós colonial. Seus irmãos seguiram outras profissões tendo se destacado como políticos de fortes convicções que se juntaram à causa de libertação nacional antes do 25 de Abril e ascenderam a cargos importantes no partido no poder até 27 de Maio de 1977. Cresceu no Bairro Maxinde em Malanje e depois da independência foi para Luanda com a sua família onde reside na Vila Alice até à data presente.
Chamo-me Filomena da Luz Lourenço da Silva Fernandes, mais conhecida por Filomena Kitumba, nasci em Malanje a 8 de Novembro de 1949. Sou professora reformada, primeira como professora primária, depois passei pelo ensino secundário e neste momento estou reformada.
Pode contribuir para este repositório de memória oral da História Social de Angola narrando factos da sua juventude?
A minha juventude foi muito bem passada, os momentos mais áureos da minha vida foram precisamente entre os 14 e os 15 anos, nesta altura apareceram na nossa província os missionários espanhóis, os bascos, eles contribuíram muito para o nível de desenvolvimento social da juventude, sobretudo no nosso bairro, que era bem conceituado, contribuíram muito para elevação do nível social da juventude através de palestras sobretudo na educação, exibição de filmes, cursos para a juventude, pois nem todos tinham possibilidade de frequentar à escola, foi o momento áureo da minha juventude, éramos solidários e amigos uns dos outros, foi uma fase da nossa vida muita áurea.
Na minha juventude não tínhamos televisão nem redes sociais, mas ouvíamos rádio, fazíamos leituras e participávamos em colóquios, palestras, ouvíamos novelas rádio difundidas, existia muita camaradagem e solidariedade, embora não faltassem alguns conflitos que eram particularmente superáveis. É importante frisar a solidariedade existente na época existia, as famílias eram alargadas, vivíamos com os avós, tios e primos em casa, as mesas eram enormes. Os nossos pais preocupavam-se com a nossa educação, instrução e incentivaram-nos a cultivar os valores positivos das nossas culturas.
Os filhos dos familiares que moravam distantes das capitais ficavam a estudar em casa destes e eles eram os encarregados de educação. Havia grande respeito pelos amigos dos pais, compadres, vizinhos e eram tratados por “tio” e podiam chamar-nos atenção por qualquer falha que cometêssemos. O papel das famílias era muito importante, as amizades eram desinteressadas, apenas por amizade e afinidades, mas era preocupação quase geral possuírem um emprego que garantisse a estabilidade familiar.
Quais as etapas marcantes dos seus tempos de aluna e estudante?
Tive alguns momentos marcantes, uns positivos, outros negativos, como estudante, na época colonial havia algum racismo e isso fazia-se sentir em relação á alguns aos professores, aos colegas, mesmo em relação aos castigos, eram mais rígidos em relação aos africanos, os angolanos eram os mais prejudicados. Eu não tive grandes problemas porque já morava num bairro urbano, mas a maior parte dos meus colegas eram portugueses, notava-se uma certa diferença , pessoalmente não me afetou muito, mas em relação a outros havia essas diferenças de tratamento. A principal diferença era a discriminação por estrato social, moradores dos bairros urbanos e suburbanos.
Naquela altura, a educação não era muito fácil porque havia escolas para os assimilados e não assimilados, sobretudo as escolas estatais eram para os filhos dos portugueses e africanos assimilados e geralmente as outras crianças cujos pais não eram assimilados, que não tinham bilhete de identidade iam para as escolas das igrejas católicas e protestantes, que também muito contribuíram para elevar o nível educacional, social, moral e cultural especialmente da juventude.
O assimilado era o que já tinha assimilado a cultura portuguesa, já comia à mesa como os portugueses e até para ter o bilhete de identidade tinha que ter mesa, cadeiras, camas, a alimentação e os hábitos também tinham de ser parecido aos dos portugueses, para auferir o grau de “civilizado”. A aquisição do bilhete de identidade permitia aos filhos frequentarem as escolas estatais, sem este documento só podiam frequentar outras escolas, como as das Missões.
A primeira professora a leccionar em português na Escola Metodista de Cabinda
Inicialmente leccionei no ensino primário na província de Cabinda, numa escola missionária protestante, onde grande parte dos alunos eram provenientes de bairros não urbanos, depois fui para uma escola primária estatal na mesma cidade. A diferença que se verificava era a nível de proveniência da “classe social mais elevada”. Os programas eram idênticos para todas as escolas. Posteriormente leccionei nas províncias do Kwanza Sul e Luanda, sempre em escolas estatais (urbanas).
Como professora, comecei a dar aulas na Província de Cabinda, gostei muito, foi o meu primeiro emprego, foi lá onde comecei a gostar do ensino, a profissão que tinha abraçado, lidar com crianças, partilhar vivências, aprendi muito com elas, com os colegas, foi a partir daí que afeiçoei-me à profissão de professora. Uma coisa que me marcou muito foi o facto de quando fui dar aulas em Cabinda as crianças não falavam português e consegui através dos colegas que elas aprendessem a língua portuguesa. Os meus colegas eram todos naturais de Cabinda, eu era a única professora que falava português e consegui ensinar português aos alunos aplicando o método global incluindo a apresentação de objectos, ensinando a pronúncia, eles foram aprendendo e a partir deste método foi possível reverter o ensino em língua local para o português.
Com o decorrer do tempo e fruto das guerras de libertação, foi existindo maior abertura, já não existia muita diferenciação, já frequentávamos as mesmas escolas primárias e o acesso às escolas secundárias tornou-se gratuito.
Quer partilhar outras memórias relevantes sobre a habitação, alimentação, saúde, tempos livres (cultura, desporto, etc.) e o emprego em Angola?
A habitação variava muito, havia os com melhores posses que já viviam nas zonas urbanas onde a habitação já era considerada aceitável, havia habitação urbana, periurbana e subúrbios. Nos bairros suburbanos muitas habitações eram de adobe, de pau-a-pique, cobertas de capim e mais tarde já existiam casas cobertas de zinco e de telha.
À medida que o ensino se foi massificando, os empregos melhoraram e consequentemente também a habitação. Nessa época, era preocupação dos filhos após terminarem os estudos arranjarem empregos para ajudarem os pais a melhorarem as condições de vida. Os filhos ajudavam os pais a melhorar a habitação e assim as condições socioeconómicas das famílias melhoraram, pois os objectivos dos pais naquela altura era pôr os filhos a estudar para que eles não passassem o que eles passaram, que conseguissem arranjar emprego de preferência na função pública para melhorarem as condições da habitação, da alimentação, do vestuário, em suma os filhos estavam conscientes desta situação. Os pais obrigavam e conversavam muito para que estudássemos e podermos evoluir porque só assim poderíamos alcançar patamares mais altos.
A alimentação variava consoante as possibilidades de cada família, umas mais abastadas que outras, dependendo da sua profissão. Existiam lavras familiares, hortas caseiras, capoeiras e criação de animais. No nosso bairro existia o Beiral, que prestava assistência alimentar aos mais carenciados, sobretudo às crianças e aos idosos. Os pais funcionários da função pública, outros trabalhavam como mecânicos, electricistas e ainda outros com menos posses como os carpinteiros e pedreiros, todos eles incutiram aos filhos a necessidade do estudo, do trabalho sério para que pudessem singrar na vida.
A saúde não era descurada. Existiam hospitais nas cidades e nos municípios, postos médicos em todas as circunscrições, unidades de saúde estatais e religiosas para responder às necessidades de saúde da população. Existiam também auxiliares de família prestadores de serviços de educação às famílias rurais no que tangia à alimentação, saúde, higiene pessoal e familiar.
O Centro Social Maxinde
Nos nossos tempos livres…, tudo dependia das festas, havia festas familiares, nos clubes, mas sobretudo as festas familiares, nos bairros, com bailes para que a juventude fosse divertir-se e na cidade havia os clubes pertencentes a uma determinada classe social. Os jovens também se organizavam em grupos, faziam conjuntos nas próprias casas e em determinados locais para as pessoas se recrearem. O Centro Social de Maxinde, era uma obra social promovida pelos padres espanhóis bascos, que muito contribuiu para elevar o nível espiritual, social e cultural, sobretudo da juventude sem discriminação de género, de estrato social ou outro.
Para além da acção missionária preocupava-se com a dignidade do homem, promovendo actividades como aulas de alfabetização, puericultura, culinária, corte e costura, desporto, exibição de filmes, peças teatrais em que participavam todos os jovens, especialmente os mais desfavorecidos. Auxiliavam também as mães viúvas, porque naquela altura, na década 60/61, foram mortos muitos homens. Orientavam muitos rapazes e raparigas órfãs de guerra a formarem-se.
Como fruto da sua actividade e não só muitos destes jovens foram e são hoje excelentes quadros no pós-independência, ministros (as), secretários de estados, governadores, até outros grandes quadros que dignificaram o país ao nível intelectual, social, cultural e religioso.
Naquele tempo as pessoas eram solidárias, eram familiares entre conhecidos, compadres, amigos dos pais, tudo com base na afinidade, sem interesses, tudo era permitido, casamentos, noivados, namoros porque era um ambiente familiar e saudável.
O Papel dos Padres Bascos em Malange
Nos meus tempos livres íamos a igreja, tínhamos um coro, como eu disse os padres bascos organizaram uma obra social enorme onde havia cursos de costura, culinária, enfermagem, retiros espirituais, jogos, viagens de comboios, que eram essencialmente retiros nas localidades mais próximas da capital, íamos visitar outros centros religiosos, centros de saúde que existiam em várias localidades administradas por religiosos nacionais e espanhóis.
Os alunos faziam colónias de férias para outras Províncias, os mais estudiosos podiam ir a Portugal passear, fazer cursos de portugalidade, que eram uma espécie de colónias de férias, umas realizavam-se mesmo dentro do país (para as várias províncias), para Portugal era reservado aos alunos angolanos que mais se destacassem nos estudos, também era reservado aos funcionários públicos que iam de licença graciosa.
Nos bairros também tínhamos as nossas actividades, consoantes as necessidades de cada um. Os tempos livres eram organizados de forma variada como havia jogos na escola também já treinávamos, os rapazes jogavam futebol, as raparigas basquetebol e o andebol, depois evolui para os clubes desportivos, como o Clube Atlético e o Ferrovia.
Até nos bairros mais desfavorecidos onde se jogava com bolas de trapo, sempre respeitando os pais, as horas das refeições, de estudo, tudo com uma grande solidariedade vivia-se de uma forma saudável. Os pais eram muito rigorosos, chamava-mos tios aos amigos e aos vizinhos, havia afinidades. São os momentos marcantes que tenho da minha infância e juventude.
Pós-Independência
Depois desta experiência, fiz a formação como professora primária, continuei a dar aulas, depois fiz a formação em 1974, na altura tínhamos sido transferidos para o Kwanza Sul, fiz um curso no Magistério em regime de voluntariado, na altura só existia o Magistério Primário em Benguela, matriculei-me, mas depois surgiram problemas das “guerras da independência” e viemos terminar a formação em Luanda em 1975/76.
Depois continuei a dar aulas, era a altura da transição para a independência e os nossos professores portugueses estavam todos a ir embora, alguns professores ficaram e os que me marcaram foram o actual Ministro da Hotelaria e Turismo, o Dr. Filipe Zau, a professora Antonieta e o seu irmão (santomenses), o professor Jacob de Menezes e mais dois, cujos nomes não me recordo. Estes eram os únicos africanos que tínhamos na época porque a maior parte eram portugueses, foi nessa altura que começámos a ter professores africanos, angolanos, santomenses e a partir daí continuei a dar aulas no ensino secundário.
Nesta fase, o que marcou-me foi o facto de estarmos independentes e ver os alunos a brilharem e sermos professoras numa Angola independente.
Qual a sua opinião sobre a importância da sua geração partilhar as suas memórias sobre a sua juventude com as gerações actuais?
A minha opinião sobre a importância dessa partilha é encorajar e demonstrar aos jovens que é possível viver em harmonia através do trabalho honesto, lutando sempre por um objectivo, com os meios disponíveis, através do estudo, um pouco de sacrifício, camaradagem, amizade e solidariedade. Alcançar os objetivos sem atropelos nem inclinação a vícios. Dedicação à leitura, a programas educativos, as actividades desportivas e recreativas.
Quero dizer aos jovens que estudem muito, pois o estudo e o trabalho é que vai fazer deles grandes Homens no futuro porque nós somos hoje o que somos porque tivemos uns pais que nos ajudaram e cuidaram de nós. Na época colonial, as coisas também não eram fáceis, mas eles perseveraram em pôr-nos na escola e nós aceitamos, porque só a educação é que vai fazer com que a nova geração evolua e que se abstenha dos maus vícios para poderem ser grandes Homens no futuro.
As famílias também ajudavam muito as crianças, os pais levavam os filhos à escola, acompanhavam-nos em todas as suas actividades, aceitávamos o que os pais diziam e a própria sociedade também exigia, pois nós só podíamos alcançar algum objectivo se tivéssemos estudado, aprendido uma profissão ou qualquer coisa que valesse para a vida, por isso acho o que eu tenho a transmitir a nova geração é que “trabalhem, estudem, preocupem-se em elevar o seu nível de desenvolvimento social para que possam enriquecer pessoalmente para serem o futuro de amanhã”.
Tudo o que aprendemos na juventude continua a fazer parte de nós. Aconselho os jovens a lerem muito, no meu tempo nós não tínhamos redes sociais, mas evoluímos! A televisão surgiu depois da independência, ouvíamos música, líamos muito, ouvíamos rádio, muitas novelas eram passadas na rádio, eram difundidas na Rádio Clube de Malanje. Gostaria de pedir a juventude que se dedique à leitura, que saiba filtrar as coisas boas das redes sociais e que haja mais acompanhamento dos pais, as famílias têm que investir na juventude.
Nos nossos tempo os professores também eram educadores, tive um professor que dizia “digam aos vossos pais que se esquecem de vos dar de comer um ou dois dias que não morrem, mas que nunca se esqueçam de vos educar”. E prosseguiam, “O homem só é homem quando é educado, se não for educado é igual aos animais irracionais” e vimos que realmente era verdade, porque a educação fez de nós Homens com um futuro razoável. Somos frutos daquilo que recebemos da sociedade em que vivemos, dos pais, da escola, das igrejas, dos familiares, dos mais velhos e de todos os amigos.
Este depoimento foi realizado em Julho de 2022, no Clube de Ténis de Luanda.
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