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A trajetória de uma enfermeira e o sistema de reforma em Angola, Fátima Vasconcelos

Maria de Fátima Rodrigues Vasconcelos é a primeira dos 23 depoentes cujas memórias constam na primeira fase do Projecto História Social de Angola (HSA). Para além, deste contribuiu para confirmar certos factos descritos pela autora no livro “A Juventude Angolana no Período Pós Colonial: Contribuição à Análise Qualitativa”. 

O presente depoimento apresenta a particularidade de ser a continuidade do primeiro depoimento constante no livro cujo o texto na íntegra está disponível em (Cerqueira, Marinela (2022), in “A Juventude Angolana no Período Pós Colonial: Contribuição à Análise Qualitativa”, pág.46/pág. 194-196)  com o subtítulo “Ensino profissionalizante 1960-1963” com o título “A trajetória de uma enfermeira do Período Colonial ao Pós Colonial”. Esta forma de apresentação sequencial deriva da tendência do vínculo de confiança com o HSA, uma vez que a equipa preserva este vínculo informando os depoentes do progresso do projecto, chegando mesmo a serem estabelecidas amizades. Este é um dos resultados desta experiência etnográfica a nível singular e colectivo favorecido pelo método de amostragem utilizado.  

Para efeito de apresentação cronológica e separação das memórias referentes ao período colonial e pós colonial alguns parágrafos do audiovisual aqui foram enquadrados nos subtítulos que facilitam a localização no tempo dos factos. 

Introdução

Eu sou a Maria de Fátima Rodrigues Vasconcelos, natural de Luanda, nasci no muceque Rangel e tenho 81 anos de idade, casada, viúva há sete anos e tenho três filhos, dois rapazes e uma menina, muito bonitos, sou irmã de dez irmãos, seis falecidos e quatro vivos. 

A minha infância não foi nada fácil e mesmo para começar a estudar eu e mais dois irmãos fomos os que aproveitamos mais, naquela altura havia muitas dificuldades, a minha mãe era doméstica e não havia grandes posses. Eu lembro-me de conversas das minhas irmãs sobre elas trabalharem de dia para estudarem à noite e mesmo assim só fizeram a quarta classe e só eu, a minha irmã Eduarda e o Lindo estudamos mais, eram elas que trabalhavam para ajudar os nossos pais, para podermos ter melhores condições de vida e estudarmos mais, portanto foi uma infância muito dura para não dizer mais.
Eu não vivi numa casa onde havia água canalizada e nem sequer luz elétrica, também naquela altura água e electricidade não existiam. Eu morei na zona das Cajazeiras “estão a ver a bomba de gasolina, a praça de São Paulo”, eu morei por trás da bomba de gasolina agora há outro nome, o “Arreou Arreou”. Eu vivia no Marçal, não vale a pena as pessoas estarem a mentir, esta é a realidade dos factos.

Colonial

Uma aluna da Escola nº 8, Luanda, 1949

Eu estudei na Escola nº 8 que ainda hoje existe, talvez com outro número, é a escola que fica entre o  Kinaxixi e o cemitério Alto das Cruzes. Houve coisas muito bonitas, muito boas, porque nós as colegas éramos muito solidárias, uma ia buscar a outra a casa e depois as duas iam buscar as outras e caminhávamos para a escola em fila, porque não íamos à escola nem de carro e nem de autocarro, a amizade era bonita por ser sincera.

Fazíamos as nossas brincadeiras, havia muitas alfarrobeiras como sabem são árvores que dão alfarroba, muito grandes e quando caiam as folhas para nós era uma alegria, havia casas com macieiras da índia e nós de quando em vez “às pedradas nos quintais dos vizinhos para apanharmos as maçãs”. Havia lutas entre meninos e meninas nas brincadeiras, não eram lutas para nos aborrecermos, não eram coisas agrestes. Jogamos muito ringue. Por exemplo, a Escola nº 8 contra a escola da Missão (aquela que fica ali, quem vai para Mutamba que pertence a Igreja Metodista). Aos sábados estudávamos também de manhã, mas quando saíssemos da escola combinávamos com colegas da mesma classe para  jogarmos o ringue na escola delas ou na nossa, uns ganhavam outros perdiam e eram assim essas as nossas brincadeiras. Não tínhamos grandes coisas sem ser estas. 

Na minha infância, como já expliquei, os nossos cotas eram duros e também nao havia dinheiro, os nossos pais eram diferentes, nem nos deixavam ir à praia, eu fui à praia mais tarde. 

Anos depois, já noutras condições, conforme disse, as minhas irmãs ajudaram muito os nossos pais, elas casaram e com os maridos foram transferidos para fora de Luanda e nesta fase quando nós tivéssemos de férias nós íamos passar férias onde eles viviam. Por exemplo, a minha irmã vivia em Cacuso, zona de Malanje e nós para viajarmos tínhamos de ir de comboio. E eu não ia sozinha, tinha de ir com uma amiga como a Marília Fernando Gaspar e para termos amigas era preciso a minha mãe ir pedir a mãe dela e trocar aquela amizade (como hei-de explicar, já não sei explicar bem agora), eram amizades de cola e gengibre. A minha mãe chegava lá e tinha que pedir a mão da minha amiga, através da mãe dela, para me deixar ser amiga, ficávamos quinze dias e voltamos de  comboio.

E claro fui crescendo e contava com a mana mais velha que hoje tem oitenta e três anos  para me levar a umas festinhas, e eu ia com ela porque as amigas dela tinham que pedir aos nossos pais e eles autorizavam, eu aproveitava a boleia e ia com elas.

Os alunos da Escola Industrial iam jogar contra o Liceu Nacional Salvador Correia, na altura o meu marido que era meu namorado estudava no liceu, íamos assistir aos jogos nestas escolas, eu estudava na Escola Industrial, de bola ou de patins, era uma grande alegria, mas com base no respeito, ali não havia outras coisas sem ser brincadeiras. 

Não foi fácil, a educação de outros tempos nada comparada a educação de hoje, entre aspas, nem todos têm a mesma educação.

A Escola de Enfermagem de Luanda, Anos 1960

Eu devo dizer que não fui uma aluna brilhante na teoria mas a prática contava muito, nenhuma aluna que fosse indisciplinada ou agreste passava, tivesse as notas que tivesse. As nossas monitoras eram muito fortes, uma delas ainda vive em Portugal deve estar com quase cem anos, a Maria Eduarda Bento Alves Ferronha. Contava muito, muito a presença da aluna de enfermagem e da enfermeira ao paciente, se aos olhos de um doente fosse agreste, do género “levanta-te lá que eu quero por a rastadeira”, esta aluna nao passava.

Os professores eram muito rígidos, nós íamos altamente fardadas, não podíamos usar brincos e nem anéis por causa das temperaturas dos termômetros, algum termômetro que partisse o anel ia logo a vida, brincos, anéis, roupas compridas, nada disso, entravam e saiam com a farda, pela porta fora vestias a roupas que quisesses, mas também naquela altura escusado será dizer que não podíamos ir de mini saia ou de calças… As nossas monitoras eram tão exigentes que até a aba dos nossos aventais tinham de ser gomadas, assim como os chapéus de enfermagem que a gente usava, eu gomava a minha com maizena, os sapatos, as fardas tudo por igual, não havia fardas de uma forma, outras de outras e nem podíamos ir sem os sapatos e a roupinha engomada, era aquela farda para todos.

Havia muito boa colaboração entre as colegas e havia  boa relação com as freiras. Quando eu era aluna iniciei o meu trabalho no antigo hospital Maria Pia, hoje Josina Machel e naquela altura trabalhávamos muito com as freiras, ensinavam-nos muito  elas tinham muita atenção para connosco. 

Houve vários momentos marcantes que não eram marcantes como ver pacientes a morrer, “ter de ir para atrás da cabeceira da cama, chorar e limpar as lágrimas”  muitas vezes eu fiz isso, voltar para junto do doente sem que ele se dê conta da tristeza dos enfermeiros.

Nas nossas horas vagas de piquete, os nossos chefes preparavam um bom lanche da noite, juntavam-se enfermeiros e enfermeiras e fazíamos uma  espécie de ceia para comermos juntos. Ninguém ia para cama, nao tens doente para tratar, o doente estava a dormir , ias para uma mesa fazer compressas e esterilizar as luvas, naquele tempo as luvas não eram descartáveis, agora deitemos fora, mas naquele tempo eram tratadas e esterilizadas, vais te levantando naquelas horas livres  para vigiar os doentes e voltas a fazer outras tarefas, até para fazer as horas de trabalho passarem.

Era completamente diferente, para dizer que nós saímos de uma folga mesmo não dormindo ficávamos compensadas “depois de um bom banho, comiamos um bom bife, não um bifinho, bife com batatas fritas e ovo estrelado, fruta podia ser banana, laranja, maçã e uma boa quantidade de leite, não era um copinho”, punham ali leite para bebermos o que quiséssemos, mesmo durante a noite bebíamos leite, saíamos de uma folga não com fome como a gente vê agora mas nutridas, ainda dava para ir fazer umas horas no particular.

Felizmente, nós no Ministério da Saúde não se via aquilo que agora há gente vê, “quer ir trabalhar vai, não que vir trabalhar não vai” porque mesmo os médicos das casas de saúde     tinham de primeiro trabalhar no estado durante o dia e depois iam trabalhar a noite na casa de saúde, tanto era assim que as operações eram feitas a noite, eles tinham o serviço particular, mas tinham de trabalhar no estado, se falarem com um médico já velhinho como eu eles contaram,  tínhamos de coordenar, as vezes, “oh Marília eu tenho este turno na casa de saúde” e trocávamos, os turnos tinham de ser preenchidos.

Qual a sua profissão, e porque estudou e abraçou esta profissão?

Eu estudava na Escola Comercial, no  curso de formação feminina, mas por influência de uma colega de escola que ainda está viva a enfermeira Ondina de Sousa disse-me “Fátima porque não fizemos o curso de enfermagem” optei, naquela altura fazia se exame de aptidão e passei, felizmente acabei o curso de enfermeira parteira puericultura. 

Com o passar dos anos, fomos aumentando de categoria, enfermeira graduada, pós graduada e depois fui tendo alguns lugares de chefia, em Luanda depois de auxiliar a gestão da Maternidade Lucrécia Paim a equipa chefiada pela Dra. Teresa Cohen foi a responsável pela abertura da Maternidade Augusta N`Gangula,  a última colocação que eu tive foi superintendente da clínica da ENDIAMA, no tempo do Dr. Bastos, fomos nós que abrimos aquilo, pertencia aos Petróleos e depois transformou-se numa clínica. 

Enfermeira no Hospital de Malanje, 1964-1966

Para além, desta primeira colocação no final dos três anos de curso, fiquei em casa, não porque queria, mas concorremos e tínhamos de esperar que fossemos chamadas. Na altura já era casada, vivia em Xassengue, na Lunda, local onde a minha filha nasceu em 1964, e a primeira colocação que tive foi em Malange, mas antes de ir para Malanje quiseram que eu fosse colocada em N`Dalatando, eu refutei dizendo que o meu marido trabalhava na guarda prisional de Malange e a resposta foi logo “a senhora escolha, o emprego ou o marido” e claro tive que fazer opções, por acaso tive sorte, uma colega nao queria lá estar e consegui fazer a troca, mas só via o marido de quinze em quinze dias, porque o Enoch estava destacado na Damba de Malange, eu já tinha os dois primeiros filhos, imaginem quando estivesse de serviço sem carro, tinha que levar os miúdos comigo, tomava um táxi e eles ficavam em um quartinho no Hospital de Malanje entregues a jovem que trabalhava lá em casa. 

Naquela época, os médicos estavam de serviço mas ficavam em casa, só ficava o médico de clínica geral, o médico obstetra ficava de serviço em casa e se nós tivéssemos qualquer complicação na altura do parto então chamávamos o médico.

Ser Enfermeira em uma vila cafeícola, 1966-1975

Dois anos depois de trabalhar em Malanje fui transferida para a vila de Calulo onde estive nove anos, as pessoas  de lá agora dizem que eu também sou de Calulo, deixei por lá muitos “filhinhos” que hoje já são pais, alguns são avós, mas foi bonito. Só vim para Luanda porque o Enoch depois veio transferido para Luanda por ele porque quis fazer medicina. Era o aluno mais velho da turma, foi para a faculdade AAN aos trinta e seis anos e só fez medicina tarde porque os pais não tinham possibilidades para lhe mandar estudar para fora, e só depois de se conseguir algumas condições é que ele veio para Luanda, depois no entretanto ele estudava e trabalhava, trabalhou com o Dr. Rui Monteiro, mas já era estudante, um extra que ele tinha no Ministério da Informação para ganhar alguns tostões.

Não tenho noção de quantos partos fiz, mas ainda hoje eu recebo ofertas do Libolo, ainda me vem trazer quisaca, farinha fina, bananas. Uma vez o Camarada Higino Carneiro era Governador de Luanda e ia a Calulo, ele é de lá, disse “madrinha Fátima não queres ir até Calulo”, eu disse “nem mais, é para já!”. Havia um pequeno aeroporto em Calulo, quando o avião aterrou, muita gente estava à espera do Sr. Governador, muitas mamãs da OMA, quando me viram e a segurança estava a afastá-los, para proteger o Sr. Governador,  o senhor governador ia à província e ele é de lá e  quando a segurança vinha, as mamãs diziam “não toca, não toca o quê? A Dona Fátima é nossa”, de tal forma, sem exagerar, “dona Fátima venha dormir a nossa casa, também vamos fazer uma boa cama…”, fiquei no hotel, quando voltei trazia  tantas ofertas, eles ligaram lá o filho da terra parece que deram mais importância a dona Fátima, também funcionei lá nove anos. E deixe que lhe diga nestas zonas trabalha-se, ainda vamos para a farmácia passar receitas, fazer pomadas, etc. O Libolo é uma zona de café, o médico ia para as suas avenças nas fazendas de café e nós aguentávamos os pacientes e fazíamos consultas externas, tínhamos de aguentar aquilo.

A alimentação

O meu pai era português e a minha mãe negra  genuína, bessangana de panos e o meu pai português chegou aqui aos 36 anos e nunca mais voltou a Portugal, morreu aos oitenta e cinco anos, já trabalhava no Libolo e viemos ao funeral do meu pai, mas viveram toda a vida apesar de não serem casados.

Quantos a alimentação o meu pai apesar de estar cá há muitos anos nunca se adaptou a comida, nós comíamos tudo, desde o cozido à portuguesa, a caldeirada de cabrito e aos nossos funges, as quisacas, a alimentação era variada. Digo-lhe com muitas dificuldades, mas diferente do  que acontece agora, não sei se os vossos pais já vos contaram  algumas situações, mas nós antigamente íamos a loja do senhor fulano e com pouco dinheiro comprávamos um bocadinho de manteiga, um bocadinho de bolachas, não era necessário comprar o pacote de manteiga ou a lata, até mesmo nos mercados por incrível que pareça,  se comprava aos bocadinhos. Por exemplo, não tinham dinheiro para comprar um ananás inteiro, compravam metade no mercado de São Paulo, tudo era consoante o bolso. Mas, devo dizer-lhe que não estou desgostosa, antes pelo contrário contente porque não tinham muito, mas tinham um bocado.

Pós Independência

Troca do escudo português pelo Kwanza

E como lhe disse anteriormente trabalhei muito e ganhei muito dinheiro, infelizmente fiquei triste porque como parteira que sou, não só trabalhava na minha profissão, mas também sou uma grande doceira, gosto muito de fazer bolos, para dar-vos um exemplo fui eu que fiz o bolo de casamento da minha filha e o da Cavisita Lemos (devem conhecer, ela é muito conhecida) e não só, de muitas outras noivas, também fiz rissóis, massas tenras, pãezinhos de leite porque eu tinha em casa um fogão industrial e tinha gente comigo a trabalhar nas horas vagas, porque não era como hoje “quer ir trabalhar vai e quem não quer trabalhar não vai”. Se me perguntar se me reformei com uma boa reforma até se vai admirar. Eu dei trinta anos de serviço é só fazer as contas, tenho oitenta e um anos. 

Eu juntei dinheiro porque o Enoch foi para o curso de medicina, um curso difícil e para trabalhar no estado e ser um bom funcionário, não teria tempo para fazer um curso de medicina condigno e então o que  nós fizemos? Todas as nossas economias e as minhas sobretudo porque ganhei muito dinheiro e a pouco disse que fiquei triste porque como vocês sabem houve a troca da moeda e todo este dinheiro (posso falar a boca cheia e aonde vocês quiserem)…, foram muito injustos na troca da moeda, todo o meu dinheiro desapareceu na troca da moeda porque tínhamos de entregar todo dinheiro “aquele dinheiro já não havia de existir, era outro, mas nunca pensamos que não nos devolvem-se”. Uns foram inteligentes, mas nós não tínhamos maldade, pensamos que iríamos receber o nosso dinheiro, outros o distribuíram para familiares que nao tinham dinheiro. Depois da troca sabem quanto é que me deram? Foi no valor de vinte mil escudos e devo-lhes dizer que  o dinheiro que eu tinha dava para fazer uma casa em Alvalade, isto é verdade, se conversarem com pessoas da minha idade ou até de menos idade mas que fizeram a troca da moeda como nós fizemos, porque fomos todos obrigados, vão dizer que isto é verdade.

A reforma das enfermeiras e o subsídio dos antigos combatentes,  anos 1990

Ainda estava eu no Libolo quando os grupos do maqui foram entrando e nós também recebemos o nosso grupo, mas coitados, sem roupa, sem cobertores e os militares foram entrando. Nós tínhamos os nossos militantes e a malta toda militava no meu partido, cada um militava no seu partido, eu era militante do Comité Kanga Vunge, eu militei neste comitê durante alguns anos até vir para Luanda. Anos mais tarde, tentei ter uma reforma pelos Antigos Combatentes e a mim nao me deram. Na altura, exigiram-me documentos, tive que voltar ao Libolo para certificar se fui mesmo militante do Comitê Kanga Vunge, certificaram, mas nunca cheguei a receber esta reforma, nunca me chamaram, tive um bocadinho de azar neste aspecto e nao só.

Até mesmo a minha reforma onde eu funcionei durante trinta anos, sem ter ido gozar nenhuma graciosa, conheci Portugal já depois dos partidos estarem cá porque fui acompanhar uma paciente cancerígena, nunca me ausentei nem do ministério e nem de férias a Portugal. Digo isso porque eu nao sei porquê, tratei dos documentos e depois  escrevi, ia lá sempre saber “quando sai, quando nao sai” e depois chamaram-me e disseram-me

-A senhora vai ter uma reforma de cinco mil kwanzas .

-Olhei para eles, é crime e disse eu? perguntei, cinco mil kwanzas?

-Sim vai ter uma reforma por velhice 

-E eu respondi que eu não me aposentei por velhice, nunca me ausentei.

-Depois a resposta que me deram foi, olha sabe, nós não tivemos culpa nenhuma porque depois da chegada dos partidos o Ministério da Saúde nunca pagou os impostos, nunca pagou as finanças. 

-E eu disse, mas isso não é problema meu e pelo contrário vocês sabem que nós colaboramos e você sabe o papel de quem ficou aqui, nunca se ausentou, pelo contrário formamos gente.

-É como já lhe disse minha senhora, o ministério nunca pagou a segurança social.

-E eu disse, mas a minha última colocação foi na clínica Sagrada Esperança, no tempo dos milhões. 

Eu fui do tempo em que se ganhava milhões de kwanzas, fui a clínica Sagrada Esperança, explicar o que se passava e que tinha sido superintendente. Eu só desisti do emprego nesta clínica porque o Enoch foi estudar administração hospitalar no Ricardo Jorge e já tinha feito saúde pública em Cuba e dois anos depois eu decidi ficar com ele em Lisboa. “Ah, nós não temos culpa, não temos culpa” e ficou pelo nós não temos culpa. Passei a ganhar os oito mil kwanzas, durante muito tempo eu não ia buscar este dinheiro porque nem dava para pagar o pão para eu comer o mês todo, hoje com tanto desgosto, nunca fui lá saber com quanto eu estou, presumo estar com uma reforma a volta de vinte mil kwanzas. Confesso estar muito revoltada, já me disseram para contratar um advogado. Mas também sei de pessoas e afirmo que abandonaram Angola foram-se embora, colegas meus, não sei como trataram as reformas aqui e estão com uma reforma no valor cento e cinquenta mil kwanzas. Fiquei por aí, isto é verdade, eu posso provar com o extracto de conta e adicionar ao que estou falando. 

Eu nunca mais me interessei porque felizmente recebi no mesmo banco a reforma de viúva do Enoch, era médico, casado e eu tenho direito a reforma, também não foi muito bem pago porque ele chegou ao topo da carreira e recebo oitenta e cinco mil kwanzas. É daí onde digo que vive melhor noutro tempo, mas não estou arrependida porque se eu fui militante do comité muitos anos, em parte não foi por mim, foi porque achei que nós devíamos ser independentes, tínhamos o direito de ser independentes, e como  fomos, com muita luta, com muito sacrifício, mas não foi para ver o que eu estou a ver hoje, eu não lutei para isso, digo que militei porque desci com as massas e subi com as massas, na zona onde militei, se alguém lá for e procurar por mim ainda há muita gente viva e muita gente cá olha, por exemplo, o Camarada Oca da Casa 70 e muitos outros. Ainda a cerca de seis semanas, alguém me disse “Fátima trata outra vez os documentos  para receberes a reforma dos antigos combatentes”. Eu quando olho para a bicha dos antigos combatentes porque eu também vou lá receber pela reforma de antigos combatentes do Enoch, onde eu costumo ir fazer prova de vida devido a reforma de viúva “ver velhos caquéticos, que vem de Províncias para fazerem prova de vida em Luanda e receberem uma miséria que naturalmente nem chega para pagar os transportes para virem de lá, naturalmente digo para mim própria “não Fátima, agora se metesses o processo ia receber, mas não vou porque a mim dói-me muito”,  mas eu digo, a mim própria… 

Qual a sua opinião sobre a importância da sua geração partilhar as suas memórias  com as gerações mais novas?

É maravilhosa, embora as pessoas não acreditem eu ainda consigo mobilizar a juventude quer  por via dos trabalhadores de casa quer por onde eu passe, eu continuo a fazer trabalho na clandestinidade, só para dizer que estava em tratamento em Portugal e voltei para vir votar, a responsabilidade para com o meu partido, o meu trabalho penso…, eu sou suspeita para falar, ninguém fala de si mesmo, mas  isto aconteceu, amigos e os meus filhos diziam vais mesmo? Ouve-se tanta coisa e eu disse “não me interessa” e vim votar, eu exerci o meu dever de voto.

E quando ouço outras coisas, também a Fátima está aqui para os acalmar. Eu continuo a dizer que não é bem assim! Eu oiço muito o programa Fala Angola, ele não me influencia, mas não precisa de me influenciar, porque eu vejo todos os dias pobres a matarem pobres, todos dias morrem pobres coitados, nao conseguem chegar a nós, às vezes chegam, mas é raro, mas o que eu vejo e aprecio todos os dias, é que o pobre está a matar pobre, porque eu vejo na televisão, a televisão mostra, o pobre vai buscar aquele colchão que já está velho, que já não vale nada e ele é capaz de matar para levar alguma  comida, algum dinheiro, panelas, porquê? porque está a passar miséria. É depressivo quando a gente vai pelas  as ruas de Luanda e vê tanta gente na rua e nós sabemos que estas pessoas muitas vezes, nem mil kwanzas eles vendem por dia.

Temos de trabalhar muito, mas nao chegamos ainda ao topo e devo dizer que o Estado não tem obrigação de colocar toda a gente a trabalhar. Antigamente, havia empresas particulares, é preciso os particulares criarem emprego, é preciso darmos cursos básicos, nao é feio e nem é desprezo eu estar a  colar sapatos ou a pregar fivelas, não é, é emprego! O jardineiro da minha casa mora lá para os fundos “para os diabos mais velhos” ele trabalha três dias na semana e ganha trinta mil kwanzas, é pouco, mas eu não lhe posso dar mais, mas ele tem outro emprego, lá trabalha outros três dias e pagam-lhe vinte e cinco mil kwanzas ele sacrifica-se hoje é sábado mas está a trabalhar, tem cinco filhos e infelizmente tem uma mulher que não o ajuda, mas ele diz o que “eu vou fazer com cinco filhos, vou mandá-la embora?” e está aí, vocês viram-no ele ajudou a abrir a porta hoje sábado a trabalhar.

Mas, que está a fazer-se muita coisa, não se pode dizer que não se está a fazer, nunca tivemos tantas escolas como temos agora na Angola independente, eu vivi nas Províncias! Sim, quando as  pessoas dizem que não se está a fazer nada eu digo “que se está a fazer”, nunca tivemos tantas escolas, tantos hospitais, como temos agora. Estamos a formar gente sim senhora, alguns mal formados? Estamos! no outro dia a Ministra da Saúde (MINSA) afirmou de facto estão a formar com muito má qualidade, mas também nós (o MINSA) erramos porque quando viemos para casa (nós enfermeiras mais velhas quando chegamos a uma certa idade o Estado mandou-nos para casa), o colono reformava, mas podíamos continuar como assalariados, não como funcionários, mas tínhamos o vencimento de assalariados. 

Mas para que? para formar melhor a juventude. Como por exemplo, podíamos fazer como o Brasil faz, por exemplo o Enoch esteve em um dos melhores hospitais que o Brasil tem, o Hospital do Coração e as enfermeiras “velhotas” não foram mandadas para casa, eram enfermeiras de cabeceira, quando chegassem de manhã conversavam com os pacientes, perguntavam-lhes como tinham passado a noite, confortava-os e a nós  o que fizeram? Estão velhas.

Eu hoje se for a um hospital a uma maternidade e se disser que fui colega, nem sequer olham para ti, hoje se disser que tenho um cartão de saúde é mentira, nem sequer temos um cartão de saúde, a vossa família tem por acaso? Isto é trabalho? Passaram-se mais de quarenta anos.

Voltando atrás, vivi num bairro modesto, mas não havia lixo, sabem o que a minha mãe fazia: A casa era a frente e por trás havia o quintal vedado onde se fazia um buraco no chão no quintal não cimentado para se queimar o lixo de dois em dois dias, e onde está a saúde pública? Onde estão as mamas da OMA? O colono também não tinha carros de lixo para os bairros suburbanos e era assim o sistema de  tratamento do lixo. Fui a Cabinda a cerca de vinte anos, era limpa naquela altura, passava-se numa zona suburbana e não víamos um papel no chão, até as rua dos bairros  eram borrifadas com água, as cotas varriam a rua, então as nossas mamãs que vivem no Cazenga e nas outra periferidas, o quintal delas é cimentado? E então onde estão as forças de trabalho? É preciso tirar um curso? É preciso ter um diploma? É preciso a cabeça das “velhas” mandadas para casa?

Quer partilhar outras memórias relevantes? 

Eu penso em muita coisa útil, sobretudo no desporto, o desporto dá saúde, dá vida, eu com a minha idade ando todos os dias quarenta minutos, o desporto é importantíssimo para qualquer das idades, para as crianças, jovens e pessoas de terceira idade.

Outra recomendação é a leitura, ler muito, eu não quero afirmar, mas dizem que o Alzheimer é contornado contrariando o que nós gostamos de fazer , por exemplo não gosto de ler, devo ler, não gosto de coser, devo coser, tudo aquilo que não gostamos de fazer devemos fazer.

Acho que as pessoas devem estar muito concentradas em ajudar, como sempre o fizemos, as pessoas devem ajudar como sempre fizemos, dar aulas de alfabetização, não devemos parar, devemos elevar mais, elevar mais…O que eu falei aqui eu falo com eles, eu não digo só aqui, com os meus trabalhadores, eu digo “eu também não tinha”, digam isto nos vossos bairros, nunca é demais: porque é que nós próprios é que criamos o lixo, porquê que nós próprios deitamos o lixo para o chão? bebemos uma garrafa de água e deitamos o vasilhame para o chão, somos assim tão analfabetos? tão matumbos que não pudemos guardar a garrafa, porque  tenho isto, ja nao presta, vou para o carro e deito no chão. Uma vez fui à Alemanha no pós independência e  onde não encontras um papel no chão, as casas de banho limpas, de quem é aquele trabalho? é deles e deveria também ser o nosso. Assim, qual é o governante que vai governar isto? Costumo dizer que tenho pena do Governador Manuel Homem porque há falta de muita coisa.

Falta muita coisa, nós, todos, na totalidade, não estou a falar deste ou daquele, ainda não temos noção do que temos de trabalhar para que Angola seja uma Angola e se não nos agarramos às canetas qualquer dia estamos com depressão, eu quase já fiz uma, o Eddy dizia, mãe tu já não vais sair à rua comigo, cada vez que saímos a rua tu começas a chorar, não dá mãe, tu vais arranjar um problemas. Mas eu não paro, apesar dos pesares, repito, muita coisa boa está a ser feita, não é só falar mal, eu pessoalmente não sou apologista! 

Eu conheci três presidentes, mas primeiro conheci o Lúcio Lara, antes de Agostinho Neto chegar, quando os movimentos entraram a primeira pessoa que chegou aqui foi o Lúcio Lara, nós todos do Rangel estávamos lá, vim do Libolo de propósito, depois chegou o Presidente Neto. Eles pensavam que não iam encontrar aqui grandes militâncias, mentira, encontraram muito trabalho feito, ainda há malta na Dona Amália, eles que o digam, trabalho nosso que eles encontraram já feito, eles estavam lá a fazer trabalho e nós aqui também fizemos muito trabalho.  

Conselhos às futuras gerações

Aí são tantos e   a geração anda tão mal, tão mal… ainda anteontem no programa Fala Angola eu ouvi a notícia de uma menina de quinze anos, foi abusada por um professor, esta menina de quinze anos abusada por um professor ao ponto de ficar grávida, eu faço a pergunta: esta menina é inocente? Já tivemos grávidas de dez anos, coitada, engravidou e teve uma cesariana. Esta menina sem falar nada aos pais, menina de quinze anos e o professor de trinta e cinco, esta menina já não é uma bebé…  Os conselhos  que posso dar a juventude primeiro ouvirem muito os pais, não serem incorretos porque nós também não o éramos, a escola ensina, educa, mas a educação começa em casa, portanto a menina tem que ser obediente, gostar de estudar, gostar da família e ser mais educada como nós o éramos no nosso tempo. Não custa nada passar na rua e comprimentar, boa tarde, é educação, pode-se cumprimentar sem se conhecer. 

A educação vem da base e a escola complementa, como vos disse a minha mãe era analfabeta, e se eu morei onde morei, imaginem onde minha mãe morou, agora estou lembrada deste pormenor que eu levava comida à minha avó Joana. Se a minha mãe era analfabeta, ela não sabia ler e nem escrever e eu tinha que ficar sentada depois do almoço a estudar, era analfabeta mas tinha noção que eu devia ficar a estudar. 

Não estou dizendo todos porque ainda há gente da vossa geração, os nossos filhos engenheiros, médicos, advogados estão vindo das bases, das suas mães que estão sofrendo e trabalham, eles hoje estão diferentes porque estão estudando, estão diferentes. Mas outros não, por isso dou o exemplo da menina que acabou por parir a criança, portanto o conselho que dou à juventude é abraçarem mais a educação dos mais velhos. 

A educação religiosa faz muita falta apesar de algumas igrejas quererem apenas dinheiro,  mas existem boas religiões aqui para além da religião católica, a minha, como a protestante e outras.

Já temos boas escolas, as nossas gentes do povo devem obrigar as crianças a irem às escolas, nós criarmos condições para que elas assim o façam, sabemos que muita gente vai a escola, tem fome, chega ali nem tem uma merenda escolar, que proveito é que ela tira da aula naquele dia, o que ela vai ter se está pensando alguma coisa “o que vai encontrar quando chegar a casa”.

Então todos nós temos de trabalhar e  ajudar, os trabalhadores aqui da minha rua pensam que eu sou rica porque eu não consigo por exemplo ter quarenta mil kwanzas se um trabalhador me vier pedir cinco mil kwanzas, eu não consigo deixar de emprestar se eu tiver. há qualquer coisa que me diz “empresta”,  se ele não me vier pagar no prazo de um mês, ficará com vergonha é não me pagará mais, mas eu não consigo não emprestar os cinco mil kwanzas. 

Este depoimento foi realizado no dia 03 de Dezembro de 2022, na Vila Gamek, na residência da Sra. Fátima Vasconcelos.

Palavras chave: Escola de Enfermagem de Luanda| Hospital de Malanje|Hospital de Calulo| Escola nº 8| Troca de moeda| Reforma no Pós Independência| Reforma dos Antigos Combatentes| Comité Kanga Vunge