Skip to content Skip to footer

Um filólogo nas artes cênicas e no jornalismo Angolano, José Mena Abrantes

Por recomendação dos colaboradores D´Jassy Quissanga e Jorge de Palma responsáveis pela produção audiovisual dos depoimentos publicados em 2022 a História Social de Angola pública o depoimento do escritor e encenador José Manuel Mena Abrantes, cuja contribuição para o desenvolvimento do Teatro Nacional é inegável, este malanjino de origem portuguesa desde muito novo teve contacto com o cinema na cidade onde nasceu e era incentivado pelas críticas e análises do seu irmão João, outra influência da capital da província da Rainha N`Ginga foram as brincadeiras com as brasas de carvão largadas pelo caldeira do comboio e as recordações da carruagem de passageiros, ambos visíveis nas suas publicações.

Parece ter sido também esta arte que o encobriu e facilitou a fuga para outros países europeus com o propósito de dar continuidade a sua luta pela independência de Angola. Jovem irreverente, ganhou experiência como crítico e desempenhou outros papéis no cenário do teatro em vários países europeus, estudou e aprendeu as línguas dos países onde encontrou solidariedade durante a militância pela luta de libertação nacional e esta vivência profissional contribuiu para o seu primeiro emprego em Angola na Emissora Católica de Angola e mais tarde aceitou com acutilância a missão do Presidente António Agostinho Neto em criar a Agência Angola Press. 

Diz-nos que os viventes de cada época histórica terem as suas consciências sociais e mais importante de aconselhar as futuras gerações ser partilhar com elas factos da história social de cada um que participou na luta pela independência nacional e na construção do país Angola. Tal como em outros depoimentos de memórias este criou a expectativa de mais tarde José Manuel Mena Abrantes se predispor a continuar o seu, tudo faremos para merecer a sua confiança e evitarmos que mais memórias materiais e imateriais da história social do nosso país se percam, conforme a preocupação por ele expressa. 

Introdução

Meu nome é José Manuel Feio Mena Abrantes, nasci em Malange no dia 11 de Janeiro de 1945, sou o sétimo de oito filhos. Passei toda a minha infância em Malange, até aos 15 anos com algumas saídas, a primeira grande viagem foi ter ido com a minha mãe a Lisboa de barco com quatro ou cinco anos, depois até aos quinze anos, nas férias grandes vinha a Luanda com a família passar férias em casa da minha irmã.

Eu não tenho grandes memórias dos primeiros anos, comecei a estudar a primária com sete anos, que era a idade com que normalmente se começava. Estudei a primária em três escolas, comecei numa escola chamada Vasco da Gama (que já desapareceu), depois a terceira classe foi numa escola nº 74 (não tinha nome) e finalmente fui para o colégio Veríssimo Sarmento fazer a quarta classe e a admissão ao liceu. Já tinha os irmãos mais velhos a estudarem neste liceu, quase fui adoptado pelo director e nunca paguei propina. Fiz o quinto, que era o último ano para quem estudasse em Malange, todo malanjino que chegava ao quinto ano considerava-se já formado e para prosseguir os estudos tínhamos que vir para Luanda. 

Em 1960 vim estudar para Luanda onde frequentei o pré universitário no liceu Salvador Correia e quando terminei o liceu, queria prosseguir para a universidade e não havia universidade em Angola, havia somente dois cursos, nem sequer era universidade, chamavam-se estudos gerais. Como eu queria seguir um curso de Letras, fui-me inscrever (já não me recordo o nome), acho que era na Mutamba, quando o funcionário que me atendeu, viu que tinha escolhido um curso de filologia germânica, primeiro perguntou-me “o que era aquilo?”, disse-lhe “um curso de letras, dá para estudar, literatura, línguas…”, ele disse-me, “mas isso é um curso para mulheres!”, sim, por acaso eu era um ou dois rapazes de uma turma de dezoito mulheres e ainda por cima o funcionário acrescentou “este curso não serve para nada…”, eu disse “ok! Fui logo estimulado a seguir uma carreira brilhante” (risos).

Eu só entrei para escola aos sete anos e antes disso não consigo lembrar-me bem de tudo o que aconteceu, porque nunca frequentei uma creche ou uma escola pré primária, portanto antes de entrar para a escola primária a minha vida era só brincadeiras e sobretudo na primeira casa onde vivi.

Quando eu nasci, o meu pai era guarda livros da COTONANG, equivalente a contabilista. Era uma casa que eu achava que era enorme e perdia lá dentro. A casa em si tinha um quintal pequeno, mas logo a seguir havia um grande quintalão que confinava com uma zona da entrada da Maxinde, naquela altura havia poucas casas. 

Quando voltei de uma viagem de barco de Lisboa, ia brincar para aquelas máquinas, não sei muito bem para o que elas serviam, só sei que eu achava que parecia uma roda de bicicleta, subi na roda, pus o pé na manivela, acelerei e parti o braço, achei estranho porque depois de cair a mão não endireitava, ainda não doía, fui a correr para a minha mãe para mostrar que a mão não mexia, fui levado ao hospital e andei com a mão ao peito a exibir-se e é uma das memórias que eu tenho  do quintalão que não deram certo.

Nessa zona do quintalão contíguo a minha casa era cimentada, foi aí que  começamos a aprender a andar de patins, só tenho memórias de brincadeiras e como Malange era e ainda é uma cidade muito pequenininha, todo mundo se conhecia, podíamos andar completamente à vontade.

Malange nem sequer era asfaltada, foi um grande evento quando finalmente junto  a câmara municipal asfaltaram vinte metros de rua, toda a cidade foi assistir à inauguração dos 20 metros de rua de Malange (risos). Malange, praticamente era uma rua muito longa, chamada Rua Governador Andrade, com ruas adjacentes muito pequenas e havia depois casas dispersas, era realmente uma cidade muito pequena, terminavam as casas e começava logo a mata. Portanto, nós tínhamos total liberdade para circular por onde quiséssemos. 

O Desporto 

No meu caso, fui o sétimo de oito irmãos, todos mais velhos, quando nasci o mais velho teria dezoito anos, os três mais velhos já trabalhavam. O meu irmão mais velho era guarda redes do Benfica e o segundo era jogador do Sporting, aquela questão de ser do Benfica ou de Sporting apareceu logo e fiquei do Benfica por ser a equipa do meu pai que me levava a assistir os jogos do Benfica, a mãe era do Sporting, os irmãos dividiram-se entre os dois clubes, a não ser que houvesse empate neste jogo, era complicado, lá em casa alguém ia ficar mal disposto, o perdedor, entretanto, o futebol começou-me a atrair desde os quatro anos, período que em que ia com o meu pai  assistir os jogos até aos quinze anos período vivido em Malange, havia um campo de jogos com quatro quadras de tênis e outro para basquete e andebol, era cimentado e era ali que nós andamos de patins, cheguei a jogar hóquei em patins na brincadeira com os amigos, então este campo era praticamente o ponto de atração da juventude daquela época, onde assistimos os mais velhos a jogarem tênis. Ainda hoje aqui em Luanda vive um grande amigo que desde pequenino se tornou o campeão de tênis da cidade.

O campo de jogos tinha um tanque pequenino onde os mais jovens podiam entrar e fazíamos de conta que estávamos a nadar. Mais tarde, inaugurou-se uma piscina grande e tornou-se outro ponto de atração de todos os jovens porque era uma piscina com dimensão olímpica e onde todos aprenderam a nadar e eu só aprendi a nadar em Portugal onde fui continuar os estudos. 

O Cinema 

Outro facto que me marcou foi haver dois cinemas na cidade e não havia restrições de entrada desde que fossemos acompanhados de uma pessoa mais velha e eu tinha os meus irmãos mais velhos que me levavam e em casa não havia televisão, portanto a minha mãe ficava muito contente se os irmãos mais velhos levassem os mais novos ao cinema. Desde muito novo comecei a gostar de cinema, tinha um irmão mais velho que era o que mais comentava comigo os filmes e foi orientando a minha apreciação dos filmes, explicava os filmes, por vezes até era insistente, perguntava-me o que eu achava, explicava e demonstrava-me que eu estava errado.

Dormia no mesmo quarto com dois irmãos e sobretudo este irmão que me falava sobre o cinema falava-me de todas as leituras que fazia e a certa altura eu quase  adormecido ele perguntava-me “ainda estás a ouvir?”. Foi sobretudo este irmão o responsável por “abrir a minha cabeça”, não só sobre os filmes e outras coisas, era muito reservado, muito caseiro, não andava com amigos nos copos e nas saídas, não saía e eu era “massacrado”, tudo que ele queria comentar era comigo que ele falava, de tal maneira que eu com doze anos ele já falava de filósofos como Mitchie, personagem que eu nem sabia da sua existência. Anos mais tarde, muitas vezes ao ler um livro lembrava-me “já vi isto em qualquer lado” e recordava-me que a referência era sempre este meu irmão que no passado teria falado daquele livro ou daquele filme.

Brincadeiras na Estação do Caminho de Ferro de Malange

Eu até aos quinze anos vivi em quatro casas diferentes, nasci numa casa como já disse que pertencia a COTONANG onde o meu pai trabalhava até aos cinco anos e depois o meu pai envolveu se em um negócio com um compadre e saiu desse emprego e saímos da casa com o grande quintalão e mudamos para uma outra casa muito mais pequena bem perto da estação de comboio, onde vivemos dois anos e depois mudamos para outra casa situada  do outro lado da linha, ainda mais próxima à linha do comboio, cerca de quinhentos metros. 

A grande brincadeira era assistir a chegada do comboio, de noite saímos todos a rua a correr, a mãe a gritar para não nos aproximarmos da linha, o que nos encantava era a passagem da máquina, umas certas carruagens de mercadoria e depois as carruagens dos passageiros, já com luzes acesas. Depois do comboio passar, ficavam brasas acesas na linha que outro motivo de brincadeira! Tentar agarrar as brasas, atirar as brasas para cima uns dos outros, uma algazarra, brincadeiras, de tal maneira isso me deve ter marcado porque eu tenho em quase todos contos e poemas que escrevi sempre referências a esta imagem do comboio a surgir do escuro, até mesmo em um dos últimos livros que publiquei “A Poeira do Tempo”, este carvão em brasa é determinante para marcar a pessoa para a compreensão do conto.

Licença Graciosa, Navio Lourenço Marques

Tive a primeira experiência no mar numa viagem que fiz aos quatro anos com a minha mãe e os meus quatro irmãos. Naquele tempo os funcionários públicos portugueses tinham direito de três em três anos a fazer uma viagem a Portugal por um período de três meses, chamava-se licença graciosa. O meu pai é natural de Lisboa, ele chegou a Angola com quinze anos e só saiu de Angola sessenta anos depois e forçado na altura da independência, nesta viagem com a minha mãe ele não foi. 

Na viagem para Portugal não me lembro de ter acontecido nada de especial, mas no regresso de barco houve uma grande tempestade e o navio Lourenço Marques esteve quase a afundar, segundo os comentários. Atraiu-me muito à sala de jogos do navio, claro não me deixavam entrar, mas sempre que passava pela sala de jogos e via aquelas mesas com o tampo verde eu queria tocar e não me deixavam. Mas no dia da tempestade, estava tudo num caos, as malas nos quartos baloiçavam, não se podia sequer tomar as refeições na sala das refeições porque a inclinação do navio era grande. Um dos meus irmãos, que referi como um dos meus mentores na juventude, foi apanhado a namorar, os pés para fora abraçado a coluna e quando o navio inclinava para um lado ficava quase com a cara ao mar e quando ia para o outro ficava a olhar para as estrelas (risos).

O que eu me lembro e tenho registado num poema que escrevi, foi que entrei durante a tempestade na tal sala de jogo e sei que estava sozinho, sei que entrei sozinho, subi para cima da mesa com o tampo verde por onde dava para olhar por uma janela onde vi a linha do horizonte e fui acompanhando-a até cair, só me lembro de acordar no camarote com a cabeça partida. Só me lembro da inclinação, mas como cheguei lá, sozinho, não sei explicar, só me contaram a minha façanha e a do meu irmão que andava pendurado no ferro (risos), todo mundo comentou e  chegaram a comentar que o navio ia afundar.

Recordações do 4 de Fevereiro de 1961

No meu tempo em 1960, em Malange só havia o quinto ano do liceu, quem quisesse prosseguir os estudos vinha para Luanda. Eu vim para Luanda em 1960 e em 1961 houve o episódio do 4 de Fevereiro, eu não tinha muita consciência do que se estava a passar e no dia seguinte no liceu havia muitos comentários desencontrados, ninguém tinha percebido, andaram a assaltar cadeias para libertar presos. Perto da Alameda D. João II (agora Alameda Manuel Van-Dúnem), tinha sido morto um polícia amarrado a um poste de luz, comentários desencontrados, na rua onde eu morava ocupada por portugueses, estes chegaram a organizar-se para fazerem rondas à noite para evitar que entrasse pessoas estranhas na rua, era uma rua muito estreita, andava todo mundo alvoroçado, outros foram para os arredores, vizinhos meus foram treinar tiros contra embondeiros, sobretudo ficavam mais agitados quando se ouviam tambores a tocar, sons vindos da zona dos musseques, diziam “lá estão eles a prepararem-se”.

Vivia com a minha irmã e o meu cunhado que era um português muito atrevido, gostava de ir para os bairros, para as farras dos bairros onde era de certa forma respeitado e considerado. Uma vez, perto do mercado São Paulo, viu um grupo de portugueses a bater num indivíduo mestiço, a chamá-lo de terrorista, era um grupo grande de pessoas, estavam inclinados em círculo para uma só pessoa e ele tentou intervir, mas teve de ir embora senão apanhava também. Portanto, havia toda essa agitação pela cidade… Eu ia a pé para o liceu, da rua onde eu morava perto da ANANGOLA, ouvia as conversas, tinha na altura dezasseis anos, mas não tinha muita consciência do que se estava a passar. 

Acabei o liceu e tivemos uma subida na nota por causa do 4 de Fevereiro e no fim do ano deram-nos dois valores porque todos os estudantes estavam “tremidos”. Houve um período em que não tivemos aulas e no fim do ano deram esta boleia nas notas para transitarmos de ano.

Universidade em Lisboa, Núcleo do MPLA e a Fuga (1962-1974)

Depois fui para Portugal estudar, fui viver para casa de uns tios durante um ano e meio não tive grande envolvimento com ninguém de fora da universidade, como era o tal curso de letras só para mulheres, quando cheguei a faculdade havia mais alguns homens, mas numa sala grande de seiscentos lugares, quatrocentos eram mulheres, então sempre estive bem acompanhado no curso.

Depois disso, já tinha várias leituras influenciado pelo meu irmão João, citado antes, já tinha começado a ganhar consciência, a sensação era que eu não pertencia ali, então aproximava-me mais dos estudantes, colegas  das colónias.

Acabei por sair da casa dos meus tios e fui para uma residência de estudantes onde havia estudantes de Timor Leste, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, de São Tomé e Príncipe era uma frequência chamada hoje de lusófona. Eu tinha ido com uma bolsa da Procuradoria Geral dos Estudantes Ultramarinos, cheguei em 1962 com esta bolsa e durou até ao momento em que entrei para a residência dos estudantes.

E um dia chegou lá um senhor Silva Cunha que foi dar uma palestra aos estudantes das várias colónias que viviam nesta residência e a certa altura eu comecei a contestar o que ele falava, não sabia a importância do que ele falava e comecei a responder-lhe. A certa altura não quis mais responder e começou ele a fazer-me perguntas, deixei de lhe responder, levantei-me, ia embora para o quarto, ele veio atrás de mim, parou-me na porta, eu tinha empurrado a porta e ele pergunta-me “o amigo é um bocado revolucionário, não é?” e eu disse “faz-se o que se pode” e ele disse “eu sei que são as más companhias” e deixou-me ir embora.

Uns dias depois deste episódio, eu recebo no quarto da residência dos estudantes um envelope cheio de jornais do partido comunista português “O Avante”, recebo o envelope e começo a tirar os jornais, li alguns e deixei aquilo no quarto. Nesta noite, o padre que dirigia a residência e que também vivia na lá, perguntou-me, porquê tinham estado lá pessoas para me interrogar, mas ele não deixou por se sentir desautorizado e decidiu vir ele perguntar-me e disse-lhe o que é que se passou. Respondi “alguém mandou aqueles jornais na tentativa de me incriminar”, ele disse-me para deitar aquilo fora porque se eles voltassem eu teria problemas. Então, decidi ir no carro da minha namorada, a hospedeira da TAP, fomos de carro até chegarmos a uma zona sem casas onde nos sentimos à vontade, cavamos um buraco, deitamos os jornais lá para dentro e metemos fogo, quando demos conta o fogo começou a espalhar-se e o tentamos  apagar com os jornais ainda não queimados, acabamos por deixar no buraco os jornais quase inteiros e fomos embora.

Quinze dias depois da tal conversa, o Silva Cunha, foi nomeado Ministro do Ultramar, cargo exercido durante dez anos até ao 25 de Abril, exercido até 1974. Em 1965/66, não estou bem certo, nas férias grandes decidi ir a Paris com um amigo, um polícia veio atrás de nós dizendo haver um problema, e o problema que havia  era a minha interdição de sair do país. 

  • Perguntei porquê? 
  • O seu amigo pode continuar a viagem, mas você tem que voltar para Lisboa, e ele disse-me
  • depois explicam-lhe em Lisboa, e perguntei 
  • em Lisboa onde? 

Ele não queria responder, e o funcionário da alfândega disse 

  • onde há-de ser? a PIDE!”. 

E quando cheguei a Lisboa fui a António Maria Cardoso, a sede da PIDE, onde as pessoas evitavam passar. 

  • Quero falar com o director, perguntaram-me
  • Quer falar com o diretor porquê?
  • Quando falar com ele explico o problema

Mandaram-me esperar numa sala onde fiquei uma hora sem aparecer ninguém, depois apareceu um sujeito encostado a uma mesa e ficou lá sem dizer nada, pensei que seria uma pessoa que também estava a  espera, não lhe disse nada, depois daquele tempo disse-me

  • Com que então é o senhor que quer falar com diretor? eu disse
  • Quando estiver com o director eu falo, ele insiste e diz
  • Mas não pode sem me falar no assunto e eu disse
  • Querer saber da razão da interdição da minha saída na fronteira

Fiquei à espera mais uma longa hora até que a porta contígua abriu-se e apareceu o director que me disse.

  • Então é o senhor que quer falar comigo e eu disse
  • Carimbaram o meu passaporte e quando ia passar a fronteira disseram-me estar interditado. E ele disse-me
  • Nós não podemos explicar a razão. Disse-lhe então 
  • Onde é que eu posso ir mais? ele disse-me
  • Isso é problema seu! então disse-lhe,
  • Está tudo resolvido ?
  • Sim, está tudo resolvido!

Quando contei aos meus colegas onde tinha estado, eles disseram-me “mas tu és maluco? tu podias nunca mais sair dali!”

Precisei ir a Setúbal tratar da licença militar para apresentar na universidade e fui pedir e o funcionário que me atendeu disse, “o amigo não tem tido muito bom comportamento” eu digo-lhe porquê? Abriu um livro com uma série de colunas e  acho que ele fez de propósito, deixou o livro aberto para eu ler, estava escrito  “amigo está indigitado a fazer o serviço militar em Penamacor que era a companhia militar onde iam os criminosos e os assassinos.

Eu como estudante ao fim de três meses teria a categoria de alferes, mas eles iam mandar-me como militar raso para a tal companhia disciplinar. Foi esta a razão de eu ter decidido fugir, já não podia vir a Angola visitar a família, não podia sair daquele rectângulo na Europa, a situação começou a complicar.

Nas férias grandes os meus colegas das colônias viajavam para os seus respectivos territórios e eu ficava em Lisboa três meses sem fazer nada, sem poder ir a lado nenhum. Então, eu pegava no carro da minha namorada e fazia passeios por Portugal e nestes passeios fui tentando sair. Comecei pela fronteira do Minho porque no passaporte não havia nada escrito sobre não poder sair, tentei por Trás os Montes, outra fronteira, apresentava-me na fronteira e diziam-me “o senhor não pode sair”, comecei a descer, já não sei por quantas fronteiras até que numa fronteira quase a chegar ao Algarve colocam um carimbo vermelho e então foi impossível tentar de novo.

A Paixão pelo Teatro e a Clandestinidade, 1966

Até aos vinte anos praticamente nunca tinha visto teatro, gostava de cinema. Em Portugal, para além das salas de cinema, havia o cineclube com outra classe de filmes para a qual cheguei a escrever crítica de cinema. As colegas universitárias sempre muito voltadas para as artes convidaram-me a ir ao teatro. achava aqueles gestos muito retóricos, tudo muito pomposo continuei a ir para o cinema até 1966 quando a namorada levou-me a ver uma peça de teatro universitário e foi quando decidi ser aquilo que queria fazer. Apresentei-me no teatro em 1967 como candidato, fui aceite e no ano seguinte já pertencia à direcção e começou a “cena teatral”.

Para terminar a história das fronteiras, em 1968, eu já estava no teatro e o grupo recebeu um convite para ir a San Sebastian, no norte de Espanha. Na altura já estava ligado ao núcleo de clandestinidade do MPLA e antes a outro português. Quando uma vez, um primo meu começou a sondar com conversas sobre a nossa terra, Angola, era preciso nós fazermos qualquer coisa “ tu não te interessas” e eu disse “estar ligado a um grupo radical” e ele disse “como estás ligado a um grupo radical portugues se nós somos angolanos?”  E como a namorada da TAP viajava muito e deixava a casa vazia, eu através do meu primo comecei a ceder a casa ao grupo clandestino do MPLA, neste núcleo havia o Garcia Neto que foi morto no 27 de Maio e por este grupo mantive contactos com outros membros como o Joaquim Pinto de Andrade e outros.

Havia um jornal impresso na Argélia, era policopiada em estêncil, quando um acabava de ler passava a outro e geralmente o último a ler acabava preso, como o próprio Joaquim Pinto de Andrade. Antes de ser preso  o Joaquim Pinto de Andrade contactou-me perguntando  “se eu não podia guardar dois livros importantes”, a História de Angola e uma antologia das colónias, eu disse que sim e  combinamos um encontro na cantina da faculdade de medicina do hospital Santa Maria por ser  um sítio agitado,  então combinamos que ele entraria com a pasta por uma porta , entregava-me e eu continuava, só que a pasta não tinha só dois livros tinha mais cerca de cem exemplares do Avante foi quando comecei a sentir o peso, o percurso mais longo da minha vida foi da cantina do Santa Maria até ao meu carro, com a pasta na mão, com aquele peso todo sobretudo com aquele o peso na nuca, o de aparecer alguém e dar-me logo ali um tiro, a pasta pesava cada vez mais….

Cheguei à residência e pensei que era impossível deixar os livros na residência, ainda disfarcei o livro no meio dos outros meus livros, mas tinha um amigo que tinha a família na Serra da Estrela e fomos de carro a casa dos avós dele e deixei os dois livros lá no início de 1969.

No entanto, todo mundo que frequentava a casa da minha namorada já tinha sido preso. Eu não cumpri aquela regra larga o livro é preso, mas surgiu a oportunidade de vir com o grupo de teatro, é bom referir que o  Salazar já tinha caído da cadeira, já tinha sido nomeado como Primeiro Ministro o Marcelo Caetano.

Depois desta ligação que eu tive com o núcleo clandestino do MPLA eles  organizavam a fuga de Portugal das pessoas para evitar que fossem presas porque já tinha havido uma série de prisões. Eu já estava organizado para sair clandestinamente quando surgiu o convite do teatro e  vi a possibilidade de tentar sair sem ser preso, então elementos do grupo  de teatro foram falar com o Ministro da Educação que era o Veiga Fernandes e ele disse “isso era dantes, podem seguir viagem”. 

Fomos até a fronteira de Vilar Formoso, onde eu tinha já sido barrado anos antes  quando ia de boleia com o meu colega e o director do grupo pegou nos passaportes e  veio de volta acompanhado por vários  policiais e chegaram dois policiais fardados e de baioneta, entraram no autocarro e começaram a rasgar com a baioneta os assentos do autocarro. No entretanto, um outro polícia chegou com os passaportes e foi chamando um a um e a medida que o indivíduo  entrava  no autocarro  ele entregava o passaporte e eu fiquei o último e o senhor disse o senhor tem que voltar para Lisboa, o grupo do autocarro, constituído por radicais começaram a gritar, a metesse com a polícia. Fomos todos arrumados numa sala  porque o director do grupo insistia que eu estava autorizado pelo Ministro, tentamos ligar, e por volta da meia noite conseguimos  localizar o Ministro  que tinha entrado numa clínica com um problema gástrico e disse “quando eu disse que podiam sair não sabia que o problema era grave, tenho que falar com o meu colega o Ministro do Interior porque ele é que pode saber porque esse indivíduo não pode sair”. Lá ligaram ele disse que não sabia do caso, mas quando viu que eu era de Angola diz  então tem que ser com o Ministro do Ultramar, o tal meu antigo amigo Silva Cunha e entre os três, os dois Ministros e o Director do Ultramar resolvem que eu podia sair.

O festival era de 2 a 10, eu tive presente durante o período todo do festival e no último dia sem dizer nada, apenas o encenador do grupo que era argentino sabia,  apanhei um táxi e pedi para levar-me a França próximo a San Sebastian, quando chegamos à fronteira de França o sujeito perguntou onde eu ia e disse-lhe  que ia a Biarritz, uma praia ali perto, ele mandou o táxi seguir e apanhei o comboio nesta mesma noite  para a Paris e de lá segui para a Alemanha onde tinha a minha namorada da TAP à espera  e fiquei em Frankfurt a viver. 

Houve uma troca de namorada, esta era professora em Lausanne na Bélgica onde  acabei por ir viver quase um ano mantendo sempre a residência em Frankfurt. Na Bélgica fiz dois seminários durante dois meses sobre certos aspectos do teatro e na Alemanha dirigi pela primeira vez um grupo de teatro constituído por trabalhadores espanhóis até 1964.

Regresso a Angola em 1974 

O director argentino com quem eu tinha trabalhado em Lisboa, regressou de Cuba e convida-me a ser seu assistente em Frankfurt até ao dia  em que a caminho para o teatro vejo um jornal a venda onde estava escrito “golpe militar em Portugal” duvidei e fui acompanhando até ao dia em que li que o tal Ministro do Ultramar tinha sido preso, então já havia uma novidade interessante, decidi voltar para Portugal com a intenção de vir para Angola.

Mas não me deixaram vir para Angola porque na altura precisa da licença militar mas como era refratário teria de fazer um novo exame para fazer a recruta e aguardei até ao dia da inspeção física para ver se era apto para o serviço militar e oficial que me atendeu diz-me “mas você é de Angola porque quer fazer a recruta no serviço militar português? mas você quer mesmo ir para Angola?” Eu disse que sim, então “vou escrever aqui que você é inapto”, devia ser um oficial de esquerda, voltei para Angola em Novembro de 1974.

Já tinha iniciado a tal carreira de teatro, feito seminários, teatros, sido assistente do argentino no principal teatro da cidade então e vinha para Angola com o objectivo de fazer teatro já que o meu curso não servia para nada como disse o outro sujeito.

Cheguei a Angola em Novembro de 1974 com intenção de fazer teatro em parceria com o marido de uma amiga minha que conheci na Alemanha que já tinha dirigido grupos amadores em Angola, estava combinado fazermos teatro juntos. Só que quando cheguei ao Teatro Avenida  onde nós queríamos fazer um teatro diferente este continuava ocupado pela companhia residente, com um elenco exclusivamente branco, com peças que eles entendiam ser as peças mais adequadas para apresentar aqui em Angola.

Pós Independência 

A Emissora Nacional de Angola e a Prisão de António Cardoso,15 Jan 1975

Antes disso, eu tinha de arranjar emprego mas algumas das pessoas que tinha conhecido em França e na Alemanha trabalhavam na emissora oficial de Angola, onde tinham um programa. Então, no dia 15 de Janeiro de 1975 comecei a trabalhar como tradutor de francês e inglês para as agência Reuter e France Press, o meu chefe era o Antônio Cardoso.

Quinze dias depois, ele foi raptado pela FNLA, nesta noite nao fui trabalhar porque tinha um ligeiro paludismo senão teria sido levado. Todo o resto do pessoal da emissora entrou em greve com a exigência da libertação do António Cardoso e  a greve consiste na ocupação da emissora  porque não se  liam todas notícias sobre o Governo de Transição que tinha sido constituído no dia em que comecei a trabalhar, no dia 15 de Janeiro. A partir deste dia só transmitimos os comunicados das comissões populares do bairro, do poder popular. Não líamos comunicados do MPLA, da UNITA e da FNLA. Ao fim de quinze dias o representante do governo português disse que o que se estava a passar era gravíssimo porque o governo de transição tinha tomado posse e estávamos a transmitir comunicados de instituições não reconhecidas por aquele governo.A resposta das pessoas que tinham ocupado a emissora “devolvem o António Cardoso e voltamos a emissão normal”, os representantes do MPLA, da UNITA e da FNLA tinham poder.

Eu traduzia as notícias para Reuter e para a França Press e uma hora antes da emissão ir para o ar, tínhamos que ir para uma sala onde eles tinham de autorizar as notícias, era mesmo para rir, por exemplo, uns diziam que esta notícia está a falar mal do Brasil, mas depois da independência nós queremos boas relações com o Brasil, quase não ficava a notícia, o MPLA cortava umas notícias, a UNITA e a FNLA outras, tínhamos de ter muito cuidado na emissão de notícias, trabalhei nesta emissão até Junho.

A Constituição da ANGOP, 1975-1983

Em Junho um enviado do Presidente Agostinho Neto foi ter comigo e disse-me que o Presidente Neto tinha tido a informação que eu era a única pessoa capaz de criar uma agência noticiosa que ainda não existia em Angola, apenas havia a emissora e que o Presidente tinha preocupação que logo após a independência teria de ser criada uma agência de notícias angolana. Eu disse “eu nunca vi uma agência de notícias na minha vida”. Só o Presidente falar no meu nome era uma grande responsabilidade e este indivíduo repete disse  “isto não tem importância, tens 24 a 48 horas para apresentar o projecto de uma agência noticiosa”, “O camarada era capaz de fazer”. 

Eu sabia elaborar uma notícia de rádio, elaborar uma notícia de um jornal, mas a  de uma agência era outra coisa. Então fui a LELLO, na altura as livrarias ainda funcionavam e vasculhei a LELLO onde encontrei um livro que tinha capítulos variados sobre como organizar uma emissora de rádio, uma de televisão e um  capítulo maravilhoso sobre como organizar uma agência de notícias. Sabia transmitir notícias, mas não sabia como estruturar os órgãos internos da agência, estruturar uma agência, etc.

O Presidente Neto enviou-me a Moçambique para falar com o Aquino, de Goa, mas vivia em Moçambique e por acaso faleceu no avião com o Presidente Samora Machel, o Aquino tinha muitos contactos com o exterior com que eu depois iria contactar, enviou-me numa viagem com 1500 dólares a três países. O Aquino recebeu-me muito bem, disse ter contactos na Europa com muita gente e que o ideal era ir a Dar Es Salam na Tanzânia, fui falar com o representante do MPLA na Tanzânia onde passei quinze dias a comer funje só mudava o molho. Depois de uma semana na Tanzânia segui para a Argélia e quando cheguei sabendo ser enviado do Presidente Neto vieram uma série de jornalistas  e  convidaram para ir a outros países, dizendo “não fique só na Argélia vá também a Bulgária, a Jugoslávia, e a RDA”. Disseram-me “vão pagar tudo”, então vai. Na Argélia lá tive que chegar pelo representante naquele país o Iko Carreira que depois foi Ministro da Defesa e pelo N`Dunduma, uma semana depois convidaram-me a participar numa actividade da juventude em Dubrov onde fiz um grande discurso revolucionário sobre Angola.

Segui para a Bulgária, apaixonei-me por uma Búlgara e depois fui convidado a ir para a RDA em Berlim, e quando quis passar para o lado ocidental de Berlim, os Alemães da RDA disseram-me que eu  não podia tinha que ir de avião a  Bonn e  depois em Berlim, lá se discutiu e acabaram por deixar-me atravessar a fronteira. 

Depois fui para Paris, mais tarde para Holanda onde havia um Comité do MPLA e depois cheguei a Lisboa e assim a missão se estendeu por três meses e ainda tinha 200 dólares, dei 100 dólares a minha mãe e quando cheguei a Angola devolvi 100 dólares ao gabinete das finanças do MPLA, as pessoas acharam invulgar, devem ter ficado em mãos onde ninguém os deveria buscar.

Quatro anos depois quando regressei da Alemanha, na minha passagem por Lisboa fui buscar os livros a casa dos velhinhos na Serra da Estrela onde estiveram guardados desde Maio de 1970, estavam exactamente no sítio onde os tinha deixado, voltei a Lisboa e fui ter com o Joaquim Pinto de Andrade que já estava solto e disse-lhe “os livros que me deixou estão aqui” e ele disse-me “o quê, tu tens estes dois livros”, ficou de tal maneira admirado e disse-me “tu mereces ficar com um deles e fiquei com a Antologia dos Países de Língua Portuguesa” e ele com a História de Angola. 

Saí em Julho de 1974 para Moçambique e regressei em Outubro exactamente no dia em que os sul africanos invadiram o país, duas a três semanas antes da independência. 

Quando fui à sede do MPLA na Vila Alice disseram-me que a agência já existia, funcionava em uma vivenda, tinha sido criada, dirigida por uma senhora indicada pelo Nito Alves, estava tudo bem organizado, cozinha, carros com motoristas, vinte a trinta funcionários mas não tinham nenhum jornalista. Apresentei o caso ao Ministro da Informação que era o Manuel Rui Monteiro para ele comunicar ao Presidente que eu estava de volta, tinha o tal relatório, com todos contactos das agências que estavam todas preparadas para receber as notícias a partir da independência do país, mas as agências não tinha jornalistas e o Manuel Rui na altura disse-me, o ministério trabalha dentro do palácio e havia um único telex  que servia para todos e passou também a servir para a ANGOP.

E a partir do dia da independência começamos a difundir os noticiários para várias agências a partir deste telex, na altura o Presidente Neto indicou uma jornalista argentina a Augusta Conquilha para me apoiar. Todo pessoal da residência queria ir trabalhar para o palácio, mas o Ministro disse só podiam ir os jornalistas,  não fazia sentido irem cozinheiros, motoristas, houve um impasse, fui sozinho, eu tinha um compromisso de emitir as notícias, começamos a emitir as notícias para o mundo. 

Depois do meu regresso o Presidente Neto fez uma reunião, já havia aquela posição do Nito contestar as decisões do Presidente Neto, então a Augusta saiu e fui indicado pelo Luís Neto Kiambata, fiquei chefe de redacção e funcionamos assim durante vários anos até 1983 altura em que fui despedido quando fui afastado por um membro do Comité Central. 

TPA e CINEMATECA, 1983-85

Depois deste despedimento da agência, apresentei um relatório de 80 páginas provando que aquela medida de despedimento não era só injusta mas também era ilegal, fiquei a espera da resposta quase um ano e durante este tempo fazia traduções para a TPA, uma semana depois de ter sido despedido da ANGOP fui convidado pelo Presidente Jose Eduardo dos Santos para trabalhar na presidência e achei que não podia aceitar até o meu despedimento ficar esclarecido não queria compromissos oficiais e trabalhei dois anos na CINEMATECA.

Conselhos às Novas Gerações

Acho que nenhuma geração precisa propriamente de dar conselhos às gerações seguintes porque os objetivos são diferentes, o que há a fazer é diferente, acho que o que cada um de nós pode fazer é contar o que nós fizemos e a história do que nós fizemos, por exemplo quando aderi ao núcleo do MPLA em Lisboa, a perspectiva de Angola ser independente era imprevisível, ninguém tinha a consciência que dentro de nove anos Angola seria independente, se alguém dissesse “vamos resistir a política colonial porque dentro de dois anos seremos independentes”, ninguém acreditava nisso!

Só a decisão de pensar “eu sou angolano, eu não pertenço aqui, o envolvimento com os amigos, a exemplo de dois amigos portugueses, as namoradas foram moçambicanas e os amigos eram das colônias até fazíamos questão de meter nos casacos os emblemas de Angola,  dos nossos países. Nos momentos de fazermos a escolha, quem íamos enfrentar, a quem iam enfrentar, quanto a mim são as decisões importantes. 

Os que  foram para a guerrilha, os que fugiram para fazer a tropa colonial, os que  tomaram a decisão de enfrentar o regime directamente e tiveram consequências fatais, perderam a vida. As coisas não são iguais, verem que há momentos da vida que as decisões têm que ser tomadas. Houve casos de camaradas como o do Ministro Paulo Teixeira Jorge várias vezes insistiram para ele escrever as  suas memórias porque ele tinha todo um passado na diplomacia e ele foi adiando, acabou por morrer e parece não haver registo sobre as histórias que ele contava sobre as relações diplomáticas dos outros países com Angola.

Quanto mais pessoas ligadas a todo este processo que levou à independência contarem as suas memórias e se as registarem por áudio, ou por escrito é o mais importante, acho que isto é mais importante do que qualquer conselho, é mais importante sobre conselhos, agora os exemplos sim, eles podem influenciar as actuais gerações.

Conselhos para Gerações Futuras

Eu acho que se todos que tiveram algum papel, pequeno, médio, que tiveram de alguma forma ligados ao processo que levou à independência, tiveram de alguma forma envolvidos no processo da independência e nos anos que se seguiram, desde que descrevam com honestidade e verdade aquilo o que aconteceu, no futuro com todos estes elementos que muitas vezes são contraditórios, no futuro alguém encontrará conclusões sobre quem foi decisivo para se atingir pelo menos aquela etapa fundamental que era a independência e que era talvez o objectivo mais distante para todos nós conforme já referi  “nenhum de nós tinha a perspectiva que em tão poucos anos pudéssemos vencer um país apoiado pela América, pela NATO, pela África do Sul”,  quer dizer era um isolamento de tal forma dramática, era loucura pensar que podias enfrentar aqueles monstros e acabamos quase sem querer, fazendo o que cada um fez e que de certa forma cada um contribuiu para fazer o que cada  um fez!

Anos 30, 80 e 90, qual a diferença da sociedade na altura

Já estou com 77 anos portanto já posso falar destas épocas, a minha primeira vivência de 15 anos em Malange, era uma sociedade relativamente mestiçada, havia um convívio mais ao menos normal entre as pessoas fossem negras, mestiças ou brancas, nunca senti esta contradição até aos meus quinze anos.  Mesmo na minha própria família os meus irmãos mais velhos eram filhos de uma senhora negra que foi mulher do meu pai, entre amigos. Por exemplo, em minha casa  entravam todos amigos, nem sentíamos, sabíamos haver contradições sociais, havia o pessoal de serviço e na escola convivemos com naturalidade. 

Mais tarde, quando terminei o quinto ano do Liceu, o colégio organizou férias e fomos para Luanda e de Barco, fomos a Benguela e ao Namibe,  fomos ao Lubango por estrada, era o prémio por concluirmos o quinto ano do liceu. O primeiro choque foi, o nosso grupo tinha as mais variadas cores e quando chegamos a piscina da Huíla, proibiram os colegas negros e mestiços, íamos todos a correr para água e disseram “os brancos podem entrar e vocês não”, para nós foi um choque, ficamos chocados porque na piscina de Malange podíamos entrar todos. Aí começa a nascer a consciência de que afinal há problemas. Depois, chegando a Portugal  já com o convívio do pessoal de outras colónias aumentou a consciência e fomos tendo consciência e chegamos a conclusão  que  a situação não dava para continuar daquela maneira.

Em 1960, quando saí de Malange e cheguei a Luanda senti que as coisas não eram verdadeiramente iguais, embora o Liceu Salvador Correia fosse bem misturado. Os lugares mais difíceis eram o Lubango e o Huambo tinham de ter os lugares seleccionados para brancos onde não podiam entrar outras pessoas. 

Nos anos 2000 na Namíbia numa visita com o Presidente José Eduardo dos Santos o pessoal a noite queria ir dar uma volta e  constatei diferenças sociais fortemente assentes na cor da pele,  os mestiços, os brancos e os negros tinham  de  ir cada um a sua discoteca, portanto essa selecção ainda havia na Namíbia em 2010, pelo menos que nós tenhamos vivenciado.

Uma vez no Elinga Teatro, houve uma altura em que o representante da CNN para toda África tinha estado nesta condição em quase todos países africanos  disse-me que nunca tinha visto um ambiente tão misturado,  tantas pessoas misturadas, a cor, a indumentária e as diferentes idades. Outra situação, a volta do Teatro Elinga vivem pessoas na rua e durante uma exposição a certa altura  estava em animada conversa a Embaixadora dos EUA com um dos indivíduos que vivia no passeio e  é  este convívio que o tal representante nunca tinha visto em nenhum outro país de África.

Este depoimento foi realizado em Luanda, em Outubro de 2022, na residência de José Mena Abrantes.

Palavras-chaves: ANGOP| Elinga Teatro| Malange| Clandestinidade| Licença Graciosa| Emissora Nacional de Angola| Navio Lourenço Marques| Bolsa do Ultramar| Ministro do Ultramar Silva Cunha