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A Participação da Mulher na Construção da Sociedade Angolana, Maria Rufina Ramos da Cruz | Parte I

Durante o período de  prestação de depoimentos a  Plataforma Social de Angola (HSA) é frequente referenciarem outros nacionais cujo percurso de trabalho e de vida constam da memória do depoente uma vez que o processo o leva a reviver a sua vida social e o da sua comunidade. Neste caso, Maria Cristina Carlos Vasconcelos sugeriu a HSA adicionar as memórias de outra veterana do sector social nacional a nacionalista Maria Rufina Ramos da Cruz, considerando em particular as  suas  realizações sociais na área da formação da mulher angolana e  sua prestação ao sector da saúde da sociedade civil enquanto fundadora de uma das primeiras organizações não governamentais nacionais  fundadas no período pós colonial a ANGOBEFA (Associação Angolana de Bem Estar e Familia). Na realidade, esta cidadã já constava na amostra potencial porque a fundadora do HSA, Marinela Cerqueira teve a oportunidade de acompanhar o trabalho da ANGOBEFA ao longo dos vinte e cinco anos de prestação de serviços ao sector.

Após o breve contacto por telefone a depoente agendou a primeira sessão de recolha de dados. Começamos o trabalho  relevando a importância de  se dar a conhecer a sua experiência e dela  tirarmos lições de vida com realce: a educação no seu tempo, aos hábitos  e costumes sociais e  o cotidiano  dos nacionais,  com base  no seu percurso de vida e conhecimento da nossa  sociedade. Questionou a  utilidade do seu depoimento e  respondemos que era contar as gerações actuais e as futuras a história social dos seus antepassados pela voz de angolanos, de haver necessidade de se adicionar a história de Angola  já existente a contra parte contada  por nacionais. Comentou,  dizendo “quando nos colonizaram e Angola se tornou uma possessão portuguesa, mas nós temos a nossa história, a de milhares de angolanos oriundos das dezoito províncias”.

Os Filhos de Fazendeiros,  Samba Cajú 1932

Chamo-me Maria Rufina Ramos da Cruz, sou ambaquista, nasci na província de Kwanza Norte,  não tenho muitas memórias do meu pai porque fiquei órfã aos dez  anos. O  meu pai  fazendeiro  de origem espanhola tinha uma fazenda em Samba Cajú com vários hectares de café cultivados pelos  contratados e  trabalhadores, nesta e nas outras fazendas que foi adquirindo até 1942 criou um “harém do campo” onde suas quatro esposas habitaram, cada uma em sua casa com os seus filhos e  servidores.  Nasci  em 1932 em Samba Cajú numa povoação por onde passava uma das maiores estradas nacionais que começava em Luanda,  passava por N`Dalatando,  antiga cidade de Salazar, por Lucala e  terminava no Uíge, antiga cidade de Carmona. O meu pai morreu em 1942 e o meu “tio” José Coelho da Cruz, primo do meu pai permaneceu na sua propriedade e apoiou os meus irmãos que ficaram na fazenda do nosso pai e aos dois que foram comigo para Luanda onde frequentamos os primeiros anos do ensino primário e regressam à aldeia quando o meu irmão Manuel Ramos da Cruz é transferido para a Ganda.

O meu pai era de origem espanhola,  teve quatro mulheres,  a Constância já falecida e  mãe do meu irmão mais velho Manuel Ramos da Cruz,  é  enviado a Luanda   onde os africanos tinham melhores condições de vida, para estudar e fica sob a tutela de uma destas famílias nacionais, a família Vieira Dias e  Van Dúnem até acabar os estudos. 

Depois do falecimento da Sra. Constância Rodrigues de Moura, nosso pai teve necessidade de arranjar a segunda mulher para ficar numa das fazendas onde havia a casa principal, em Lucala. Cada uma  vivia em uma das suas três fazendas, localizadas entre Samba Cajú e  Lucala.

Como fazendeiro decide aumentar a sua área cafeícola  e antigamente estas áreas  eram endêmicas, mas não havia cuidados suficientes, surgiu a epidemia da febre bubônica e em 1942 é atacado pela epidemia e faleceu.   No funeral do meu pai o meu irmão  filho da Sra. Constância encontra três mulheres. Nomeadamente, a segunda chamava-se Marcelina Pedro da Silva, a mãe da minha mãe Catarina. A terceira, foi  Maria Muzumbi, mãe da minha irmã Alexandrina e a quarta esposa foi a minha mãe , Marquinha Monteiro, a mais jovem teve  três filhos, o  meu irmão Benedito, o Anselmo e eu. Era um harém de uma comunidade no campo, cada mulher tinha a sua casa. Com o falecimento do nosso pai ficamos ao cuidado do nosso primo José Coelho da Cruz , no total de doze órfãos. Este fazendeiro tinha colegas de Luanda, da família Van-Dúnem que também se dedicavam ao cultivo de café, amigos que viriam ajudar a criar os seus descendentes, nomeadamente o meu irmão mais velho e a mim.

Famílias  Assimiladas Luandenses 1940

Estas famílias nobres nacionais possuíam terras e habitações na região urbana de Luanda de antigamente na Mutamba e Ingombotas. Depois de casado o meu irmão  residia nas Ingombotas próximo a Mutamba, na  zona de instalação do  caminho de ferro de Luanda onde agora é o supermercado Nosso Super  era a estação central do Caminho de Ferro de Luanda e ao redor havia as residências dos funcionários. Embora, em ruínas ainda existem alguns destes  edifícios entre as  residências modernas. 

Anteriormente,  morava  em casa dessas famílias ao lado do actual Governo Provincial onde está o actual centro de saúde do Governo Provincial. Em Luanda, o primogênito  fica aos cuidados das famílias Van-Dúnem, Vieira Dias e Torres, famílias que  já tinham uma certa posição na sociedade luandense e viviam nas Ingombotas próxima a Igreja do Carmo e no Cazuno, próximo a Cidade Alta onde agora se localiza o palácio presidencial. Em Luanda  é bem tratado e conseguiu fazer o 5º Ano do Liceu, contraindo matrimônio com uma menina da família Paixão Franco com quem teve uma filha a quem deu o nome de sua mãe.  

Após o falecimento do nosso pai em 1942, o meu irmão  no regresso a Luanda faz-se acompanhar de três dos irmãos órfãos, um de cada madrasta, os meus irmão Alberto Soares filho da velha Muzumbi, o Manuel Afonso filho da velha Marcelina e eu. Nenhuma delas teve filhas, somente a minha mãe. Pela primeira vez, as nossas mães ficaram amarguradas mas não podiam dizer nada porque naquele tempo a decisão era tomada pelos primos. E para não haver choques ele traz para Luanda um filho de cada uma das madrastas.  

O meu irmão já era casado, minha cunhada era civilizada, de Luanda e recebe três irmãos “matumbos” do Kwanza Norte, ambaquistas, do mato que mal falavam português, falavam melhor o quimbundo. O casal  já tinha a primeira filha, a minha sobrinha Constância que depois foi viver para o Brasil onde gerou os nossos descendentes de ango brasileiros.

Tarefas de Crianças e Adolescentes

Durante a infância crescemos bem, em casa própria, bem criados, tínhamos empregados e até uma ama. O meu pai tinha muitos trabalhadores contratados e nós os filhos sempre  lidamos com as famílias deles. A vida em Luanda era totalmente diferente, a habitação, as tarefas domésticas, a escola e aprender a falar português, eram muitas novidades a absorver.  Os meus irmãos o Alberto e o Afonso logo pela manhã acordavam às seis horas e tinham a tarefa de ir  apanhar  os restos do carvão da caldeira do comboio na linha férrea, este era o único combustível  para o fogareiro e  para o ferro de engomar. Aos dez anos tinha a tarefa de acender o fogareiro, era difícil, tinha de abanar o fogo com uma chapa ou papelão até acender para fazer o café do pequeno almoço. O comboio operário passava as seis horas da manhã e deixava cair carvão já acesso e era  transportado em uma pá de alumínio. Nós não estávamos habituados a fazer aquilo porque em Samba Cajú havia trabalhadores. Não havia ainda luz elétrica. As últimas tarefas do dia eram abrir as camas e levar os bacios de esmaltes aos quartos.  Fui aprendendo com a minha cunhada que  foi exigente e rigorosa e estou grata por isso,  aprendi a ser mulher, a ser humana e no futuro fazer o mesmo com outras sobrinhas e familiares quando me casei.
Recordo que para além, dos trabalhadores ambaquistas a maioria dos trabalhadores eram contratados do sul e das lundas, vindos do Norte porque no tempo colonial eram muito poucos pretos que tinham posições consideráveis, na sua maioria viviam à custa de serviços rurais.

As primeiras escolas primárias de Luanda, 1942 

Os meus irmãos e eu  frequentamos o ensino primário nas primeiras escolas primárias de  Luanda. Fomos para escolas diferentes, frequentei a Escola da Aplicação, localizada   onde agora há um novo edifício (actual sede do Banco Econômico)   entre a Rua do Sol no bairro do Cazuno e a antiga  Avenida dos Restauradores onde funcionou a primeira Assembleia da República de Angola, a caminho do hospital Maria Pia, actual Hospital Josina Machel. O meu irmão Afonso frequentou a escola ao lado do actual Governo Provincial e o Alberto foi para a Escola Metodista  ao lado do Colégio das Madres do São José do Cluny e  próxima ao antigo mercado do kinaxixi. Frequentei o ensino primário em Luanda até 1945, durante quatro anos, não acabei o ensino primário (a quarta classe)  porque estávamos a aprender o portugues, o primeiro ano serviu para a integração e a aprendizagem de português.

Adolescência em  Benguela e Ganda  (1945)

O cotidiano das famílias dos funcionários públicos

Em 1945, a Fazenda e Contabilidade abre um concurso e o meu irmão é promovido e transferido para a Vila Mariano Machado, antiga e actual Ganda, província de Benguela.  Até 1960 vivemos cerca de quinze anos entre  Ambaca, Luanda  e Benguela, o meu irmão foi fazendo concursos que levaram a várias promoções até ser transferido para Benguela. O meu irmão foi transferido para Ganda com a categoria de Recebedor (financeiro). Era difícil levar a família toda, era novo e não reunia condições financeiras para levar todos, sendo forçado a optar por levar somente as meninas, a filha, uma sobrinha e eu. Os meus irmãos regressam a Ambaca a responsabilidade do meu tio. Na altura, em Ganda  as condições de habitabilidade, educação e saúde eram primárias, os leões passavam de noite pela porta das  nossas casas de capim.  O empregado saía de manhã para ir buscar água potável nas montanhas, pois em casa apenas havia água da cacimba utilizada para higiene corporal e limpezas, esta tarefa levava todo o dia. Fazia muito frio, o trabalhador levava o dia inteiro para ir buscar os  dois garrafões de água potável. tínhamos casa, as condições melhoraram, mas continuavam a ser distintas das condições de Luanda. 

Tivemos que nos organizar, aprendendo um bocado de tudo, a minha cunhada era muito prendada, de manhã fazíamos pão em casa no forno caseiro, o trabalhador Antônio ia buscar a água. O meu irmão comprou uma máquina de costura para a mulher, ela foi nos ensinando a costurar, cortava paninhos pequeninos para aprendermos a fazer bainhas. 

Depois do almoço, lavamos a loiça, não havia esfregão, as panelas eram lavadas com as folhas mais duras do milho e a barba do milho servia para produzir um desintoxicante  caseiro, os mais velhos diziam que bebido pela manhã em jejum limpava o fígado. As barbas do milho eram postas numa jarra em água, e de manhã a poção era filtrada com uma gaze, outro desintoxicante utilizado era o tronco do borututu.  

Bairros para Funcionários Públicos 

Houve mais um concurso para os funcionários públicos e o meu irmão esteve para ser  transferido para N`Dalatando, mas ele rejeitou porque tinha duas filhas e a irmã já com a quarta classe  e naquela cidade continuava a não haver escolas para prosseguirem os estudos. Em Benguela a vida  da família de Manuel Ramos da Cruz melhorou,  na altura,  eu tinha cerca de catorze anos. 

A irmã do tio Zé Van-Dúnem tutor  do meu irmão  durante os anos em que  estudou em Luanda, a Margarida Van-Duném  é transferida para Benguela e vivia no nosso bairro. Os portugueses faziam casas para os funcionários públicos, vivíamos na Rua 5 de Outubro próximo ao Governo Provincial. O meu irmão era funcionário da Fazenda,  localizada mais acima e o Governo Provincial era mais próximo da nossa casa. Este bairro era específico para os funcionários da Fazenda (Finanças) e da Saúde. Foi uma grande alegria vivermos no mesmo bairro. Recordo, termos como vizinhos  uma senhora pianista e em outra residência um senhor operário.

Estudos de Enfermagem inspirados pelas enfermeiras angolanas, Benguela 

Matriculei-me no curso de enfermagem aos dezoito anos   em Benguela influenciada pela Margarida Van Dúnem (Guidinha), casada  com Elvino Bastos, enfermeira. Naquela época, havia escolas de enfermagem em Benguela, Luanda e Huambo ou Huíla, nas cidades  onde havia hospitais com condições para  a formação de  enfermeiros. 

A segunda maior alegria foi a Custódia, prima da minha cunhada, também  ser transferida para Benguela e ficar a  residir em nossa casa,  foi colocada  no posto de saúde em Benfica e a Guidinha  trabalhava no Hospital Central. Um certo dia, a Custódia pediu-lhe para acompanhá-la e ajudá-la a fazer as compressas  porque tinham muitos pacientes e  fazer outros pequenos trabalhos integrados na iniciação de um curso de enfermagem. Ambas  motivaram-me a enveredar para a saúde. 

Passando alguns anos, pela  segunda vez  o meu irmão  é indicado e teve de aceitar a transferência para N`Dalatando. Eu fui para  Luanda fazer o curso de enfermeira auxiliar para o qual era necessário o diploma da  quarta classe e o da  sexta classe  para o curso de enfermeira técnica. Fico a residir em casa do tio Liceu Vieira Dias, os laços de fraternidade entre as famílias foram reforçados quando a avó Guinhas foi minha madrinha de baptismo. Faço o curso médio de enfermagem e de parteira e começo a trabalhar.  Estava em casa de família! A tia Anatércia esposa de Liceu Vieira Dias era uma pessoa muito agradável, pais da Dina Stella e da Nina Vieira Dias, a tia Aurora era uma senhora impecável, todos trataram muito bem, tal como trataram o meu irmão primogênito.

Carreira de Enfermagem na  TAAG

A Direcção de Transportes de Angola (DTA) abriu o concurso e havia vaga para enfermeira.  Primeiro, trabalhei com o Tenente Coronel Medina, cabo-verdiano, nos  serviços de saúde do Caminho de Ferro de Luanda e quando este é transferido para a DTA  indica-me para fazer parte do corpo de enfermagem. O Tenente Coronel Medina “levou-me” do Caminho de Ferro para a DTA, dizia que eu sabia apanhar bem as veias, trabalhava com a enfermeira Mariette, branca e baixinha, chegada de Portugal com quem aprendi muito. A DTA foi uma das primeiras empresas a ter posto médico. Na altura, a DTA, os hangares e a pista eram próximas a actual Praça da Independência, o posto médico foi instalado em um dos hangares. Actualmente, naquele local se encontra o conhecido largo dos Ministérios, a sede do MPLA e os bombeiros. Trabalhamos no posto localizado em um dos hangares, a equipa era chefiada pelo Coronel Nunes.  Fiz carreira na TAAG até me reformar nos anos 1990. 

O Hospital da Caridade, 1960 

Em 1962, o actual hospital foi inaugurado. A Ligia Ferrão, a Lourença Van Dúnem, Júlia Alberto Domingues, foram as primeiras enfermeiras do primeiro hospital indigina chamado Hospital da Caridade. Fomos nós que arrumamos o hospital e cada um de nós ficou na sua área. Quando houve o assalto à cadeia de São Paulo a 4 de Fevereiro em 1961 fomos nós que socorremos os feridos, tínhamos acabado de concluir o curso, umas estavam na área de traumatologia. A situação foi difícil, houve muitos feridos e traumas. Naquele tempo, todos nós, fundamentalmente os enfermeiros, estávamos envolvidos…

Pré Independência (25 de Abril de 1974 a 11 de Novembro 1975

Mulheres na Organização de Defesa Popular – ODP

Todos nós lutamos, fui da ODP, era necessário para detectarmos os inimigos. O Presidente Neto disse que era necessário formarmos grupos para a defesa popular. Todos participamos e as mulheres também foram engajadas. A UNITA e o MPLA estavam bem enraizados nos nossos bairros, os brigadeiros da ODP eram treinados próximo a fábrica da CUCA, havia o muceque Mota. Os três movimentos estavam em Luanda e havia muitos “infiltrados”, cada um tinha a sua opção política, mas foi necessário organizar a defesa popular e muitas de nós recebemos armas para nos protegermos. Fomos treinadas pela camarada Teresa Ginga, chegada de Nambuangongo. Ainda havia opressão até a saída dos últimos portugueses, estes batiam a porta à noite e matavam. 

A OMA foi fundada no “maqui” pela Engrácia, Mariana Anapaz e outras. Quando elas chegaram transmitiram como estavam organizadas. A Teresa Ginga e a rainha do 4 de Fevereiro  eram as formadoras, havia o fervor pela independência, todos os angolanos estavam engajados na defesa do país, estavam filiados nas diferentes organizações dos movimentos de libertação nacional, uns na OMA, outros na UNTA, outros na ODP. 

O trabalho da ODP era  tratar da vigilância generalizada porque  o governo português usava infiltrados para matar as pessoas, batiam as portas e matavam-nos. Antes do governo português partir ainda havia opressão, havia militantes urbanos a conviver com os três movimentos oriundos do “maqui” estas acções de defesa popular salvaguardavam os militantes urbanos e os recém-chegados. Tínhamos muita coragem, todos os angolanos se engajaram na defesa do país.

O Apoio das Mulheres Independentistas, ODP 1974

Integrei a equipa que  recebeu 350 combatentes, na Maianga, em um  dos prédios abandonados pelos colonos que eram ocupados para receber os combatentes chegados do Maqui. Recordo-me da chegada a Luanda de  Teresa Ginga, uma guerreira vestida com palhas e cordas, com o tronco nú. Foi triste ver mulheres trajadas daquela forma, mal vestidas e sofridas; crianças e mutilados, alguns sem pernas e sem braços. Aquelas casas do Prenda estavam abandonadas e eu recuperei o centro de saúde do Prenda onde tratamos  destes combatentes e dos seus familiares, aquelas famílias estavam destroçadas.

Quando se conseguia libertar as áreas onde estes estavam como Nambuangongo e Caxito, aquelas populações eram alojadas em áreas protegidas mais próximas e depois vinham para Luanda porque quando havia confrontações os guerrilheiros ficavam de um lado e as famílias do outro. Houve confrontação em Cacuaco, para evitar a entrada em Caxito e em N´Dalatando. Havia ataques em duas áreas e o MPLA estava no centro a ser atacado pelos outros dois movimentos. Quando houve o Massacre de Kifangondo morreu muita gente e nós tivemos que nos defender. 

Havia alguma vingança! Quando o povo angolano começou a sentir-se seguro começou a vingar-se “os pretos se partissem um copo eram palmatoadas, os africanos foram humilhados e maltratados” e os portugueses começaram a ficar com medo.  

A independência custou aos filhos desta pátria, perdeu-se muito sangue e perdeu-se muita gente. Quem viveu as vicissitudes da guerra tem de aconselhar  as gerações mais novas e foram eles quando jovens que pegaram em armas, pois “os negros eram chicoteados de tronco nú e muitas vezes os dedos eram queimados,  a escravatura  ainda existia no inicio do sec. XX, e os pretos não podiam fazer nada, por partir um copo, eram chicoteados de tronco nú com o chicote de cavalo marinho, com banhos…”, por isso nos engajamos com força e coragem na luta para a libertação.

Os primeiros massacres começaram no Cazenga em 1961-62 e nesta altura dá-se a entrada das nossas combatentes do MPLA que iniciaram a luta armada no maqui, recém chegadas de Brazzaville  fomos tendo reuniões em casa do tio Liceu Vieira Dias e começamos a colher a experiências destas combatentes, fomos recolhendo informação de  com cada uma delas na sua área trabalhavam nas comunidades, porque elas  não trabalhavam só nos campos do MPLA mas também com as  comunidades ao redor.

Trabalhei com as ex-combatentes Mariana Ana Paz, Eva Afonso, Rodeth Gil, Catarina Horácio e a esposa do falecido Bens ainda em vida e reside na Rainha Ginga em Luanda.  Elas foram contando como viviam, nem todas estavam directamente na guerrilha como a Deolinda Rodrigues, as outras estavam na retaguarda a cuidarem dos guerrilheiros, a lavarem roupa e a fazerem outros trabalhos sociais, foi esta experiência e a passagem deste testemunho a inspiração para a criação da ANGOBEFA. 

Elas transmitiram as experiências adquiridas nos Congos que desencadearam a criação das direcções da OMA a nível nacional.  A experiência adquirida após a  minha filiação a esta organização partidária  deu-me conhecimento para criar esta organização  e outras angolanas tiveram iniciativas semelhantes, tais como a Boneca Feio que mais tarde criou o grupo das Crianças do Maculusso e a Esmeralda Santos empenhou se na alfabetização, criamos o núcleo na província de Luanda e foi criado o secretariado constituído pelas estas companheiras

Todas as  camaradas representantes das províncias participaram no primeiro congresso da OMA, uma das especialistas recebeu orientações para trabalhar de forma descentralizada com as suas homólogas nas províncias, no meu caso trabalhei na prevenção de doença endêmica.

Estudantes e Crianças Angolanas na Ilha da Juventude em Cuba

Após os fortes ataques em certas províncias, sobretudo no sul e leste de Angola, o exército escoava a população para áreas mais seguras. Os cubanos  preocupados com esta situação colocaram à disposição uma área da Ilha da Juventude para  onde levavam as crianças para Cuba ao abrigo de um acordo assinado durante o mandato do Presidente António Agostinho Neto. Para acompanhamento social foi criado um núcleo multidisciplinar, recordo-me  da participação do MINED representado pela  Fátima Barros, do MINSA pela Dra. Judite Ferreira, Enfermeira Elvina e Maria Rufina como representante da OMA. A certa altura, os miúdos estavam a passar mal, alguns não suportaram aquele sistema militarizado, bastante rígido e aproveitavam voltar quando chegasse um avião. Era um sítio tranquilo, mas me parece que havia  outra intenção  a de aumentar a força de trabalho nas plantações de cana de açúcar em Cuba.

A primeira preocupação era arranjar um local seguro onde estas crianças e adolescentes pudessem viver e ser educadas e inicialmente estavam todas juntas..  Era um campo vazio, sem casas, os primeiros três anos foram árduos.

ANGOBEFA 

Criei a  ANGOBEFA devido a necessidade de saúde  e ao entusiasmo daquele momento da  independência.  Mas, a veia da solidariedade começou em casa da família do Liceu Vieira Dias onde residia,  uma das casas muitas vezes usada  para reuniões que podiam terminar à meia noite e nós jovens ajudávamos a distribuir. As primeira medalhas do MPLA trazidas pela Mariana Anapaz , chegaram a Luanda em uma lata de Leite Klim  e foi enterrada por mim , o tio Liceu deu-me a lata de leite, a PIDE foi fazer vistoria, até rasgou os sofás e as mobílias, ele  disse-me vai “ vai a casa da Lídia e enterra a lata no quintal”.  Estou farta de pedir ao Kopelipa para me levar ao quintal para desenterrar a lata de leite KLIM grande, tenho certeza que se as árvores não foram cortadas, aquela mulembeira, a lata ainda lá se encontra. A tia Mariana Ana paz trouxe notícias dos irmãos nacionalistas que estavam do outro lado.

É neste ambiente familiar onde conheci outros nacionalistas como o Enoch Vasconcelos, Beto Van Dúnem e Mendes de Carvalho, em casa do tio Liceu onde nos encontrávamos, os panfletos eram deitados pelos rapazes como o Beto Van Dúnem, Amadeu Amorim e outros jovens. Quando a PIDE cortou os móveis, colchões e destruiu todo o recheio, a tia Nastácia estava lá. Foram estas experiências da minha infância, juventude e luta pela independência as motivadoras para criar a ANGOBEFA. 

Todas as pacientes  tratadas pela ANGOBEFA têm de  participar nas palestras, antes da consulta onde aprendem a conhecer o seu corpo e como este funciona, e transmitem os conhecimentos adquiridos aos familiares em casa. 

Trabalhamos na zona do Calumbo e em  outras zonas rurais.  As adolescentes adoram optar por injeções por ser mais fácil o que  considero ser  uma mutilação precoce, porque uma mulher com o ciclo regular pode aprender a evitar a gravidez sem a necessidade de fármacos. Quem me ensinou o primeiro método contraceptivo foi a enfermeira Mariette, aprendi o calendário controlado pelo casal. Estou particularmente preocupada com a situação das jovens terem muitos filhos e quando lhes pergunto pelo pai do filho, respondem “não sei, não sei tia”. 

Consegui uma clínica móvel doada pelas Nações Unidas e continuo a supervisionar as actividades comunitárias, a pedir medicamentos para este posto móvel de saúde.  O Ministério da Saúde cedeu duas técnicas de laboratório. Nesta clínica móvel é também  possível colocar preservativos, mas as pacientes antes devem conhecer o seu corpo e as doenças derivadas pela gravidez precoce, abortos e doenças infecto contagiosas.

E com benesses da prestação de serviços à OMA consegui comprar o escritório da ANGOBEFA. Precisamos de medicamentos, de acarinhar os nossos quadros e continuarmos a trabalhar na área do HIV/SIDA, o Coelho só me apoia nesta área, mas a ANGOBEFA precisa de apoio para as outras áreas da sua intervenção.  A ANGOBEFA paga a cota mensal da ALSIDA esta é uma das razões de constar neste mapa de distribuição.

Em Luanda as pessoas vão convivendo com o HIV e outras doenças , mas estes têm mais informação. Mas, a maioria dos  nossos adolescentes  residem nos musseques  como  o Capari, na região de Viana, e estes não têm quem os ajude. A ANGOBEFA ja nao faz trabalho educativo como antigamente, fizemos alguma coisa, mas actualmente sem expressão. Temos duas técnicas voluntárias cedidas pela saúde, mas a nossa organização carece de meios para dar estímulos a estas funcionárias. 

Outra fraqueza é a passagem de testemunhos e a ausência de doadores. Durante muitos anos fizemos um bom trabalho, tivemos apoio do Presidente José Eduardo dos Santos. Noutra época, tivemos apoio dos ministérios sociais. A certa altura, os ministérios das áreas também começaram a fazer trabalhos paralelos, os Ministérios têm na retaguarda organizações de massas, sociais  e as igrejas para cumprir certas tarefas. Há necessidade dos ministérios públicos doarem diretamente às organizações comunitárias.

Algumas iniciativas não necessitam de muito dinheiro, como por exemplo construir um jango, mas há necessidade de estimular as responsáveis pelos Jangos, inicialmente tivemos este apoio, mas com o tempo as cotizações deixaram de ser pagas. 

A prevenção comunitária do paludismo e diarréias também fazem parte dos serviços de saúde prestados pelo posto médico aos jovens.  A sobrevivência  depende das doações  e estas ainda não permitem o desenvolvimento. As médicas e outras funcionárias cedidas pelo MINSA continuam motivadas, mas a minha idade apenas me permite incentivar, cabe aos outros membros darem continuidade a ANGOBEFA. 

Durante a epidemia do COVID este ministério enfrentou carência de pessoal e de medicação, por isso não conseguiu doar medicamentos, mas manteve o salário das duas técnicas.

A cedência de uma ginecologista semanalmente em pequenos núcleos da periferia contribuiria para ajudar a triagem dos casos mais fáceis e detectar casos urgentes  como hemorragias e direcionais as maternidades. A prevenção  chega muito lentamente à comunidade. Em uma hora conseguimos fazer a análise e somente depois as grávidas serão direcionadas aos centros de saúde. 

A ANGOBEFA preserva os contactos com as instituições estatais de acordo a alteração das lideranças para receber novas diretivas e constantemente solicita apoio institucional para abordar a direcção das escolas, institutos e universidades para realização de palestras sobre a prevenção das doenças. 

A maior parte dos líderes são jovens por vezes com menos sensibilidade para estes assuntos e acções de orientação, de informação cuja implementação não requer muitos recursos financeiros, precisamos de apoio na impressão de folhetos para distribuição aos estudantes. Os pais em Angola estão desavindos, as famílias estão a passar por uma fase complexa, a desestruturação do núcleo familiar, por isso urge divulgação da saúde reprodutiva. Por vezes, sentimos-nos marginalizadas e impotentes devido a ausência de recursos. É possível, nós e as instituições congêneres ajudarmos o sector público da educação, divulgarmos a experiência adquirida em outros países e acompanharmos a assimilação destes conhecimentos por parte de estudantes, as brochuras e um lanche tradicional  (banana e ginguba) seria suficiente para fazermos este trabalho junto aos adolescentes estudantes. 

Em Luanda as pessoas têm mais desenvoltura por terem mais acesso a informação, mas nas periferias e nas províncias há muitos jovens que necessitam de trabalho colectivo das associações de saúde e bem estar.

Momentos marcantes 

O momento mais marcante da  minha vida foi  a atitude do meu irmão aquando da morte do meu pai.

A vivência com a minha cunhada em casa, exigente e ríspida, mostrou-me as vicissitudes da vida, como uma esposa se comporta perante o esposo, qual o papel da mulher, da mulher cristão o saber perdoar, manter um lar,  è preciso não arranjar brigas e nem levar tudo a peito, aprendi a conviver em família, fundamentalmente em lares onde existem filhos. Ensinou-me as lides de casa, a lavar  roupa na selha de manhã cedo, com frio, foi bom para mim, mostrou-me o caminho para a vida.Tive uma boa criação. E o que ela me transmitiu também transmiti às minhas irmãs. 

Aprendi a criar os meus filhos com o que temos, não devemos ter muitos filhos. Recebi muito carinho dos meus filhos.

Concelhos a Juventude 

Havia rapazes bonitos, educados mas respeitavam as raparigas e aos nossos pais, os nossos rapazes eram “filhos de famílias”, mesmo os que não fossem “filhos de família” desde que aderissem ao nosso grupo integravam-se facilmente. recordo.me do Amadeu Amorim, do Beto Van-Dúnem… 

Tínhamos as nossas festas na grande casa do Cruzeiro do Sr. Jerónimo Belo e Catarina Belo, os rapazes ficavam responsáveis pelas bebidas e as meninas pela comida, as festas de reveillon e de carnaval duravam até de manhã, mas com muito respeito.

Tínhamos respeito pela nossa família e pelos nossos pais, havia respeito, não se namorava ao lado dos pais, nem havia beijinhos em público. 

Agora, a educação é diferente, os pais parecem dar muita liberdade e haver falta de educação caseira. Quando o pai chegava a casa, uma das filhas tirava o casaco do papá e havia a bacia, em cima de uma cadeira, com água para o pai lavar as mãos.  Antes de passarmos a mesa estávamos todos perfilados e as refeições eram confeccionadas pelas filhas. Criei seis sobrinhas em casa, todas elas estão casadas, mantêm as suas famílias. 

Os jovens devem ter calma  nas relações  com pais e avós , não custa nada ouvirem os conselhos dos mais velhos, a educação faz com que possamos crescer e ter um bom futuro, saber destrinçar o mal do bem, se estivermos bem preparados, reagimos calmamente.

Os jovens estão a consumir muitas bebidas alcoólicas, tenho observado. Estou muito preocupada com a juventude actual, tornou-se áspera, o mínimo conflito exerce a violência, pegam em armas. 

A guerra desestruturou as famílias, o país ficou minado e provocou o êxodo, os camponeses não podiam ir lavrar o campo e confinavam-se nos bairros. 

O nosso país é enorme, as ações não chegam até as comunidades, as estradas ficaram todas estragadas, isto impedia a circulação de pessoas e de mercadorias

Cada área do nosso país tem certas culturas específicas para produção e  para a alimentação.  Os tiroteios e a guerra afugentaram a caça, não podiam atravessar os rios, a população depois da independência ficou confinada. Estas áreas deveriam ter sido apoiadas de imediato para impedir o êxodo para as capitais das províncias, sobretudo para Luanda.

Há dias vi um viaduto de água em Cabinda  que beneficia o Congo  e  outro no sul de Angola, estas iniciativas aliviam as necessidades de água das populações. Tivemos muita seca em Angola, devemos priorizar o restabelecimento das infraestruturas básicas junto às comunidades para reduzir o êxodo rural. Os residentes no campo tem sempre uma árvore de fruto, uma mangueira ou um abacateiro e mamoeiros, há necessidade de provocar o desenvolvimento local.  

Recomendações

Vamos construir, o país já tem universidades, mas não é necessária só a parte acadêmica, é preciso educar, praticar a cidadania, os direitos humanos e a preservação dos bons costumes tradicionais. 

Hoje em dia, os pais estão a abandonar os filhos, os angolanos não faziam isto antigamente. É preciso analisarmos como influenciar os jovens.

Escolhi uma profissão humana, vi a Margarida Van Dúnem a tratar bem as mulheres, as pacientes e aprendi que o ser humano deve ser afectivo, deve ser bondoso. Actualmente, há uma inversão de valores inexplicáveis. 

A OMA é membro da FIDEMO (Federação Democrática das Mulheres), é preciso dinamizar o intercâmbio com as organizações internacionais. 

Tenho pessoas muito próximas que têm filhas muito novas, miúdas de vinte anos que  já têm três filhos. As Nações Unidas apoiam a ANGOBEFA doando preservativos e a nossa organização apoia os jovens ensinando práticas preventivas de doenças sexualmente transmissíveis e métodos contraceptivos visando a melhoria da saúde da mulher e a redução da alta taxa da mortalidade infantil nacional. 

As mulheres parlamentares devem tecer um cordão umbilical, por fazerem parte da  força motriz da nossa sociedade, de forma despartidarizada, há assuntos comuns de mulheres, a minha maior proposta é “ porque é que  as mulheres angolanas não pedimos a cada partido a atribuição de uma verba para trabalharmos com as comunidades?”. 

O estado deve valorizar o papel das organizações comunitárias e evitar intervenções paralelas pelo menos nas comunidades onde já existem intervenções e estas actividades devem ser despartidarização e priorizar as ONG´s e as igrejas por terem mais apoio das comunidades e beneficia da proximidade das comunidades mais pobres, algumas das quais se encontram na miséria,por exemplo é fácil construir um jango para estas instituições trabalharem, mas há necessidade de suporte financeiro, os membros não têm recursos para pagar as quotas, mas estão disponíveis a participar voluntariamente. O entusiasmo permanece no seio da organização, eu já não tenho forças para materializar mas continuo o meu papel de motivador. 

A periferia tem pequenos núcleos que podem ajudar a diminuir o número de utentes do estado, seria benefício termos uma médica semanalmente para detectar  as doenças antecipadamente. As camponesas desistem de tratamentos porque entre as análises e a consulta marcada passa muito tempo e desistem de ir à clínica móvel e aos hospitais. Antigamente, a ANGOBEFA tinha declaração para receber fármacos e reagentes para o nosso laboratório ambulante beneficiar as comunidades. Temos um excelente enfermeiro e técnica de saúde, a Sra. Madalena tem experiência, ambos  cedidos pela MINSA.

Na zona cafeícola do Kwanza Norte a população toma café e chás confeccionados com ervas naturais como a erva capungo pungo, chá de caxinde, barba de milho que cura oxiurus, no mato abundam ervas. 

O clima de Luanda está diferente, influenciado pelo excesso de população, o lixo é um problema preocupante. 

Há necessidade de encontrar uma forma de governação mais inclusiva sobretudo em Luanda visando a apresentação de propostas concretas. 

Este depoimento foi realizado no Parque das Nações, Lisboa em Setembro|Outubro de 2022.

Palavras chaves| Ilha da Juventude em Cuba| ANGOBEFA|Combatentes Angolanas| OMA|ODP|Enfermeiras Angolanas|

Nota| Este depoimento é constituído pela transcrição do áudio realizado após a primeira colecta. Neste caso, é frequente o depoente repetir a descrição de certas memórias, optamos pela publicação integral.