Contexto
A particularidade deste depoimento é pertencer a história de vida da primeira cidadã angolana, negra registada na Ordem de Advogados Portuguesa e provavelmente na diáspora da actual União Europeia. Em 1983, a Ordem de Advogados de Portugal autorizou esta advogada, campeã de basquetebol do Império Português e cantora lírica a exercer a sua profissão.
Partilha memórias da acção estudantil de africanos em Lisboa e expressa a opinião sobre a repercussão do 25 de Abril em Portugal e na diáspora angolana em Portugal, entre os quais o processo de repatriamento de angolanos nos anos 70 e 80.
Eunice Foreid descreve a incontornabilidade do suporte dos antigos estudantes residentes e a necessidade de se legitimar esta tentativa de fazer o histórico do Lar 122. A HSA partilha a opinião deste lugar de memória de angolanos em Portugal, sendo também lugar com mais de setenta anos de memória dos missionários, cuja história social é particularmente notável para os PALOP, sobretudo devido à história do nacionalismo, das independências e das lideranças.
Parte destas fontes referenciadas pela depoente, encontram-se armazenadas em bases de dados e expressam versão institucional das congregações protestantes, dos missionários e seus descendentes. Porém, falta a vertente testemunhada por angolanos para ser possível completar estes factos.
Portugal, servia de entreposto para os missionários que visitavam ou trabalhavam na região de África, hoje denominada SADC, está estudante cresceu no seu meio, tendo a oportunidade de conviver com os estudantes africanos e portugueses da sua época, dando-lhe a autoridade de abordar temas relacionados recorrendo a sua memória.
O depoimento foi conduzido por Judite Luvumba ocorreu a inversão de papéis. Em certos momentos foi uma conversa a três, onde as entrevistadoras foram colocadas na posição do entrevistado, permitindo maior fluência no discurso e proximidade, provavelmente por serem angolanas a falar com angolanas.
Introdução
Vou começar pelo fim, estes últimos anos foram difíceis em termos de perdas familiares, perdi dois irmãos, perdi uma cunhada nos EUA, a irmã do meu marido. Nestes últimos anos, tive a alegria de ver os filhos formados, de ver o nascimento das minhas netas nos EUA. Perdi dois irmãos, o Lolo Kiambata e o meu irmão Alberto António Neto “Betinho”, era o mais novo. Foi Piloto de helicópteros da Força Aérea durante a guerra e esteve sempre ligado à aviação, fez em Portugal uma licenciatura em pilotagem de aeronáutica e desenvolveu um projecto bem estruturado do antigo aeroclube de Luanda. A vida prega-nos partidas e tudo que a gente pensa fazer é sempre “Queira Deus se Deus quiser”, outros virão e pegaram nele, o mais difícil é começar.
Qual o relacionamento com António Agostinho Neto?
A mãe do Agostinho Neto, a avó Maria, era prima do meu avô Luís Antônio que tinha o apelido de Bonito porque era um marinheiro muito bonito e também usava o nome Kiambata. E o meu irmão António Kiambata foi buscar o nome, o meu irmão para além de se chamar Luís António Neto, foi buscar Luís António Neto Kiambata. O meu tio João Luís Cardoso, irmão da minha mãe, casado com a irmã de Agostinho Neto, nacionalista em prisão durante anos a ordem da PIDE, nos anos 60. A familiaridade vem do meu avô, o meu tio João Luís Cardoso casa com uma prima directa a tia Irene Neto, irmã de Agostinho Neto, portanto tenho “os meus primos”.
A ligação com Agostinho Neto não é pelo nome Neto porque o meu pai era António Alberto Neto porque o avô era Alberto António e ele ficou Alberto António Neto (por ser neto de Alberto António). E dá-se a coincidência de na família por parte da minha mãe haver o apelido Neto por parte de Agostinho Neto. Quer dizer é uma coincidência de nomes, mas também é uma coincidência familiar, de sangue.
Cada um é dado o nome referente a alguém. Quem deu o meu nome foi o missionário Dodge, amigo dos meus pais cuja esposa se chamava Eunice Dodge e o Bispo Emílio de Carvalho muito amigo do meu pai quando a filha nasceu também deu o nome a filha.
Infância
Tive uma infância muito boa, sempre gostei muito de ler, gostei muito da vida familiar. Houve um episódio no tempo colonial, no Rangel, em que se dizia “haver um homem que era o Zé Quilengues que cortava a cabeça das pessoas para com o cérebro olear as máquinas de açúcar”. E eu quando ia visitar os meus avós que moravam no Rangel, tinha de atravessar a mata de eucaliptos, ia com a minha mãe e dizia “oh mamãe vamos, vamos, vamos antes de encontrarmos o Zé Quilengues”.
Isso era um mito ou a realidade?
Se houver mais pessoas que digam o que eu estou a dizer, na altura eu como criança, era uma realidade, daí que eu dizia “mamã, vamos, vamos, embora!” Eu tinha seis anos. Portanto, possivelmente mais pessoas poderão confirmar.
Judite partilha que na sua terra chamavam a esses homens por Valopeu que significa os europeus que se encontravam nas matas que nos cortavam as cabeças para olear as máquinas com os cérebros, recorda ter ouvido o facto por volta de 1957.
A discriminação no Liceu D. Guiomar de Lencastre (Luanda 1963-1969)
Vim para Portugal, tinha dezoito anos, mas já tinha estado várias vezes em Portugal. Primeiro aos onze anos, quando vim com as tais licenças graciosas, com os meus pais passar aqui um ano. Depois, voltei para Angola e fiz a minha formação no Liceu Dona Guiomar de Lencastre, agora NZinga MBandi, nome de uma rainha angolana, na altura tinha o nome de uma rainha portuguesa. Fiz a minha formação neste liceu feminino.
Ainda ontem, estive a falar com o meu marido com uma grande especificidade, quer dizerao terminar o sétimo ano, ou mesmo até ao quarto ano, eu era a única negra nas turmas A e B, porque o sistema colonial, e eu acho que era mesmo o sistema não era só burrice das meninas. Era mesmo um sistema que ia eliminando a quem pudesse para que não fossem mais longe nos estudos. O meu pai sempre me dizia a mim e aos meus irmãos, éramos oito irmãos, agora somos cinco, dizia, atenção a frase era essa: “estudem para terem voz na sociedade” e dizia, mas: “se a um aluno branco for pedido cinco para passarem, vocês estudem sete, porque sabem que esta diferença vai passar por parte”. Portugal no tempo colonial tinha uma política (referindo-se a política segregacionista da assimilação) que era precisamente essa que era “de cortar” por isso, o meu pai dizia-nos aquilo. A partir do 4º ano do liceu, eu sempre estive nas turmas A e B que eram as turmas dos melhores alunos, “sempre a mesma preta, sempre a mesma menina negra”, enquanto as outras iam ficando pelo caminho e iam para as turmas F, G, H.
Eu sei que senti uma discriminação porque além de me interessar muito pelos estudos, não podiam “cortar-me as pernas” como se dizia. Devido também ao meio familiar que era de pessoas estudiosas: a minha mãe era enfermeira, o meu pai era chefe de serviço do pessoal da veterinária, pertencíamos aquele tipo de família negra que vivia num bairro branco em que as coisas aconteciam por iniciativa própria.
Fui jogadora de basquete e participei de vários torneios em Portugal, tenho fontes, fotográficas daquele tempo, a Maria Luísa Abrantes, mãe dos filhos de José Eduardo dos Santos também foi jogadora, viajamos juntas para as disputas em Portugal.
Missionários em África
Para poderem ir para Angola os missionários americanos passavam por Portugal, muitos deles foram impedidos e entre eles foram os pais do meu marido que tinham como objectivo irem para Moçambique. Dentro de uma ignorância total do que se passava pelo mundo, Portugal tinha a política de pensar que os missionários iam ajudar e mobilizar quem seja autóctone dessas colónias, ajudando-as a terem um sentimento mais vivo relativamente à questão da libertação.
A percepção que tenho é de que naquela altura havia o conceito de que tudo que era americano estava ligado à CIA. Nos anos 60 havia dificuldade dos missionários chegarem a Angola?
Eu creio que temos de fazer uma separação daquilo que aconteceu em África e daquilo que aconteceu na Europa e temos de perguntar o porquê que naquele tempo a América estava tão interessada em enviar missionários para África? Mas, não podiam ir para África porque o sistema empresarial e comercial era muito incipiente, mas porque os americanos escolheram África para evangelizar?
Os americanos e outros povos, mas sobretudo os americanos, sempre tiveram um certo interesse em evangelizar. Assim como, os portugueses no século XIV, XV e XVI iam pela fé e pelo império evangelizar, nós vamos ver o mesmo sistema ou o mesmo desejo, mas com algumas nuances diferentes. Vamos ver os americanos evangélicos, os chamados missionários irem para África para evangelizar, para dinamizar e para instruir. E creio que em uma certa base houve uma certa inveja dos portugueses no sentido “porquê que nós que somos os donos da terra não podemos sermos nós a evangelizar, a fazer crescer essa gente e temos de aceitar gente que vem de fora, não só para ensinar, mas para também evangelizar?” Esqueceram-se que numa óptica diferente Portugal também foi pela Fé e pelo Império, foi para outros países não para fazer o mesmo que os evangélicos americanos fizeram, mas para conquistar e subjugar a população. Portanto, creio que foi esta dicotomia de: “quem vai fazer o quê e quem vai fazer o quê” que fez com que muitos missionários americanos e possivelmente de outros países tivessem tido o entrave por parte de Portugal para poderem ir para as colónias. Portugal perguntava-se: será só evangelizar ou vão fazer aquilo que nós fizemos no séc. XV e XVI pela Fé e pelo Império? Fomos escravizar as populações africanas.
O sistema de evangelização do protestantismo é diferente do catolicismo português?
Sabe porquê? Vamos pôr de um lado o protestantismo, os missionários e do outro lado vamos pôr os portugueses católicos com a sua doutrina. Entre a doutrina católica e a doutrina evangélica há muitos pontos que não se coadunam. O protestantismo dizia a um autóctone “tu por causa de Deus és igual a mim”, enquanto que o católico português quando ia para as colónias não dizia isto. Era do género: “tu tens que te submeter a mim porque eu vou te ensinar.”
Não havia uma paridade do género e temos um campo abertíssimo sobre o que é o protestantismo e o que que é o catolicismo. É uma filosofia, podemos dizer, têm a ver uma com a outra. Deus é só um, mas o modo como este Deus é apresentado aos povos foi apresentado pelos portugueses de uma maneira e pelos americanos de outra.
E Portugal sendo dono das colónias se confrontou com uma filosofia a dizer que “Deus é o nosso, não é o meu”, enquanto o catolicismo dizia eu até acho mesmo que o catolicismo na altura em que as colônias foram catolicizadas a bíblia não é apresentada, enquanto que os americanos missionários apresentavam e davam a conhecer aos povos a bíblia e “na bíblia está lá escrito…”. Porque até muito recentemente os católicos não conheciam a bíblia. Até muito pouco tempo, os próprios Papas reconheceram que os católicos tinham de perceber, tinham de ter a bíblia, tinham de ler a bíblia, enquanto os evangélicos sempre tiveram acesso a bíblia. É essa a grande separação, o grande hiato entre o catolicismo e o protestantismo, entre os portugueses e os missionários.
Início da luta armada, 1960
Portanto, no dia em que começou a luta armada em 1960, estava na escola primária e houve um grande alarido na escola “Tudo para casa, porque chegaram os terroristas”. Nós não sabíamos o que eram os terroristas, eu estudava na escola nº 7 em Luanda, não havia telemóveis, mas toda Luanda ficou alvoroçada porque os tais terroristas tinham chegado conforme dizia a informação veiculada. O meu pai foi buscar-me à escola e levou-me para casa porque os “terroristas” tinham chegado.
A célula de senhoras, Nambuangongo
A minha mãe era enfermeira, Josefa Luís António Neto. Um dia minha mãe foi presa pela PIDE. Havia um posto de atendimento médico junto da igreja Metodista, na igreja que agora é a igreja de Betel, na Avenida Brasil, com a acusação de que reuniam medicamentos para mandar aos chamados terroristas. Eles não estavam errados porque recentemente na biografia da minha mãe foi escrito que para além dela foram presas outras senhoras, a Leocádia de Almeida, a Dona Rita (outra senhora da igreja). Então, como tinham filhos fora que estavam no campo da revolução, tinham contactos. A minha mãe e essas senhoras que foram presas também tinham a sua célula, pertenciam a uma célula em Nambuangongo, eram por células que as senhoras e os jovens se organizavam.
O desvio do avião português
No seguimento da prisão da minha mãe e das senhoras, um dos meus irmãos o Luís Neto Kiambata[1] e o Nelito Soares (também por isso é que a Vila Alice tem o nome de Nelito Soares) porque o Nelito Soares foi o nacionalista, que juntamente com o meu irmão desviaram um avião para Kinshasa, um avião português da DTA, armados com o que tinham, facas e creio que alguns revólveres. E nesse avião ia um funcionário que trabalhava com o meu pai e o nome conta que disse: “Oh senhor não se preocupe nós queremos é fazer com que o avião da DTA não vá para o sítio onde vai, é uma acção para que as mulheres que estão detidas em Angola, as nossas mães sejam libertadas”[2]. Foi assim que o avião foi desviado, podia ter tido consequências muitos más porque eles estavam determinados a levar a missão ao fim. As senhoras foram libertadas. Outros episódios serão rememorados.
O soldado português aliado dos nacionalistas
Um dos meus irmãos já falecidos, Carlos Alberto Neto, faleceu na Romênia, era aluno de medicina, foi o único dos meus irmãos que fez a tropa portuguesa e por contacto e informações de colegas meus de basquetebol que também estavam com o meu irmão, vim depois a saber que o meu irmão era telegrafista e mandava mensagens para os nacionalistas angolanos porque ele era tropa portuguesa. Um dos meus colegas de basquetebol, já falecido, da família Simmons, o Vittor Simmons disse-me:” eu sabia porque eu fiz a tropa com o teu irmão, porque ele captava as mensagens da tropa portuguesa e transmitia-as para a tropa angolana”.
O Carlos Alberto Neto “Bebé” era gémeo do meu irmão que fez o desvio do avião e naquele tempo, apenas podia ir somente um para a tropa, por haver a missão do desvio do avião, o Carlos se disponibiliza a ir para tropa.
Agressão da PIDE
Fomos bastante agredidos pela PIDE por causa de ligações familiares, por exemplo, Agostinho Neto faz parte da minha família. Tive dois irmãos que tiveram fora de Angola na luta armada e isso tudo levou com que a PIDE chegava a casa e encostava-nos a parede dizendo “ninguém se mexe” e reviraram tudo que havia para revirar, gavetas a procura do que quer que seja. E tinha o meu irmão, o Dr. António Alberto Neto que se tinha ido juntar no exterior a Luta Armada e mandava jornais, o Le Monde, informação de fora que era proibida naquela altura, mandava bolos “recheados” com jornais, mas a PIDE sabia quando a encomenda chegava a casa e mal a encomenda chegava a casa, o PIDE, chamado São José chegava com mais outros e mandava-nos encostar a parede e fazia aquilo que eu disse anteriormente.
O 25 de Abril
Tal como aqui, estando eu já na faculdade, várias vezes a PIDE entrava na faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Eu vi o Durão Barroso, um português a ser espancado a pontapé porque pertencia aos grupos de estudantes MRPP. Havia mais um colega indiano, o Edgar Valles no chão e outros colegas a serem espancados e pontapeados.
Muitas vezes, na faculdade de direito para fugirmos (o meu marido também tem essa memória) tínhamos de fugir para o Hospital Santa Maria para não sermos batidos. Mas, há um episódio que tem de ser contado: enquanto o Durão Barroso estava a ser espancado brutalmente no chão, por policiais, íamos todos a fugir e eu ia também a fugir, o policial olhou para mim e disse-me: “Passa, passa, passa sua preta, passa”, não bateu-me!” Um polícia a espancar o Durão Barroso no chão e a dizer-me “passa, passa sua preta.
Uns portugueses foram enviados como degradados, outros foram com os soldados ficaram ou regressaram para trabalharem em Angola e criaram riqueza para Portugal?
Há um imperador romano que disse a um alto chefe da tropa romana: “Vai a aquele país a beira-mar plantado, chamado Portucale traz-me notícias” e então, esse procurador romano a mando do imperador veio para Portugal e quando voltou o Imperador perguntou-lhe “então, o que é que viste lá?” Aquele é um povo que não governa e nem se deixa governar, mas o pior de tudo é um povo que tem como lema a inveja. Agora, vamos transpor isso para o século XXI, é ou não é verdade?
O Protestantismo e a formação de angolanos
Qual foi o papel das missões em Angola na educação e na formação dos primeiros licenciados angolanos? A maioria dos estudantes a partir dos anos 30 eram filhos de portugueses, brancos e mestiços, o CEI abre em 1961 e pelo livro de registos o Lar já existia em 1958? Já existiam bolseiros missionários a formaram-se em sectores sociais e seminaristas, os missionários tiveram esta visão antecipadamente? Portugal reconheceu a necessidade de educação superior dos futuros retornados? Em 1957, para além do Rev John T. Tucker, Angola esteve representada por três reverendos angolanos entre os quais o Reverendo Emídio de Carvalho participou no Concílio das Igrejas.
Estes visionários já reconheciam que os angolanos teriam de ser evangelizados e instruídos por angolanos? Formavam formadores de formadores, o conceito de sustentabilidade era implementado nos anos 50 em Angola cujo expoente máximo foi a Missão do Dondi com um modelo sofisticado de governança, havia um outro modelo de governação? Pode comentar?
Estes americanos ainda no tempo colonial quando foi permitida a entrada dos missionários em Angola, a preocupação deles não era somente transmitir o evangelho, mas foi formar (como os colonos chamavam) “os indígenas”. Este era o primado do evangelismo “eu vou, eu sei, eu ensino porque quando eu for me embora aquele que eu vou ensinar vai formar outros”. É aquilo que Cristo fez, fez discípulos e podemos nomear várias personalidades que foram formados pelo espírito missionário dos americanos como por exemplo o Bispo Emídio que acabamos de referir. O próprio Agostinho Neto, Daniel Chipenda, Liahuca, todos os grandes líderes do MPLA e também da UNITA. Ali, não havia ainda essas bandeiras, mas todos eles foram discípulos. A semente foi lançada, a semente deu fruto e essas pessoas foram os primeiros a começarem a levar avante em uma perspectiva, e é curioso verificar isto, numa perspectiva religiosa temos a Igreja Metodista e todas as outras igrejas e na perspectiva militar, temos o MPLA, a UNITA, tivemos outros partidos, mas todos eles beberam dessa visão. A maior liderança foi forjada nas missões, não levada pelos portugueses, não pelo catolicismo, mas pelo protestantismo. Isto leva a pensarmos, mas porquê?
Então, aí é que vemos que no fundo, se bem que vários Papas, recentemente tentem fazer com que a Igreja Católica seja uma igreja “evangelística”, que leva a bíblia. Portanto, a igreja protestante já tinha este pensamento, esta visão muito antes dos portugueses.
Qual a influência do Metodismo, Wesleyano no protestantismo em Angola, a maioria das missões em Angola eram de origem metodistas?
Creio que sim, o ramo metodista sempre foi o ramo evangélico com maior presença em Angola. Por exemplo, só muito recentemente e depois do final da guerra quando vários países que fazem fronteira com Angola, vieram como imigrantes, como os zairenses, trouxeram o seu modo de ser, o seu modo de vida, mas também a sua religião.
Os tocoistas antes da independência sempre tiveram a liberdade de culto. Eu não sei bem, por não estar voltada para este tipo de investigação, portanto daquilo que eu me apercebi e do que tenho visto o tocoísmo era uma mistura entre Deus e a natureza, uma religião mais animista, uma religião tradicional, própria de África.
E depois, havia uma certa mistura, a religião sempre indica o modo de ser, o comportamento e então misturando com religiões animistas formou um outro tipo de movimento religioso entre os quais o de maior influência em Angola sem dúvida nenhuma são os tocoistas.
Portando os metodistas e os tocoistas foram os pilares, como se pode dizer, do pensamento religioso e do modo de ser religioso angolano.
Judite Luvumba argumenta: os principais grupos religiosos dividiram-se por Angola conforme Angola foi dividida de acordo aquele mapa cor de rosa: os baptistas chegaram depois dos metodistas, ficaram mais a norte, os baptistas centraram-se na região kikongo, os metodistas ficaram mais no norte centro, enquanto os congregacionistas tinham uma base grande na Zâmbia e na África do Sul, foram eles que influenciaram a actual IECA, ao atingiram a região dos umbundos por ser uma população vasta, vieram a formar a IECA e no fim das guerras eles acabaram por se misturar e alguns serem reconhecidos como o tocoísmo que antes era posto de parte.
É preciso aprofundar o estudo sobre a testemunha de Jeová, precisa de ser estudado é a extensão do Testemunho de Jeová, não sei quais são os fundamentos pelos quais se tornou influente inclusivamente em Portugal, mas apareceram mais tarde.
O metodismo por causa da sua filosofia, tem uma forma de agir absolutamente metódica, é quase empresarial, é um método. Os congregacionistas são mais terra a terra, são mais “ensinar o nativo a fazer agricultura e a caça”. É algo espelhado (não vejo outro termo). Quando desaparece o missionário surge a questão: quem vai mandar? Enquanto, o metodismo tem uma estrutura hierárquica que ninguém consegue “furar”, tem uma estrutura, mas um metódico tem as suas limitações. Mas acho que os três grupos na questão de formar as lideranças nacionais, todos trabalharam muito.
O dia da independência
No dia da independência eu estava em Angola, na Vila Alice em casa da minha família, eu vi soldados a entrarem no meu jardim com kalashnikovs a dizerem “não se preocupem, nós estamos aqui no jardim (que dá para a rua principal). Porque os cubanos estão a tentar travar a entrada dos sul africanos com a UNITA em Luanda” e ouvia-se o ribombar das armas, eu estava em minha casa, a porta vi os soldados em posição de guerra, porque vinha uma grande multidão de tropa sul africanas, a invadir Luanda, a tomar Luanda e os cubanos a morrerem, a defenderem Luanda da entrada de sul africanos e de angolanos que na altura também queriam a sua parte da independência.
E ouvir Agostinho Neto a fazer um apelo na rádio “hoje, eu declaro a independência de Angola”. E a independência estava suspensa ou sujeita ao apoio dos países. O país quando se forma, como se formou Angola, o presidente tinha de pedir o apoio internacional para que fosse considerado um novo estado.
Portugal foi o quarto país a reconhecer a independência de Angola, daí que é compreensível que desde aquela altura até ao final do mandato de Mário Soares as relações entre Portugal e Angola nunca foram boas, porque Mário Soares em Portugal ainda dizia que estava a espera da UNITA, eu nem sabia que era UNITA. A UNITA, era um partido, segundo a óptica de Mário Soares, e todos temos o direito de ter a nossa opinião, era o partido que deveria governar Angola. E Agostinho Neto na rádio a clamar a todo o mundo que aceitassem e que dessem o seu “sim” a independência de Angola e Portugal foi o quarto país. Para uma colónia portuguesa foi vergonhoso Portugal ser o quarto país a aceitar a independência.
Os retornados
Chegando a Portugal os retornados não foram aceites. Com a independência os portugueses fugiram, abandonaram Angola. Rosa Coutinho meteu-se dentro de um navio, naquela altura quem quisesse entrar nos navios podia entrar e daí começa a crise dos retornados aqui em Portugal. Os coitados dos portugueses com as roupas que tinham no corpo foram metidos em embarcações para virem para Portugal “eu estava lá”.
Os portugueses residentes em Angola eram os produtores da riqueza de Portugal, também sofreram consequências?
Que não foram aceites porque disseram-lhes: vocês estavam lá “nas Angola`s” a maltratar os pretos e agora vem cá? É aquela velha política da substituição que estamos a ouvir agora em relação aos imigrantes. Essa mentalidade, esse modo de não aceitação foi também dado aos retornados. Os retornados estiveram sempre um label sem legado, “vocês estiveram lá no bem bom a maltratar os pretos e agora vieram com o rabo entre as pernas”, quer dizer, isto de um ponto de vista sociológico tem muito material para ser trabalhado. Porque as pessoas vieram embora sem nada? O que é que aconteceu? O que houve quando lá foram? Mas, Portugal não recebeu os retornados como certas faixas da população portuguesa não está a receber os imigrantes. Por motivos diferentes, mas o mesmo ódio, o mesmo “não”, os próprios portugueses tiveram quando foi das independências e agora uma faixa dos portugueses está contra os imigrantes.
Licenciatura e exercício da advocacia em Portugal (1975- 2003)
Foi sempre um tempo de muito trabalho, licenciei-me em 1983 legalmente, porque foi travada uma grande batalha para que os advogados angolanos em Portugal pudessem ser inscritos na Ordem dos Advogados. Licenciei-me muito mais cedo em 1975 e até 1983 foi uma luta com o governo português porque não me queriam inscrever como advogada. Portanto, eu sou a primeira advogada negra, angolana inscrita em Portugal e abri o caminho a todo e qualquer advogado dos PALOP`S a serem inscritos como advogados, exercer a profissão como advogado, aqui em Portugal, foram anos de luta, mas que felizmente fico muito contente e ganhei. Nenhum advogado formado, com nacionalidade angolana ou de outra nacionalidade pode ser rejeitado em Portugal para exercer a profissão.
Como a primeira advogada angolana, negra “negritude, não vou pelas teses de Sengor”. Mas, é só para ver em que sociedade é que nós agora estamos a viver, em que a negritude e a imigração são factores e são pilares que voltaram de novo a ser falados e contestados.
Vou a Luanda frequentemente. Angola solicita certos procedimentos, a minha filha a quem eu dei estágios irá dar-me estágios online para eu poder advogar em Angola, a minha carteira de Portugal permite advogar na União Europeia. Em Angola é preciso um estágio para poder advogar.
Judite partilha não ter conseguido entrar na Ordem dos Médicos “hoje em dia é um processo simples, já foi mais complicado, queriam que eu fizesse um estágio. Em 2012, o meu filho Pedro tinha um projecto para Angola cuja operacionalização exigia o meu registo na Ordem de Médicos”.
Canto lírico
Além de ser advogada faço canto lírico e um dos trabalhos feitos recentemente é sobre a influência de África, desde o barroco até ao contemporâneo e inclui o fado porque muita gente não tem a noção que aquele elemento nostálgico do fado que se diz ser português, mas a tristeza e a nostalgia que o fado transmite tem muito a ver com a africanidade nos últimos séculos.
Faço canto lírico e há um trabalho” Nha África”, como já referi, que vou desde o barroco lírico ao Zeca Afonso, nascido em Moçambique, em que uma das faixas é o fado, porque o fado é africano, o fado é nosso. Traduzi a música Summer time em kimbundo e uma das músicas principais de uma ópera limitada a ser encenada ou cantada por artistas negros e por isso a canto, é uma edição da minha autora.
No final da primeira parte a nosso pedido entoou o hino Sivaya.
O Lar 122, 1969-1975
Eu cheguei a Portugal, na altura a maioridade era aos 21 anos e foi o meu pai que me trouxe para Lisboa. Ficamos em casa de um casal amigos dos meus pais em Algés enquanto esperava a vaga no Lar 122.
A gerente era a Dona Maria Alice Evangelista, na secretaria estava o Sr. Silva, responsável pela gestão da parte administrativa do Lar, havia um outro senhor que ajudava o Sr. Silva, mas o Sr. Silva era o que dava todo o atendimento aos estudantes.
Eu cheguei para iniciar o ano lectivo de 1969, tinha 19 anos. Antes disso, joguei basquete, fiz alta competição em Angola, fui campeã nacional de basquete em Angola e vim fazer campeonatos. Em relação ao lar, cheguei com o meu pai quando o meu lugar já estava organizado fui para o lar. O lar era bem organizado.
No primeiro dia, ao almoço ou ao jantar os alunos eram apresentados. E quem entrou pela porta, era o meu marido e eu disse “ei! mas, que rapaz tão giro!” (risos) e a quem fui eu dizer isso, aquela moça com quem ele “andava” lá no lar, a rapariga nunca mais me falou (risos), ou melhor sempre me detestou, mas era normal, éramos todos jovens. Fiquei no Lar até chegar a minha irmã Severina.
A Maria Alice depois trouxe os pais para viverem no lar porque já tinham uma certa idade.
Eu saí do lar quando fui viver com a minha irmã que no entretanto tinha-se casado e tinha uma casa em Santo António dos Cavaleiros, de maneira que fui viver com ela e mais tarde foi a primeira casa que eu e o meu marido tivemos depois de casarmos.
Estrutura do Lar
Em relação ao lar, era uma estrutura familiar, acolhia jovens daquilo a que se chama agora CPLP e acolhia missionários sobretudo suíços (na minha época) e alemães, era um ambiente muito familiar. Acima da Maria Alice Evangelista havia um casal Missionário, o Glenn Childs, ele tem muita obra publicada e a esposa Margarida Childs não era muito simpática porque (vendo agora) tinha um certo aparte em relação aos estudantes africanos.
Lembro-me que ela não cortava o cabelo, tinha o cabelo até as costas e quando lavava a cabeça ia para o quintal para secar o cabelo ao sol. Nunca tive grande ligação com ela e muito mais quando soube que eu namorava com um americano branco, quer dizer se já não fazia parte dos alunos com quem ela se dava antes, depois a relação piorou.
Ao ver algumas fotografias fotocopiadas dos álbuns do Lar, encontrou a sua fotografia de casamento com os seus pais e os do esposo, identificou o brasileiro Claudino e sua irmã “Nunca vi uma jovem com uma pele como aquela, parecia pele de pêssego”, a Claudine e o Jean Pierre.
O Lar era um palacete, casa moderna, vivíamos quase no campo.
Casamentos entre estudantes e o dilema de casamentos inter-raciais
Casada com um americano, geneticamente de origem norueguesa, com DNA 100% norueguesa. Os pais foram para os EUA e pediram a nacionalidade americana, sabemos e temos prova do que os EUA pediam aos estrangeiros para terem a nacionalidade americana.
Depois, os pais do Johnny tiraram-no do lar, compraram-lhe um carro para ele vir de Cascais até a faculdade de medicina, só para não estar no lar quando eu estava. Mas, mal eles sabiam que aquele carro deu muito jeito (risos), porque um carro dá sempre jeito para passear, ao fim ao cabo deram-lhe a ferramenta (como se diz). Tiraram o Johnny do lar e puseram-lhe em casa de um afilhado, chamámos-lhe João Marinheiro (marinheiro porque esteve na marinha), foi deputado do PSD. Mas, isso sempre naquela tentativa de afastar o filho da negra.
Infelizmente, dos familiares do Johnny a única pessoa que eu guardo muitas boas recordações, a chama do racismo continua a ser muito vibrante, é da irmã da Jonnhy que infelizmente faleceu há dois anos, em Outubro salvo o erro, porque o restante da família infelizmente até hoje sempre me rejeitou a mim e aos meus filhos, mesmo sendo evangélicos. Mas, é como eu digo quando acontecem situações dessas, mesmo até agora os meus filhos não têm contactos com os primos portugueses, por causa de… (pensativa).
Eu não fiz mal a ninguém, o meu mal é ter nascido negra, o meu mal segundo esse tipo de pensamento. A pessoa não é aceite por ser o que é, por nascer como nasceu. E nesse caso, sou letrada, em termos morais não me pode ser apontado nada, sei ler e escrever mais do que eles e tenho um curso superior. Mas, mesmo assim os meus filhos pagaram e continuam a pagar, porque há essa cisão. É aquela história “se ouvirem uma história igual a esta, não digam que não é verdade, porque é verdade”, de maneira que como dizia o Raul Solnado, é a minha vida (risos).
É pertinente estar a discernir sobre os povos. Por exemplo, eu tenho um sobrinho angolano com família vietnamita, a minha filha é casada com um brasileiro e tenho netos americanos.
Os residentes do Lar eram oriundos de várias missões, o protestantismo estava concentrado no sul de Angola. Em termos de educação e de filosofia de vida havia diferenças de acordo com a missão de origem?
O Desidério Costa não é do meu tempo, no nosso tempo havia o Libindo, casado com uma suíça. A maioria das estudantes eram do sul. Em Angola também havia uma política em parte segregacionista, porque diziam que os luandinos eram muito “nariz empinado”, mas, era uma política criada por Portugal, é como aqui também, diz-se que os do sul, os alentejanos “pedem licença a uma perna para levantarem, a outra para conseguirem andar”, as anedotas mais esquisitas, é tudo sobre alentejanos.
Mas, em termos regionais em relação ao que agora se chama CPLP, não havia estudantes da Guiné, de Moçambique havia três estudantes: Machatine, Salomão (falecido) que tocava imensamente bem piano e o Chivogori, de Angola era o Libindo, eu e o Benjamin.
De Moçambique havia também a Graça Simbine. Foi nossa contemporânea até ter ido embora, quando se diz “ir-se embora” quer dizer até ter se juntado aos nacionalistas e uma outra grande amiga de Moçambique. Havia muitos moçambicanos, poucos angolanos e os outros eram pessoas que vinham da Suíça. A Graça Simbine foi a nossa contemporânea durante muitos anos, gostava muito de usar nívea nas mãos. Vivia no quarto com a moçambicana Lina Magaia (falecida), depois da independência de Moçambique trabalhava numa prisão de mulheres. Virgílio Massingue , casado com uma irmã minha reside em Angola, Virgílio Massingue é nome artístico de um profissional de Batik, também pertencia ao grupo de Moçambique do qual fazia parte a Graça Machel.
Qual era o nosso dia a dia? Praticamente, não só por serem muito mais velhos, havia uma certa concentração, não eram bem “células”. Apenas mais tarde, vimo-nos aperceber que alguns faziam parte de certo grupo, assim como os meus irmãos nunca ninguém em casa soube que faziam parte de um certo grupo que depois rumou como se dizia para “a mata”.
Judite Luvumba pergunta, integrados na Fuga dos 100?
Eles foram sozinhos, o meu irmão António foi o primeiro representante do MPLA na Suécia. Pelo menos, os da minha família não fizeram parte do Grupo dos 100 (que eu saiba). Em relação ao meu irmão mais velho, o Ninho, ele aproveitou uma vinda a Lisboa, o Lolo Kiambata depois de ter feito o desvio do avião nunca mais voltou, ficou na Zâmbia. O meu irmão Ninho aproveitou uma vinda, a primeira em 1960 (ou 1961) quando viemos de licença graciosa que já referi em que eu vim também e ele já não voltou connosco, partiu de Portugal e foi para a França, não regressou connosco.
Devemos incluir a história social dos nacionalistas. A política partidária é importante na consideração da generalidade social, antes e depois da independência?
Mesmo a política da qual nós nos desviamos é a política partidária. Para nós não é muito importante na generalidade do que aconteceu antes e depois da independência. Eu por exemplo militei antes da independência, com orientação de Uanhenga Xitu[3], no Rangel
Mas, é isso mesmo, houve uma altura em que não havia bandeiras, era um ramo único. Os missionários organizaram os nossos encontros, entre os estudantes do Dondi e os do Quéssua onde conheço a Deolinda Rodrigues, os missionários diziam-nos “Angola vai mudar, a vossa terra vai ser alterada…” (comentário da entrevistadora).
Uma coisa é certa, o Lar sempre recebeu bastantes estrangeiros. Não eram estudantes, ou vinham aprender a língua, a maioria eram suíços e franceses, não me lembro muito bem.
Havia residentes permanentes, de passagem e de grandes temporadas de famílias missionárias, como era o relacionamento entre os estudantes e os missionários? Havia uma biblioteca, como a existente atualmente? Influenciaram directa ou indiretamente o nacionalismo?
Por exemplo, eu era miúda, o pai de Samuel Abrigada era professor da minha escola em Angola, mas no tempo deles eu não estava cá, sou do tempo da Lina Magaia, Graça Simbine, Maria Alice Evangelista, Libindo e Machatine.
Leu livros desta biblioteca?
Durante o tempo que estive no lar não me lembro de uma biblioteca que fosse dado acesso a essa literatura, não é que negassem, se é como está a dizer, mas era como se não existisse[4].
John Foreid intervém: havia livros muito grandes, geralmente de medicina e geralmente os estudantes não transportam os livros por serem muito pesados.
Tem notícias sobre o Lar?
“O 122” como a gente chama depois foi destruído e foi construído um prédio e não sei do que foi feito do que estava lá dentro? Porque eu fecho os olhos e sei o que era o Lar 122, onde havia coisas que ninguém queria, eu até trouxe uma coisa que lá estava e ninguém queria, “uma bengala”.
Eu fechando os olhos: do lado direito e do lado esquerdo havia duas garagens com muita velharia e depois subia-se uma escadinha e no meio havia a porta principal. Por trás havia uma vivenda, na parte de trás era o sítio onde a tal senhora lavava o cabelo e secava ao sol e do lado direito havia um recanto com umas escadinhas, como se fosse uma pérgola onde havia uns bancos de pedra.
E de repente soubemos que aquilo tudo foi destruído, foi construído um prédio e pergunto quem ficou com o património que lá estava? Pergunto, há tanta vivenda naquela rua, estava tudo em boas condições (aparentemente), porque deitaram abaixo a vivenda? Parecia estar em boas condições. Nunca ninguém nos explicou.
Fotografias e o livro de registo
A entrevistada exibiu os depoimentos de actuais funcionários do Lar 122, nomeadamente de David Valente e de Maria do Céu e explicou como encontrou o novo edifício com base nas coordenadas da Judite Luvumba e da Ernestina Venâncio, chamando atenção para o trecho da introdução do depoimento do David Valente. Confirmamos a preservação de parte do mobiliário antigo, entre os quais: a cómoda do quarto de Graça Simbine Machel, livros, quadros, o piano, etc. e informarmos ser esta a memória material disponibilizada para historiografar este lugar de memória de angolanos sediado em Portugal.
Estivemos na antiga residência pela última vez por ocasião da visita de Graça Simbine Machel e conservamos as fotografias originais do nosso casamento, tiradas na pérgola do jardim da residência original. Johnny Foreid recorda tomarem o café nos bancos de pedra. O casal identifica a fotografia do casamento, os pais de Johnny Foreid e de Eunice Foreid.
Identifico colegas mencionados anteriormente e outros e recorda-se “a Eliseth está a tomar conta dos pais e reside numa quinta e a Virita Cristina faleceu em Faro em um incêndio de gás”. Identificam também a Maria Leonor, a Gida Eunice Gomes[5].
Esta é a assinatura do Reverendo Gaspar de Almeida, pai do nosso amigo e pai da pastora da igreja central na baixa de Luanda. Era muito amigo dos meus pais e deu o nome a filha pela amizade com os meus pais. E quem deu-me a mim o nome foi um Missionário de nome Dodge Davis casado com a Eunice Elvira Davis[6], também amigos dos pais do Johnny.
O Dr. Johnny identifica uma fotografia tirada no quintal e nostalgicamente diz: “gosto de caminhar e por vezes passa pela Alameda das Linhas das Torres. A casa era quase um palacete, há casas semelhantes na rua, mas aquela era a maior, por trás do lar não havia quase nenhuma, nós já vivíamos praticamente no campo, havia ervas”.
Eunice Foreid tem a sua passagem marcada intemporalmente no livro de registos, página 62 e “a assinatura tem o mesmo traço”, escreveu uma singela homenagem:
Recordar é fácil
para quem tem memória
esquecer é difícil
para quem tem coração!
Eunice Elvina Alberto dos Santos Neto (Nicha), 29/7/71
105 – Rua João de Deus- Vila Alice
Luanda- Angola
África W
Nesta página identifica-se ainda o colega Claudino do Brasil e a irmã foi ou veio visitá-lo, tinha uma pele muito bonita.
Como as pessoas passam pelo local pensam já não haver no local nada relacionado a este lugar de memória. Johnny refere “havia pessoas que passavam por lá, havia muitos contactos. Aquele lar mobilizou cerca de uma centena de estudantes até à nossa época”.
Os missionários já estão descritos, falta a historiografia dos estudantes. É do género as pessoas por vezes não conhecem bem os outros “quem está habituada a ver os pretos: “sim, sim patrão”, quando aparece alguém diferente, há reações contrárias.
Portugal é membro das Nações Unidas desde 1955, a declaração dos direitos humanos data de 1961, com a criação da UNESCO a educação torna-se um direito dos povos e as missões protestantes já estavam na vanguarda da educação em Angola. Portugal não consta nestes relatórios e ainda não era membro destas instituições.
É muito importante ver que o Plano Marshall sendo um plano de recuperação económico do mundo existente naquela altura depois das duas guerras mundiais, traz consigo, não só as soluções económicas, mas transforma totalmente o pensamento europeu e o americano, porque era um plano econômico que tentava fazer com que a nação se erguesse. Portugal não sofreu o que os outros países sofreram, porque Salazar era um ditador que na boa tradição portuguesa disse: deixai-os fazer, a gente fica aqui”, muita gente diz que Portugal não sofreu porque Salazar foi o baluarte, foi aquele que impediu que Portugal entrasse na guerra, todavia muitos portugueses foram mobilizados e morreram. Perguntamos: “foi covardia, foi o deixa estar, o deixa andar ou foi a opção de não querer um conflito internacional?”
E agora, devido a guerra na Ucrânia e a guerra que se está a passar em Israel, numa perspectiva de escalada de conflito que poderá atingir todo o mundo, vamos começar a ver países que tendo responsabilidade dirão “eu não quero entrar, eu por aí não vou”. por isso, agora é que a posição de Salazar nas I e II Guerra Mundial, especialmente na última, a posição de proteger como se fosse “uma galinha proteger os seus ovos e os seus ovos era Portugal, em que não quis que Portugal participasse.
Quando é iniciado o Plano Marshall são os EUA que desenvolvem o Plano Marshall, não é só na ajuda económica de reconstrução dos países, isso leva-me a perguntar agora quem é que vai reconstruir a Ucrânia? E mais, na guerra civil angolana, 40 anos, qual é a entidade exterior que foi reconstruir Angola? Ninguém, ou melhor, em relação às minas, por exemplo (estamos a falar das consequências da guerra), vimos a Princesa Diana, a princesa do Povo esteve lá.
A minha irmã da Associação Kimbo neste momento está a recrutar meninos para irem mudar as próteses, ainda as próteses, porque pisaram em minas, embora grande parte do país esteja desminado. Mas, não há nenhum plano internacional como houve um Plano Marshall, Angola não beneficiou (creio) de nenhum plano idêntico ao Marshall. Foi deixado que irmãos se digladiassem durante 40 anos e agora os meninos estão a pisar as minas, estão a ser apoiados pelos alemães através da associação Kimbo de Angola, para irem mudar as próteses, porque um menino de três anos não pode usar a mesma prótese aos sete anos.
De maneira que nesse aspecto, é um país que ajuda e neste caso concreto das crianças toca-me bastante por ser somente um país para ajudar. Não houve um plano Marshall igual concreto para reconstruir um país que durante 40 anos houve confrontos entre irmãos com armas que nós não fabricamos. Por isso, é que tudo que está a ser feito em Angola é pelos angolanos, os angolanos devem ter a consciência, devem ter a capacidade de dizer que somos nós que estamos a reconstruir o país com as nossas debilidades, com as nossas fragilidades, com os nossos ódios fraternos que existem.
O apoio pode vir daqui há um tempo ou já estará a vir a partir do momento que o Biden vai a Angola e está interessado no Corredor do Lobito? Isto já significa, não é um Plano Marshall, mas são situações concretas muito específicas em que os de fora dizem “agora é necessário apoiar Angola”.
E porquê Angola, poderia ser Moçambique, porquê? Para o norte já ninguém pode ir, a Turquia já não o deixa.
Estamos a fugir do nosso tema, mas como falamos do Plano Marshall, naquela altura não houve um plano com o posicionamento colectivo sobre Angola para fazer face às consequências da guerra.
A depoente questionou estarmos a fugir do tema do depoimento, mas achamos que não estarmos a sair do tema pela necessidade de ser transportado do passado para o presente. Asseguramos-lhe que enquanto advogada a sua percepção de justiça para além de ser angolana, tem um outro olhar ao tema. No século XX Angola teve o período mais longo de guerra após a II Guerra Mundial.
Aspectos da reparação de Portugal a Angola, Abril 2024
Durante a comemoração dos 50 anos do 25 de Abril a depoente expressa algumas das suas preocupações, para além de já ter se referido a problemática dos retornados e dos emigrantes, como os arquivos das redes de infraestruturas coloniais.
Como eu tenho familiares americanos e amigos com quem mantivemos contactos tenho consciência de uma das grandes angústias de muitos negros americanos é quererem saber da aonde vieram. É necessário ajudá-los a saberem de onde vieram, é algo muito interessante porque vai dar também responsabilidade aos países.
Quando se fala do racismo “sim nós viemos do outro lado, nascemos cá, construímos o que está cá, mas também somos de lá”. Qual foi a repercussão que o 25 de Abril teve em Angola?
Portugal tem planos de infraestrutura urbanística de Luanda que foram levados pelos colonizadores: mapas de redimensionamento das águas e de outros planos da infraestrutura urbanística de Luanda e dizem respeito aos pontos onde era necessário intervir, por exemplo se houvessem cheias, para não haver inundações, isto a nível de infraestruturas, como é que se vai manter para que não houvesse inundações? Portugal trouxe, este projecto arquitectónico e não serve ao povo português, inundações que podiam ser evitadas se Angola tivesse em posse dos projectos de infraestrutura de zonas sensíveis especialmente de Luanda. As nossas populações não conseguem ir trabalhar devido às inundações causando mortes, porque estes projectos todos foram trazidos para Lisboa e estão a prejudicar os angolanos. Há cerca de dois meses em Luanda presenciei uma grande chuva cujas consequências podiam ser evitadas, as pessoas não podiam ir trabalhar porque não podem passar de um passeio para outro porque a água arrasta mobiliário, outros bens e até pessoas. Portugal trouxe planos de redes de infraestruturas de saneamento, água e electricidade. Portugal tem de ajudar Angola devolvendo-os para evitar mais mortes. Porquê que um país colonial aceita a independência conquistada leva os dados das infraestruturas? É do género, “isto é, nosso, nós é que fizemos” e quando acontecem as mortes devido a subida do nível de água, de quem é a culpa disso? Portugal tem de devolver esta documentação para evitar mais mortes.
Isto parte do princípio, que é o primeiro “Portugal fugiu de Angola”, não conversou com ninguém. Quando foi da saída dos portugueses, por isso é que quando os retornados chegaram cá foram mal recebidos, porque não houve um protocolo idêntico ao da Guiné, mas em Angola foi pior.
Indemnizações laborais
O direito internacional público dita as regras de indemnização da prestação serviços, como é o caso de angolanos que prestaram serviço ao governo português. E também as representações diplomáticas angolanas em Portugal devem ser integradas no dossier de reparações. Pois, esta não se deve centrar unicamente na escravatura, mas em todas as dimensões do colonialismo e no período logo a seguir a independência de Angola, durante o qual muitos portugueses permaneceram em Angola e angolanos em Portugal, e foram lesados pela falta de cumprimento das legislações de ambos países.
Marca da escravatura e colonização
A minha avó materna Adelaide Vicente tinha a marca da cunha a ferro, abaixo do peito, uma inscrição feita a ferro quente, de uns caracteres que ou a tinta ou de outra maneira era a identificação de escrava. Não foi mandada para fora, mas teve uma filha mestiça.
Meu tio João Luís Cardoso irmão de minha mãe casado com uma prima, Irene Neto, esteve preso anos pela PIDE em Luanda e morreu logo após ser libertado, por estar doente por volta de 1966.
A repatriação de angolanos, 1975-1985
Sempre achei interessante saber sobre os vindos de Angola, não apenas sobre os angolanos, mas também sobre os retornados. Aquando da abertura da Embaixada de Angola em Portugal, durante dez anos trabalhei na Embaixada de Angola nos serviços de repatriamento dos chamados refugiados, criava protocolos para o repatriamento de refugiados angolanos e prestava serviço jurídico no que fosse necessário à população angolana.
Em certos ciclos familiares quando vou a Luanda dizem-me “vives no bem bom”, esta é a percepção deles; no entanto, essas pessoas que dizem isso estão frequentemente em Portugal a fazer compras, mas quando há um problema, uma conversa, atiram-nos a cara isto. O pão, a saúde e a educação são elementos que nestes anos todos fizeram as pessoas migrarem, o pão é o trabalho, a saúde são os recursos médicos e a educação é o ensino. Foi o meu caso, acabei o sétimo ano, queria estudar direito e no meu país não existia, tive de vir para um sítio qualquer e foi o Lar 122, ou esperava até que houvesse uma faculdade de direito em Angola. Eu tinha dezoito anos, trata-se do factor educação, tinha de procurar o sítio, onde é que era mais fácil? Era em Portugal. Não foi por causa da guerra porque havia paz, não foi por causa do pão porque os meus pais tinham dinheiro para me sustentar em Angola e aqui em Portugal como o fizeram, em termos de saúde era saudável, fui atleta de alta competição, era uma questão de educação.
São também estes os quatro vectores que levaram que houvesse em Portugal o 25 de Abril, que transformaram uma sociedade e também transformaram as pessoas do ponto de vista individual, podemos falar em cinco: Paz, pão, saúde, ensinoe razões pessoais vectores que fazem com que qualquer pessoa saia do seu país e emigre.
Trabalhei dez anos e conheço de baixo ao topo o tipo de know how necessário. Na época, as pessoas já não suportavam estar cá e queriam voltar para Angola, era tudo pago pelas Nações Unidas e o mais importante era o bilhete de passagem. Eu contactava o MIREX no sentido de os acolher, para darem apoio ao reinício da vida em Angola, insistia, Angola precisava de reintegrá-los. Também, percebo que foi durante a guerra civil e não havia muita possibilidade de enquadramento, mas muitas pessoas saíram de Portugal por vontade própria e com ou sem apoio das Nações Unidas.
Ainda tenho angolanos que me telefonam e recordam-me os seus nomes, agora tem outros tipos de problemas. O Ministério do Trabalho deveria acolher estes recursos humanos. Entre os repatriados havia recursos humanos valiosos e possivelmente alguns regressaram à Europa. Nada está perdido, há sempre possibilidade de se trabalhar, mas não nos podemos esquecer da experiência passada.
A comunidade angolana em Portugal
Pagamos para viver em Portugal e devia haver convites da Embaixada de Angola aos angolanos residentes de forma aberta, por via de links de eventos importantes, há angolanos a residir e pagam para viver em Portugal, mereciam outro tratamento por parte do corpo diplomático angolano, são serviços diplomáticos de direito da comunidade, não fazem por má fé, é porque desconhecem.
No nosso caso, alguns são nomeados diplomatas, mas não sabem o bem de direito e muito que lhes compete a favor da comunidade nos países onde foram nomeados. Como por exemplo, as obrigações tributárias junto à Segurança Social em Portugal aos trabalhadores locais.
A Embaixada de Angola poderia trabalhar na repercussão do 25 de Abril na diáspora neste país. Os órgãos portugueses nem são falaciosos, iriam aceitar dentro de uma programação do 25 de Abril trabalhar em colaboração com a Embaixada. Não sabemos quem nos representa, os angolanos iriam gostar de ter uma análise desta repercussão, foi um tema que sempre chamei atenção, continuamos a ver o silêncio da CPLP.
Quanto às associações não aparecem, não são visíveis para a sociedade e como é ser visível para a sociedade? É ter acesso e os canais televisivos e de rádio “ouvissem a voz”. O ponto fulcral é porque Portugal não conhece mais de África? As associações que colaboram com o antigo SEF não se dão a conhecer suficientemente, não nos dão informações suficientes, eles próprios sabem que qualquer cidadão angolano se houver um anúncio na televisão estará interessado, sobre os temas residência e nacionalidade.
As pessoas se sentem abafadas, somente contratando um advogado conseguem adiantar os processos, essas associações deveriam ajudar os estudantes a regularizaram-se, recebem dinheiro de países e instituições.
Este depoimento foi realizado em Loures, no dia 03 de Março de 2024.
Palavras Chaves: Desvio de Avião da DTA| Células de Senhoras em Nambuangongo| Primeira Advogada Negra em Portugal| Dia da Independência de Angola| dia do Início da Luta Armada em Luanda| Protestantismo em Angola| Missionarismo Americano| Nelito Soares| Luis Neto Kiambata| Alberto António Neto| Retornados| 25 de Abril| Durão Barroso| Agostinho Neto |Graça Machel| Virgilio|Lar da Liga Evangélica de Lisboa (Lar 122, Lar Alameda da Linha das Torres)| Associação Kimbo|Retornados| Cantora Lírica|Dodge Davis|
Entrevistadores: Marinela Cerqueira e Judite Luvumba
Audiovisual (IPhone): Marinela Cerqueira
Transcrição: Marinela Cerqueira
Edição: Marinela Cerqueira e Sónia C.
Duração: 2h50m
[1] Rui Filipe Ramos, O DESVIO DO AVIÃO DC-3 DE LUANDA PARA O CONGO-BRAZZAVILLE (…) Recordo que, num certo dia, à hora de almoço, o meu pai, Clementino Gonçalves Martins Ramos, desabafou: um funcionário pediu-me para visitar a família em Sazaire e para lhe passar uma guia de marcha. Não era muito habitual, naqueles tempos, uma pessoa negra solicitar uma guia de marcha para viajar de avião. Mas o meu pai assinou. E lá embarcam no avião da DTA com destino a Sazaire os nossos três jovens militantes: Luís António Neto “Loló Kiambata”, Nelito Soares e Diogo de Jesus. A PIDE procurou saber quem tinha passado “uma guia de marcha a um terrorista” e recordo que o meu pai foi incomodado e interrogado pela Polícia Política portuguesa e teve muita sorte de não ser preso, nem perder o emprego. Nunca mais esqueço o semblante preocupado do meu pai, de quem recebi sempre apoio total na minha luta pela Independência Nacional e nas prisões para que fui atirado. Soubemos do desvio do avião para território do Congo-Brazzaville e da chegada dos nossos camaradas, quando Loló Kiambata transmitiu, aos microfones da Rádio Brazzaville, no programa Voz de Angola Combatente, a mensagem: “Atenção Luanda, atenção Luanda, pombas brancas podem significar guerra!” A operação, na verdade, foi preparada com minúcia e a obtenção das armas foi a parte mais difícil. Não era fácil conseguir-se uma arma e ainda por cima a estrutura clandestina pretendia duas, pelo menos. As ligações para o efeito estenderam-se da Ilha ao Cazenga, mas sem informação correcta do objectivo, pois isso podia fazer fracassar a operação e atirar para a cadeia um número incalculável de pessoas.
[2] Judite afirma ter sido lhe sido contato pessoalmente por Luís Neto Kiambata a última vez em que estiveram juntos.
[3] Pseudônimo do escritor José Mendes de Carvalho
[4] Johnny Fareid afirma ter encontrado livros de medicina, que existia um escritório na entrada do lar e havia uma estante com alguns livros grandes de medicina, havia livros de pessoas que deixavam lá ficar, mas os estudantes não os liam. geralmente, eram livros técnicos, em francês, livros muito grandes e os estudantes que saiam não os podiam transportar.
[5] Localizar assinaturas colectivas desta época e inserir
[6] Seminário Angolense, nº 95-2 Out 1976, pag 12-13, Dr Raph Dodge Um Americano, https://www.tchiweka.org/sites/default/files/biblioteca_digital/pdf/pp-01341.003.pdf