Dionísia Freire Martins leva-nos à infância dos assimilados residentes nas fazendas do Dondo e a relação entre as famílias nacionais assimiladas e as indígenas.
Fala-nos das diferenças da educação na sua época e de agora. Na altura, estar na rua seguia regras de conduta: não se conversava, as pessoas saudavam-se e caminhavam pelo lado direito tal como o trânsito em Angola é à direita, aprendia-se a estar na mesa, a receber alguém que batesse a porta da nossa casa para pedir um copo de água, etc.
Apresenta detalhes da mudança das relações humanas, por exemplo os vizinhos eram uma extensão da educação familiar, bem como os padrinhos de baptismo e outras pessoas mais chegadas. O namoro era aprendido no Manual dos Namorados e as tias desempenhavam o papel de orientadoras da vida marital.
Conta as novas gerações a sua infância marcada pela educação no período colonial e exemplifica a violência exercida recordando prisões e mortes na região de Massangano. Corajosamente, revela como seu pai, assimilado, trabalhador rural na Fazenda Lima, aguardou serenamente, pelos colonialistas que o foram buscá-lo ou buscar para o matarem, e ter dito aos filhos “saiam das camas e escondam-se”. Descreve a falta de humanidade: os indígenas e outros eram enterrados até a cabeça, no terreno adjacente à administração e depois o trator decepava-lhes as cabeças.
Sobre o conflito armado pós-independência realça as dificuldades dos deslocados e o papel da Igreja Católica no apoio a estas famílias e a outras mais carenciadas, não importando a origem religiosa, a sua família beneficiou destas ofertas.
Esta serva de Deus, responsável pelo grupo Bom Pastor, da Igreja Nossa Senhora de Fátima e São Domingos, continuou a prestar ajuda ao próximo da mesma forma que seus pais a ensinaram durante a infância. Cuidando dos mais necessitados na Maternidade Lucrécia Paim, Hospital São Paulo e de militares com traumatismos resultantes do conflito armado no Hospital Militar em Luanda: lavava-os, alimentava-os, costurava roupa de cama e passava o dia 24 de Dezembro com eles.
No pós-independência, as irmãs da igreja criaram, novos mecanismos de solidariedade, como a Roda dos Óbitos, durante a qual entoam cânticos, dançam e fazem uma oferenda monetária à família.
No extenso muro da sua residência, para além dos miúdos da Rua Fernando Pessoa no bairro da Vila Alice fazerem as conhecidas sentadas dos jovens à tarde e depois do jantar, também sentavam-se desconhecidos aos quais oferecia generosamente um copo de água.
Aconselha os jovens a ouvirem e a interpretarem melhor o que os mais velhos dizem “na boca de um velho apodrecem os dentes, mas não apodrece conversa”. Exemplifica, como os filhos podem ajudar os pais, como seu filho primogênito contribuiu para a reabilitação da habitação e para o início do seu negócio.
Esta depoente foi sensibilizada pelos laços de vizinhança e familiares com um membro da História Social de Angola.
Introdução
Chamo-me Dionísia Correia Freire Martins, nasci a 29 de Outubro de 1946, filha de José Correia Freire Júnior e de Mariquinhas de Jesus Mendes, nasci na fazenda Canganji, Cassualala, Município de Cambambe, província Cuanza Norte. Eu deveria chamar-me Dionísia Correia Mendes Freire Martins. A partir de 1963, houve uma excepção do governo colonial, os filhos fora do matrimónio e de mãe solteira passaram a ter direito ao apelido da mãe constar no seu nome “dos vinte filhos do meu pai nenhum leva o apelido da mãe e o meu pai também não levou o apelido da minha avó Vitória António Paulo. Os meus filhos têm somente o meu apelido paterno, o da família Freire.
O meu pai já tinha bilhete de identidade, estudou na Missão Católica. O Cônego Frotta[1] da Missão Católica do Dondo foi seu padrinho de casamento. Ele vivia com condições diferentes às dos indígenas e contratados, vivendo na fazenda. Nós tínhamos de estudar na escola da Missão Católica. Naquele tempo, os indígenas, como eram chamados os que não tinham bilhete de identidade, eram analfabetos, nós já tínhamos outro nível de vida, éramos assimilados.
Todos os meus irmãos e filhos são “xara” de algum familiar. Nomes católicos eram atribuídos, como o nome Ressurreição, “xara” da avó, da tia, dos tios, etc. O meu tio Lourenço da Ressurreição dava explicação e talvez por esse facto houve muitos naturais daquela localidade a quem foi dado o seu nome.
Depois da independência, o Estado queria que o meu filho se chamasse António Dipanda[2] Freire Martins ao invés de António Agostinho Freire Martins, por ter nascido no ano da independência de Angola, eu não aceitei e ele diz ser “xará” de Santo António.
Cônego José da Costa Frotta
O namoro
O namoro tinha de ser permitido pelos pais. Por exemplo, o filho de um senhor que conhecesse o meu pai se gostasse de mim, eram os pais dele que faziam o pedido de namoro, não eram os jovens que se conheciam na rua a tomar a decisão de namorarem. Os pais do menino pediram autorização aos pais da menina para que os meninos pudessem conversar. Foi assim que começou o namoro com o meu esposo. “Nós viemos pedir a autorização ao Sr. José Correia, se por acaso o nosso menino pode conversar com a vossa menina” e o meu pai disse “está bem, eu vou conversar com ela, isso dependerá dela”.
Eu cresci nesta fazenda no seio dos meus familiares, eu não sabia namorar, não sabia responder, mas havia livros onde aprendemos. Não me lembro onde encontrei o Manual dos Namorados e o meu pai encontrou-me a ler este livro, perguntou-me: “estás a ler esse livro, já queres namorar?”. Recebeu-me o livro e repreendeu-me, por isso eu não sabia como namorar, tão pouco responder a um pedido de namoro.
Certo dia, meu pai adoeceu e fomos ao hospital da vila do Dondo, foi internado. Havia um funcionário da Fazenda e Contabilidade que o ia visitar e gostava de mim, ele falava-me e eu não sabia responder-lhe. Estava tão inocente, a tia do meu pai vivia connosco, foi Maria Simão dos Santos Leal ensinou-me a namorar: quando o menino te dirigir a palavra, tu tens de responder dessa forma.
Em 1961, fui para a casa do meu marido, após ele sair da prisão. Esteve preso três anos e ainda não reunia condições para nos casarmos, tinha começado a trabalhar. “Quem me ensina como estar com o marido?”. Até ele falecer nunca me viu nua, fui ensinada a trancar a porta sempre que estivesse a vestir, ele podia dizer “sou eu”, mas eu não devia abrir a porta. A tia Maria ensinou-me como me comportar no leito matrimonial. No início era um martírio, também existiam aquelas regras todas, fiquei irritada durante o período de adaptação, com o passar do tempo habituei-me.
Quer dizer, as boas maneiras não são “apanhadas” na rua, estão dentro de casa.
Estar à mesa
Quando estávamos sentados à mesa havia regras, a mesa de jantar era comprida. Em casa havia sobrinhos, filhos e netos. O meu pai sentava-se à cabeceira da mesa, observando todos, o uso dos talheres, o posicionar das mãos “quando não se usa os dois talheres (faz os gestos)” e quando tivéssemos comida ou água na boca, não devíamos falar, primeiro engole-se e depois é que se responde, “ai de ti se respondesses daquela forma”, apanhavas seis palmatórias depois do almoço. Todos comportamentos incorretos eram assinalados.
O registo dos indígenas na fazenda
O meu pai tinha a agenda familiar e a agenda do povo. Na agenda do povo registava as datas de nascimento dos filhos dos trabalhadores indígenas, oriundos dos vários municípios do Cuanza Norte. Quando chegasse a época da vacinação as famílias precisavam destes dados escritos, pois eles apenas referiam as datas de nascimento e outras, como as do plantio, das colheitas do milho ou do algodão e a outros períodos da actividade agrícola, eles sobreviviam da produção agrícola.
Os pais vinham perguntar os dados de nascimento ao meu pai, porque ele apontava as datas de nascimento na agenda do povo, escrevia os dados de nascimento em um papel para eles poderem levar os filhos à vacinação no posto médico, ou ao Senhor Administrador do Posto, o Senhor Frende. Por exemplo, o meu pai foi um dos responsáveis pelos registos dos filhos dos trabalhadores indígenas quando foi construída uma nova estrada entre o Km 34 e o Dondo, a caminho do Massangano. A mata foi aberta com recursos a machados e a catanas, foi asfaltada, foi um trabalho duro, a picada foi asfaltada até Massangano, a esta empreitada deram o nome de Tira Teimas, por ter sido um desafio.
A origem do nome colonial do lugar histórico- Massangano
Massangano[3] é um lugar da história de Angola. Os ingleses foram os primeiros a chegar a Massangano, levantaram paredes para quem chegasse a encontrar aquele marco e identificasse a ocupação daquele espaço.
Quando os portugueses chegaram, perguntaram as velhas que semeavam milho:
- oh Maria, como é que se chama aqui esta área, desta sanzala?
Elas não entenderam, não falavam português, havia velhas que não falavam e nem entendiam português e responderam em kimbundo:
- estamos a semear milho, senhor
A pergunta foi uma e a resposta não se coadunou. Então, eles escreveram “Massangano”. Porque o nome era Guni Songo. Então, eles se instalam. Os holandeses quando regressaram encontram o terreno ocupado. Até hoje a construção erigida pelos holandeses está intacta.
Massangano é a terra da minha família paterna. O nome do meu avô Gomes de Carvalho, meu pai era irmão da tia Ildebranda Gomes de Carvalho e da tia Isabel Gomes de Carvalho, irmãs paternas. Meu pai explicava-nos a genealogia, guardamos estes dados.
Os templos católicos, Muxima e Massangano
A campa de Paulo Dias de Novais está à frente da Igreja Nossa Senhora da Vitória, a campa original era mesmo em frente a igreja, mas os Padres Capuchinhos afastaram a campa.
A nossa família era católica e frequentava ambas as igrejas. Talvez por isso, a nossa tia Ildebranda Gomes de Carvalho era devota e fazia rezas, as pessoas confiavam e recorriam às suas rezas. Por exemplo, o senhor Alfredo era caçador, todos os filhos morriam, um dia foi pedir a tia Ildebranda para ela fazer uma novena, ela fez a novena, e tiveram uma filha a quem queria dar o nome dela, ela não aceitou “não fui eu que fiz o milagre, então dá a tua filha o nome da Nossa Senhora do Rosário”. Onde eu nasci havia muitas meninas e meninos com o nome de Rosário em virtude do resultado dos trabalhos da tia Ildebranda, era esse o seu trabalho, era devota da Nossa Senhora do Rosário.
Nós aprendemos práticas religiosas com a tia Ildebranda. Ela ia às igrejas de Massangano, da Nossa Senhora da Vitória[4] e da Muxima. Naquele tempo, ela dizia-nos “eu vou a Muxima”. Quem tivesse problemas ou desentendimentos ia à regedoria e se não ficasse resolvido pelos regedores ou pelos sobas, o assunto era levado à Administração. Nossa Senhora da Muxima era a última instância, e neste caso a resposta vinha de Deus, “ou se ficava maluco ou morria”. Para isso não acontecer, pediam perdão: reuniam, pela última vez, as famílias e eram perdoados, em muitos casos estabeleciam amizade.
Não se ia a Muxima por se querer, hoje qualquer pessoa vai a Muxima. Porque quando fosses a Muxima, tudo que se pedia a Muxima, recebia-se. Isto não é mentira!
Dizem que a Igreja Católica trabalha com fios e missangas. O Espírito Santo também existe na Igreja Católica Apostólica Romana, e tudo que nós pedimos na igreja, Deus nos concede a Graça. Ninguém é semelhante a Deus, Deus está acima de tudo e de todos, ele conhece os nossos pensamentos.
Rezar em línguas nacionais
A minha mãe confessava-se em kimbundo e em Luanda os Padres que trabalhavam no interior do país aceitavam que ela se confessasse nesta língua. Porém, havia alguns que nunca foram as províncias e não aprenderam a falar kimbundu, estes não aceitavam confissões em línguas nacionais, diziam-lhe:
- não sabe orar em português?
- sei, mas expresso-me melhor em kimbundu
- está bem, não vamos entender, mas faça a sua confissão, depois absolvo os seus pecados
E a mamã confessava-se.
O acto de contrição em kimbundu é tão bonito. Naquele tempo eu não mostrei interesse em aprendê-lo. Hoje me arrependo, já não tenho ninguém para me ensinar. Uma vez, oiço uma irmã da igreja, do meu grupo de oração. Tivemos um retiro em Portugal durante o qual a missionária dizia “quem tem mãe em vida e aquelas que não a têm, peçam a Deus que vos deem uma mãe espiritual”, pedi e deram-me a irmã Maria Luísa. Ela é da Quibala e faz o acto de contrição nesta língua. Gostava de ouvi-la a contar histórias do passado, fazia-me lembrar a minha mãe e apenas temos diferença de dois anos de idade, uma senhora muito inteligente.
Padrinhos e afilhados
Os afilhados visitavam os padrinhos na Páscoa da Ressurreição e no Natal, todo aquele que era baptizado era obrigado a ir visitar os padrinhos. No nosso caso, ficamos oito dias, ofereciam-nos presentes e voltamos para casa felizes. O padrinho estava no lugar do pai e da mãe. Padrinho não era qualquer pessoa, nós gostávamos muito dos nossos padrinhos, eles tinham responsabilidades connosco. Por exemplo, eu vivia na fazenda e fiquei em casa do meu padrinho no Dondo para estudar.
O meu pai teve muitos filhos, tiveram de me retirar da escola, a mim e algumas das meninas para os rapazes prosseguirem os estudos, nós as meninas já estávamos na terceira classe e saímos. Os rapazes estudavam até ao Exame de Admissão. Os bem-comportados iam estudar na Missão do Quéssua, em Malange ou na escola conhecida como Coimbra.
No tempo colonial, quando os colonos fossem abrir uma mata, primeiro construíram uma casa, o posto médico e uma capela, a igreja central era na vila ou na cidade e a todas eram dados nomes de santos. Por exemplo, a de Canguenhe chama-se Santa Ana, a de Capungo chama-se Santo António, a igreja matriz do município do Dondo é a Nossa Senhora do Rosário, localizada no Dondo.
A solidariedade e alimentação
Naquele tempo, não fazíamos nada sem a igreja. Todos os domingos íamos à igreja, a nossa educação teve a presença da Igreja Católica. O pão era um alimento sagrado, se caísse da mão, apanhávamos, sacudíamos, dávamos um beijo e comíamos, porque o pão representa o Corpo de Deus. Mas hoje põe-se o pão no lixo, o pão apanha bolor.
Nós comprovamos o pão duas vezes ao dia, de manhã para o pequeno-almoço e de tarde para o jantar. Ao jantar nunca nos faltou a sopa. Os meus filhos ainda jantam sopa, eles respondem às esposas “em minha casa a sopa é sagrada, porque o meu pai habituou-nos a tomar sopa todos os dias”. A minha mamã dizia: “toda a casa que não tem sopa é uma casa onde há fome; toda a casa que não tem pão é casa onde se passa a fome, toda a casa onde não há lixo é casa de fome, passam a fome!” A casa onde há comida tem de haver lixo, onde há pão, onde a sopa se oferece sempre um prato.
Habituaram-nos a não deixarmos passar ninguém por nossa casa, sem pelo menos oferecer um copo de água, porque algum viajante vindo do Km 34, ou de Cassualala para a fazenda onde cresci, a distância era pelo menos de 8 km, tinha de ser bem acolhido. Eram desconhecidos! batiam palmas e perguntávamos:
- quem é?
- sou eu
- faz favor de entrar, o que o senhor deseja?
- ai menina, queria uma caneca de água por favor
- espera um bocadinho
“Pões a cafeteira ao fogo, fazias um café rápido, aqueces um feijão ou um macunde, o pouco que tiveres da comida da véspera”
- oh senhor, por favor sente-se aqui, coma
- não obrigada
- sim, o senhor já andou oito quilômetros, tem de comer alguma coisa, pela hora, o senhor deve ter saído por volta das cinco da manhã, não sei para onde o senhor vai, mas não pode continuar a viagem com fome
“Ai de ti” se o pai ao chegar da roça te veja a dar uma caneca de água a alguém sem teres oferecido algo para comer.
Ele dizia-nos “eu quero deixar a minha marca, quando eu morrer, qualquer pessoa que vos conhecer, irá dizer: o senhor Freire Júnior era boa pessoa. Irá dar-vos uma manga, uma fruta, qualquer coisa, temos de dar, ajudar”.
Devido a este hábito familiar, um senhor professor chamou atenção ao meu irmão:
- a tua mãe sempre que passo em vossa casa oferece-me comida
- Em nossa casa ninguém passa sem comer, na Páscoa e no Natal também.
Todos os indígenas iam passar a Páscoa em nossa casa. o meu falecido pai comprava um barril de vinho Vinul, matava, um porco, um cabrito ou uma seixa caçada pelos caçadores, quer seja o que eles trouxessem, um javali ou um veado.
Eu era miúda, não conseguia levantar a panela e colocá-la no fogo de carvão, por cima das três pedras. Cozinhávamos a lenha. A partir de 1964, começamos a cozinhar nos fogões Primo, em 1961 já havia dois destes fogões em nossa casa. Cozinhávamos no fogão quando fosse urgente “prima Luísa vem ajudar-me a colocar a panela ao fogo”. Quando a colher não chegasse ao fundo, porque a panela era grande, virávamos a comida com o pau do funge.
Aquelas pessoas todas comiam, bebiam e no dia seguinte iam-se embora “a sua bênção senhor José Freire” e o pai fazia uma oração e eles iam. Foi assim que vivemos na fazenda.
Inicialmente, estudávamos em Canguenhe. Ao meio-dia, um dos trabalhadores ia levar um tabuleiro de comida para nós. O nosso professor era o senhor João Matoso, da Igreja Evangélica, a Igreja Católica estava do outro lado do rio.
O meu primo Francisco Correia Freire era catequista e aprendi muito com ele, ajudava a dar catequese às meninas, ajudava a prepará-las para fazerem a Primeira Comunhão. A minha mãe dizia que eu fui batizada aos quatro anos de idade e ia com as tias ensinar o catecismo, cresci ao lado das tias, Ildebranda e a Antónia Correia Freire e a tia Néné.
O respeito
Você não podia ouvir uma conversa e chegar a casa e dizer “fui a casa do tio e ouvi isso”, era castigado e quem não tem medo de apanhar palmatórias? Uma vez, esqueci-me de fazer o café, meu pai tomava café antes do pequeno-almoço. Como eu não fiz o café, mandou o Pires castigar-me, era ele que nos servia a mesa, controlava-nos e nos batia quando necessário, o meu pai dava ordem ao Luís Pires para nos castigar com a palmatória. Agora a nova geração, louvo e agradeço aos bem-educados.
Principalmente, em Portugal os netos tratam as avós por “tu”: tu disseste-me isso. Não se deve tratar os avós por “tu”, chegam a casa e dizem “olá”. Os nossos filhos ao irem e ao regressarem da escola davam um beijinho aos pais; os nossos netos chegam da escola “olá avó”, é assim que os meus netos me cumprimentam. A neta da minha cunhada chegando da escola:
- olá, avó
- olá!
- tu não viste onde está a minha bata?
- quem é o “tu”, eu sou da sua idade? Eu sou tua amiga? Por amor a Deus! “por favor, dá-me uma bata ou procure a minha bata”. E eu vou procurar a bata e entrego-te.
Nós não fomos educados assim. Eu também não gosto de chamar alguém de casa e responder-me “diga”, pode responder “diga tia, diga avó…”. Tem de haver educação, disciplina e respeito. Eu dei educação, respeito e disciplina aos meus netos porque eu também a recebi. Tinha de transmitir os princípios à nova geração, porque se não os transmitirmos como é que a nova geração terá educação?
A luta pela independência, massacres no Dondo
O pai do meu marido morreu afogado. As minhas tias pediram para ele não sair de canoa, mas ele não ligou, morreu por tristeza, dizia “se o meu filho está preso, eu também não quero viver, posso morrer”. Foi baleado, a tropa portuguesa utilizava a expressão “vamos lhe podar”, mataram-lhe por ter ido à procura do filho.
No Dondo houve muitos massacres! Abriram uma vala por trás da cadeia onde enterravam as pessoas até ao pescoço e depois de estarem enterrados o trator passava por cima para decepar as cabeças.
Outras, tiveram de viver com os portugueses para salvarem os irmãos. Umas tiveram sorte, os irmãos foram soltos; outras, os irmãos já estavam mortos e ficaram a viver com os portugueses. Foi um massacre muito grande no Dondo.
O meu pai sobreviveu por milagre, os rios transbordaram, o Kuanza inundou e transbordou para o rio Lucala. Eles viajavam em um jeep UNIMOG e a dada altura não conseguiam conduzir e mandavam os pretos:
- sabes nadar?
- sei
- está muito fundo?
- sim e há jiboias e jacarés, temos de regressar.
Havia muitos corpos na fazenda Lima e na fazenda onde a minha família vivia.
O meu primo era catequista e encontrou um crânio, levou para casa e deixou-o no quintal, os filhos brincavam com aquele crânio. Dos dezassete apenas sobreviveram dois filhos. Ele não deveria ter feito aquilo, nós fomos educados “se fores ao rio buscar água e vires um corpo a superfície, ele deslizará até a beira e assim que ele se aproximar, inflamado, atiras a tua rodilha e se não tiveres a rodilha, despes a tua blusa e atira-a, dizendo: “eu sou criança, não tenho nada para te enterrar, vai na paz!” E o corpo iria dar a volta e seguir outro percurso. Isto aconteceu comigo! Nesse dia, fomos buscar água ao rio Kuanza. A Luísa e a Catarina eram as mais velhas, não prestaram atenção, porque estavam a conversar, fui eu quem viu o corpo, e disse-lhes “vamos despejar a água no chão e fugir com as latas vazias”, puxamos a canoa e partimos. Subimos para a canoa, remamos e amarramo-la, para não perdermos a canoa usada para irmos buscar água no rio.
Entramos em casa, ouvia-se o barulho das metralhadoras e o pai disse:
- vocês todos saiam das camas e deitem-se de barriga para o chão
- e o pai está sentado?
- sim, porque eles estão a vir ter comigo para matarem-me.
Não morreu, porque como os rios transbordaram eles não conseguiram chegar à margem onde vivíamos. Também, foram alertados que naquela mata havia jiboias, muitas jiboias nas árvores “e o seu veneno é mortífero, elas abanam a cauda, vocês caem no rio onde há jacarés”. O rio quando transborda arrasta tudo. O meu pai foi salvo graças aquelas inundações. Primeiro, tentaram chegar a nossa casa pela picada, conduzindo um UNIMOG e como havia um baixio com muita água tentaram atravessar.
Porque queriam prender o seu pai?
Porque ele era sábio e todos os sábios tinham de ser mortos. O meu marido, o meu cunhado Inocêncio e quase todos os jovens sábios do Dondo foram presos. Porque sabiam ler e escrever, pensavam “esses é que vão fazer a guerra”. Isto em 1961, mas a luta armada começou em 1956, eu era criança, mas recordo a revolta no Dondo.
O Programa Angola Combatente e os Irmãos Cambutas
Enquanto os mais velhos ficavam a conversar, eu ouvia o Angola Combatente. Certo dia, sintonizei a rádio e ouvi. O programa iniciava com a música e depois passavam as mensagens “o ratinho coitado não chegou, foi morto, as filhas da Dona Rita chegaram, estão bem, o fulano foi morto”. Ouvi e depois fui ao quintal e disse ao meu pai:
- oh pai, eu ouvi o Angola Combatente
- tu ouviste o Angola Combatente?
- sim pai
- a que horas?
- as 19:30, dá todos os domingos das 19:30 às 20:00 e todas as quartas-feiras das 19:30 às 20:30 e repeti o que ouvi
A partir daquela data as quartas-feiras chamava-me “menina Dionísia vem sintonizar o programa Angola Combatente”.
- menina Dionísia
- pai
- qual é a banda? sintoniza.
Peguei no nosso rádio:
- olha pai, está a começar, a música inicial é esta.
Chamou os meus primos, o Viana, o Vitoriano, o tio João, a mamã e as tias, escutamos todos. Não se podia ouvir muito alto porque alguém pode chegar e bater à porta, ouvir e transmitir a um soba ou a um sipaio, seríamos todos presos, seríamos considerados terroristas por estarmos a ouvir as mensagens dos terroristas.
Ouvíamos todos. Nesse belo dia, aparece o primo do pai, Patrício Domingos Constantino e o meu pai diz-lhe:
- oh primo Patrício a minha filha descobriu o Angola Combatente, já escutamos na quarta feira. Embora não os conheçamos, são pessoas de Luanda que lá chegaram
- primo Júnior, fica entre nós os dois, não conversamos com mais ninguém. Porque os sipaios foram obrigados a andarem de casa em casa para colherem informações. Ai do primo se disser alguma coisa, vai preso e a menina Dionísia também irá presa, porque será considerada como uma pequena terrorista. Então, primo Júnior esta conversa acaba aqui. Tem tantos filhos, quem irá cuidar deles?
O meu pai tinha nove filhos com a minha madrasta e dez com a minha mãe e mais outros três.
O meu pai fechou a boca e eu também não disse nada a ninguém. Ouvíamos sempre o programa. Cada um tinha o seu rádio, mas juntamo-nos para conversarmos sobre o que ouvíamos.
Os mais novos eram mesmo pequenos terroristas ou denunciantes, no meu caso inocentemente contei à filha do Chefe da Polícia que o meu pai ouvia este programa?
Isto quer dizer que era ouvido por todos. Eu encontrei o programa por acaso, já tinha ouvido falar e tive curiosidade. Na fazenda não havia muito mais para fazer, ouvia-se muito a rádio, ouviam-se crónicas e rádio novelas, as novelas eram lidas nas crônicas. E aprendi várias histórias como Ali Babá e os 40 Ladrões nestas crónicas. Isto aconteceu, não é invenção!
Por vezes, o sipaio encontrava-nos na linha férrea e fingíamos estar a fazer necessidades maiores e perguntava-nos:
- oh miúdas, o que fazem aqui?
- viemos fazer necessidades maiores.
Afinal de contas, íamos levar bilhetes aos irmãos Cambutas, eles vinham até a linha férrea, traziam bilhetes e nós as miúdas íamos buscá-los para os entregar as mais velhas, eram bilhetes dos seus namorados, com notícias, nós levávamos e trazíamos.
Os irmãos Cambutas não eram pessoas estranhas, eram parentes e pessoas conhecidas que viviam na mata. Eles vinham colher a informação e transmitiam aos outros até a altura de partir definitivamente para a luta de libertação nacional. Então, o nosso truque era “estamos a fazer necessidade maior”. Por exemplo, a nossa vizinha e o marido (o pai da mãe São) fugiram para Brazzaville e quando o Agostinho Neto chegou quem o recebeu e fazia a comida foi a titia Esperança (a família dela tinha uma fotografia a retratar este facto). Todos trabalhamos para a nossa independência!
Indústria no Dondo, até 1975
A indústria no Dondo estava em desenvolvimento porque em N`Dalatando não há rio. O rio passa distante da vila, apenas havia chafarizes e cacimbas.
Naquele tempo, havia a antiga fábrica da EKA, a de tecidos, a SATEC, a Bana Angola, onde se faziam bebidas espirituosas e alimentos infantis. E agora acabou a guerra e não se reconstruiu esta indústria, a única fábrica que sempre continuou a produzir foi a Eka. Quando vivia na Vila Alice ia ao Dondo buscar peças de tecido e vendê-las às minhas amigas na Calema, hoje está tudo destruído.
As vilas bonitas, as vilas eram mais bonitas que as capitais dos distritos. No Dondo havia um bonito jardim, em frente a polícia. Havia a escola missionária onde estudavam os assimilados e os portugueses, o povo em geral estudava maioritariamente nas escolas das missões católicas e protestante (americana). Tivemos uma boa infância, e juventude, com muito respeito na base de tudo.
A educação materna
Comia-se em casa, não se comia na rua. Eu até aprendi na escola como andar na rua: conforme, os carros conduzem à sua direita, é também como os peões devem andar, à nossa direita. Aprendi a ver as horas na escola. Mas, a minha mãe não sabia ler e nem escrever, mas sabia ver as horas e eu perguntei-lhe: “como a mãe sabe ver as horas? O teu pai ensinou-me.”
E os conselhos que saiam da boca dela! Uma vez, a mamã estava com muitas saudades da sua amiga Esperança Cassule. Ela vinha do Dondo para Capungo, encontraram-se e a minha mãe deu-lhe um profundo abraço: sentaram-se, uma colocou as mãos no ombro da outra e abraçaram-se e olhavam-se nos olhos e apenas sussurravam, uma a outra: “hum”, “hum”.
Eu observando, quando a tia Esperança se foi embora perguntei-lhe:
- mamã, tinhas tantas saudades, não conversaram, abraçaram-se tantas vezes, só respiraram fundo
- muitas conversas, conversamos tudo
- sem palavras?
- sim, conversamos tudo.
Pensei: “Meu Deus, nós quando estamos com amigas falamos e elas que não falaram diz-me que conversaram tudo”. Eu queria saber mais, como é que conversaram tudo se não abriram a boca? Aquilo passou-se.
Um certo dia ela estava a aconselhar-me e diz-me: “minha filha, quando vires que a filha da vizinha está grávida não comentes com ninguém. Olha e fecha a boca. Se a menina vier ter contigo, aconselha a menina a conversar primeiro com a mãe dela”. Porque os nossos pais eram terríveis “uma menina engravidar vivendo em casa dos pais?’ sem casamento ou sem pedido?”
Ela depois deu-me um exemplo e completou dizendo “Deus não é burro, Deus sabe tudo, não é atoa que “Deus fez o peito largo e o pescoço grosso” (falado em kimbundo), interpretando “há coisas que tens de vomitar e outras tens de engolir”. Resumindo: ver, ouvir e calar.
11 de Novembro de 1975
No dia 11 de Novembro de 1975, estava em casa, em Luanda, morava no Cassequel, próximo a Tourada, reunida com os vizinhos, Inácio, Miguel, Vítor, o meu marido e com as suas companheiras, o rádio estava aberto e acompanhamos tudo pela rádio. Quando içaram a bandeira, ouvimos o barulho dos foguetes, foi muita alegria e grande emoção.
Mas, o que Angola é hoje sinto uma tristeza muito grande. Porque quando fui à África do Sul, vi um país muito bonito, organizado e reflecti porque é que eles estão assim unidos? Depois percebi a intenção de quererem correr com os sul africanos brancos, mas eles disseram: Nós estamos aqui, crescemos aqui e também os nosso pais, avós e trisavós, é a nossa terra, vamos para onde? Vocês ficam a governar e nós ficamos na indústria. Fui fazendo perguntas ao meu filho: “isso é importado ou produzido pelos sul africanos? É produzido por eles!” Gostei da gestão, do conviver e da união deles. Fui àquele país em tratamento, por poucos dias, mas gostei do pouco que eu vi e vivi. Se em Angola estivéssemos a pensar da mesma forma, Angola não haveria de ficar pobre, destruída e miserável. Já não é pobreza, é muito mais “ver um chefe de família ir a um depósito de lixo, sacudir pão com bolor”, mães de filhos não têm negócios, não têm nada!
Temos uma igreja renovada, oramos muito pelos nossos governantes, mas a ambição é grande, sinto tristeza. Telefonamos para Angola e todos os familiares dizem “não vem”, mas eu sinto saudades da família, é a minha terra, onde nasci e cresci. Angola era bonita, as vilas Golungo Alto e Calulo, hoje estão destruídas, no Dondo só há ruínas.
Quando passo no Dondo, choro, as pessoas ficam a olhar e sabem que eu não sou de lá, pois as pessoas antigas já morreram ou foram viver em outros lugares. A guerra fez mal a Angola!
Caridade
Agora, há mais carência, o povo já esteve mais à vontade, agora é uma tristeza. Pessoas andam a pé de Viana a Luanda. Eu com a minha pobreza ajudo muita gente. Ver um jovem com a camisa molhada de suor, morador de Viana, com o salário no valor de 25.000,00 kz, chefe de família, com quatro filhos e uma neta, chegar ao ponto de inventar que o filho morreu: apresentava uma certidão de óbito falsa “o meu filho morreu, não sei como tirar o corpo do filho do hospital”. Chorei, pensei e ajudei. Quando pediu a segunda vez disse-lhe: “já lhe dei 10.000,00 kz”. Os vizinhos também já o tinham ajudado, dávamos refeições. Fui ter com a irmã Eva Maurício, com a Eva João e com a igreja para o ajudarmos. Há muito sofrimento em Angola!
Por exemplo, no quintalão da Igreja Nossa Senhora de Fátima, havia muita malva, hoje já não há, arrancaram para vendê-la. Era onde apanhávamos malva, eu secava na dispensa, esta e outras ervas para quando estivéssemos doentes as utilizarmos. Sempre comprei ervas naturais, ajudam no tratamento de doenças.
Desde tenra idade é católica praticante, qual o papel da igreja na sociedade angolana?
Dizem que a igreja católica é a mais rica. Ajudamos muito, em alimentação e em vestuário. Por exemplo, o marido da minha sobrinha tinha uma loja, que foi saqueada pela UNITA. Ela apenas teve tempo de colocar um litro e meio de água e uma mandioca no cesto. Fugiu com quatro crianças, fugiram e andaram de mata em mata até chegarem a Camabatela, molhando a língua e repartindo a mandioca. De lá partiu uma coluna e vieram até ao Dondo, dirigiram-se à Igreja Católica “fomos refugiados, chegamos do Lucala II sem nada”, estavam sujos. A Igreja Católica deu-lhes vestuário, roupa de cama, alimentos e foi-lhes sustentando durante algum tempo.
Em Luanda, eu, a minha falecida mãe e os meus filhos, Marco Paulo e o Tinacho íamos buscar arroz à igreja. Os Tocoísta também recebiam arroz sempre que os Padres abrissem um contentor, a igreja também ajudava com medicamentos. Hoje as outras igrejas estão a fazer o mesmo, a ajudar os mais carenciados.
Os nossos jovens quando se casavam, a igreja Nossa Senhora de Fátima oferecia aos desempregados mobiliário, não lhes dava casa, mas dava-lhes camas, colchões e roupas de cama.
E quando as pessoas estavam nas províncias refugiavam-se na Igreja Católica e dava-lhes de comer. Segundo a minha empregada, eles eram dez irmãos, estavam anêmicos, devido à fome, ela levou um as costas e outros dois, um em cada mão. No Huambo a igreja passou a dar-lhes refeições diárias, os irmãos recuperaram com aquela alimentação e medicação. Conseguiram chegar a Luanda, os irmãos e a mãe e hoje ela diz: “graças a Igreja Católica, eu não posso sair desta igreja, foi ela quem nos deu a vida!” Isto, na fase depois da independência. A família dela fugia dos conflitos armados no Huambo.
Obras de caridade
Eu também participei nesta vaga de caridade, colaborei na distribuição de roupas, aquilo era como se fosse um trabalho. Trabalhei dois anos na maternidade Lucrécia Paim, dois anos no Hospital Américo Boavida e outros dois no Hospital Militar, durante seis anos fazendo obras de caridade.
Tudo começou quando fui visitar a minha irmã e reparei em uma senhora deitada numa cama, tinha perdido o filho e ficou aleijada. Eu tinha passado por uma situação idêntica, na maternidade deram-me banhos de luz durante 52 dias, a minha perna foi mantida suspensa com o auxílio de um peso e hoje ainda sofro as consequências. Chocou-me vê-la naquele estado. A cama estava cheia de moscas, o quarto cheirava a podre. Perguntei:
- porque aquela cama está cheia de moscas?
- sim, está com moscas e está aí uma parturiente
- quem é esta pessoa?
- é uma miúda do Moxico.
Fui lavando-a, e levei a preocupação aos padres. Ela estava muito mal, tirei-a da cama para ela caminhar, entreguei-lhe um pau de vassoura para ela se apoiar e aparando-a do outro lado, para ela descer até ao recinto e tomar banho na banheira, cortei-lhe as unhas, estava impregnada de fezes, amarrei-lhe um pano para tomar banho naquele espaço aberto. Depois, fui ter com o Administrador Paim e disse-lhe: dei banho a uma paciente, estava toda suja e preciso de um colchão e se for possível de uma cama e gostaria também que o senhor a visse. Deu-me o colchão e uma cama nova. Eu fiquei com a obrigação de dar-lhe o banho diário, a ela e a outras pacientes que estavam mais graves.
Visitava mais as pessoas das regiões mais afetadas pela guerra, Moxico, Saurimo, Lunda Norte, Camabatela e N`Dalatando. Na maternidade eram vinte e três, faleceram três, enterramos uma, até hoje guardo o seu cartão da OMA. Eu só ia ao encontro das pessoas mais necessitadas. Passava o Natal com elas.
Os padres deram-me três embalagens de fardo, comprei linhas e agulhas e entreguei-lhes, dizendo “vocês como não fazem nada, vão cosendo as roupas rotas”, porque a maior parte da roupa estava em condições. Como eu tinha uma máquina de costura em casa, também ajudava e fazia lençóis. Levava-lhes sabão e esponjas.
Voltava para casa de noite, devido ao cheiro a fezes, quando todos estavam a dormir, tomava banho de mangueira no quintal para não trazer infecções hospitalares para casa.
Fazíamos comunicados na rádio para anunciar os falecimentos as famílias, participei em três funerais:
Uma delas tinha dez filhos, um piloto que foi alvejado e uma das filhas era enfermeira e trabalhava no hospital geral de Benguela. No caso desta não apareceu ninguém, ela chorava “eu com tantos filhos, vou morrer e nem sequer na presença de um filho”. Neste dia Deus operou “uma turma de primeira classe do centro da Luz não teve aulas e foi a igreja, cada um dos alunos trazia um raminho de flores quando entraram na igreja no dia do seu velório”, foi enterrada no cemitério Km 14. Guardei essas recordações, mas a minha casa estava em más condições e com as inundações perdi tudo, mas preservo o seu cartão da OMA.
No segundo enterro, eu fui à igreja pedir ajuda e deram-me dois jogos de lençóis, eu e a irmã Teresa da Gama fizemos a roupa. A carrinha de carroceria longa levou a urna da irmã Luzia Nené e o turismo do irmão Caetano levou os outros membros da nossa igreja. Fizemos o ritual do óbito em casa da irmã Teresa da Gama, a comida foi feita em minha casa, fizemos feijão e caldo.
No terceiro enterro, a família apareceu e agradeceu muito. Perguntaram-me de onde é a senhora? Sou angolana, faço isso pela igreja, Deus é que me mandou fazer isso, não me agradeçam, agradeçam a Deus, por ter aparecido alguém a ajudar. Eles já tinham lavado o corpo e passaram em minha casa para me agradecer antes de partirem para o funeral. Eu subi pela escada do caminhão IFA onde também estava a urna e pousei o vestido que tinha feito por cima do que ela trazia vestido. Os familiares disseram “ela tem de levar este vestido”. disse-lhes: por pouco não me encontravam, ia a sair para a maternidade.
Depois, a Dra. Manuela de Jesus Pinto, diz a Teresa da Gama (conhecida por mana Zita, conforme a chamavam em Malanje) “Aquela senhora gorda vizinha do meu irmão, tem o dom de cura, porque eram vinte e três pacientes e vinte vão ter alta, estavam para ser operadas a fístula e a outras mazelas”. Vi muitas jovens bonitas, o que estes olhos já viram!
Depois, levei outros irmãos a exercerem caridade nestes hospitais, entre os quais, o irmão Caetano e as irmãs Maria Gregório, Maria Rosa, etc. A Mimi ofereceu-me uma peça de tecido cinzento para fazer lençóis. Fi-los e distribuí a todas as pacientes, os restantes dei a pacientes mais necessitados dos outros hospitais.
Quanto tiveram alta não havia recursos para regressarem aos locais de residência. Reunimos, conversamos e tomamos uma decisão: “precisamos do apoio da TAAG”, selecionaram as saudosas Nanda e Januária e fomos portadoras de uma carta a solicitar bilhetes de viagem gratuitos para as enviarmos para casa. As do Cuanza Sul foram de carro, as residentes em províncias mais distantes apenas podiam regressar de avião, porque as vias de circulação estavam impedidas, como as de Cabinda, Moxico e Malanje. Levamo-las ao aeroporto. Foi o trabalho feito durante seis anos.
O Natal solidário
No dia 25 de Dezembro fui primeiro ao Hospital Militar, e o pessoal de serviço disse- me:
- a senhora não entre aí, não sairá viva desta ala
- porquê?
- está cheio de malucos
Falavam de soldados com traumas de guerra, alguns com tremendos defeitos físicos, era chocante olhar para aqueles soldados, alguns quase sem rosto, o rosto de um deles era uma massa com os orifícios do nariz e da boca. Cicatrizes resultantes de minas antipessoais e de outras armas.
- o Espírito Santo mandou-me vir aqui, eu não estou a entrar por mim mesma, vim fazer a obra de Deus, eles vão me receber bem.
O pior dos traumatizados, não tinha rosto, apenas os orifícios das fossas nasais, não tinha olhos, sem braços e pernas e apenas tinha boca, aquele corpo parecia uma trouxa, foi ele que me recebeu carinhosamente, tratou-me por “minha mãe”:
- minha mãe por aqui?
- sim, vim visitá-los, saber como estão, mas vou ficar pouco tempo convosco porque também vou à maternidade.
Fui bem recebida. Antes disse-lhes: “eu vim chamar-vos para vocês ajudarem trazer da portaria gasosas e sumos” e eles disseram-me: só a tua presença para nós mamã, é tudo, o que está a fazer por nós, consolar nos, é muito bom, podemos comer noutro dia.
Continuei a visitá-los, entrava sozinha, os enfermeiros encontravam-me, olhavam para mim e perguntavam: como é possível essa senhora estar aqui?
Orava com eles e cantávamos. Depois, comprei bíblias, e oferecia-lhes o Kamba Dia Muenhu (Amigos da Vida), o livro com orações e cânticos. Fui orando com eles. Ficava lá até a noite. Fiz o mesmo com as parturientes da maternidade. Houve muita libertação e curas, elas foram partindo para as suas terras e eu fiquei.
Alguns começaram a passar o fim de semana em casa da Dra. Manuela Mendes[5] e outras em minha casa. Eu não tinha lugar, mas estendia luandos e panos na dispensa e nos corredores para eles passarem a noite.
Capa do Livro Kamba Dia Muenhu
O grupo Bom Pastor
Actualmente, sou líder do Grupo Bom Pastor, a serva principal é a irmã Dionísia Correia Freire Martins. Nós fomos formados pelo Padre Ézio Dinazio, italiano, estudou durante onze anos no Brasil e quando chegou a Angola transmitiu-nos este fogo do Espírito Santo que está até hoje em nós. Trabalhei com as servas Ana Margarida, Nananá, Maria José (Mizézinha).
Agora estou a trabalhar com a serva Delga, com a Helena Fernandes, Ana Maria Ferraz, Maria Luísa Ferreira, Rosa Céu sob orientação do Padre Tula. Estou em Portugal, mas estou a trabalhar, dou orientações por telefone. Estou a trabalhar em Luanda e em Portugal. Tudo a decorrer em Angola é do meu conhecimento, recentemente houve o Terceiro Congresso de Evangelização Fundamental, enviaram-me o relatório e fotografias.
Temos grandes cantores como o irmão Jesus e alguns são deficientes visuais, receberam este dom. Estão sempre prontos a cantar nos retiros, como Miguel Buíla. O irmão Jesus é um jovem que começou a cantar em autocarros, é bom animador, hoje é servo de Deus.
Continuo a transmitir a necessidade das visitas “visitem porque chegará uma altura em que não conseguirão visitar os outros”. Eu já não consigo andar longas distâncias e aconselho as novas gerações a fazerem visitas, porque os doentes ficam muito animados quando recebem visitas e isso ajuda a cura.
Actualmente, as igrejas fazem muitas visitas, incluindo as cadeias, até as mais perigosas como a cadeia de São Paulo. Embora levemos comida e outros bens para os prisioneiros, eles manifestam intenções de violência, a polícia fica ao nosso lado e chamam a atenção “trazem-vos comida e vocês querem atacá-las, que pessoas são vocês?”. Eles ficam frustrados, há reclusos que não saem das celas. O irmão Pascoal fazia parte do grupo destas visitas. Belos tempos que lá vão.
O muro da residência da tia Dionísia
Certo dia, um desconhecido passa pela minha porta e diz-me: “até que enfim conheço a senhora, é a dona da casa?”
- sou sim, porque essa exclamação?
- eu passo aqui de manhã e à tarde, porque moro neste largo e encontro aqui mais velhos de chapéus de baixo da sombra desta mangueira, crianças, jovens, sentados aqui no muro e a senhora não diz nada, não corre com eles…
- eu, correr com eles? Aqui há uma mangueira, estão a sombra, não me incomodam, não estão a fazer barulho.
Depois, um dia encontrou-me e disse:
- Minha senhora, a sua velhice vai ser muito boa, irá comer, beber, receber graças e ofertas na sua velhice
- porque o senhor diz isso?
- porque a senhora só faz bem, as outras colocam massa consistente ou óleo, sujam os muros para ninguém encostar e a senhora faz o contrário, qualquer pessoa vinda de longe, com carga ou sem carga, descansa aqui, ainda lhe pede água e a senhora dá com agrado
- é pela forma que fui educada, na minha família é assim.
“Dar de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede”. Não é preciso escolher a quem dar, principalmente as pessoas mais necessitadas.
Sempre trabalhei para Deus. Em Portugal, partilho a palavra na capela da Nossa Senhora da Saúde e também vou à Igreja de Santo António, em Moscavide. Certa vez, fui a Fátima, precisaram de Ministras da Eucaristia e eu como tinha o meu cartão comigo, dei comunhão na grande missa que tivemos a Nossa Senhora de Fátima, na Capela das Aparições, fiz este trabalho uma única vez, trabalhar para Deus é bom, mas é preciso saúde, actualmente aos 78 já não consigo fazer muita coisa.
Catequista de quintal
Sou Ministra da Eucaristia, sou Serva de Evangelização Fundamental e fui catequista dos quintais. e continuo, na infância, na juventude e na velhice, estou quase no fim da picada, continuo com o meu Jesus dentro de mim. Como a paróquia ficava distante, abriu-se o Centro Santa Isabel da Hungria a Bulgária, funciona no quintal da casa do irmão Pedrito, na Rua Alberto Correia (mais conhecida por Mata Gato), depois passou para o meu quintal. Houve casamentos dos catequizados. A mãe São, a Lina de Carvalho Tec e a Leonor de Carvalho eram catequistas, havia cinco grupos de catequese constituídos por crianças a partir dos sete anos.
Concelhos as novas gerações
Que as futuras gerações possam dar ouvidos aos mais velhos, com muito respeito, com muita educação, com muita consideração, ou seja quem for, com que idade tiver, prestando atenção. Em primeiro lugar, saber ouvir, depois pôr em prática porque “na boca de um mais velho apodrece dente, não apodrece conversa”. Então, saber, ouvir e pôr em prática para lhes servir de exemplo e também transmitir aos seus filhos e aos filhos dos seus filhos porque os avós educam os filhos e os netos.
Eu já estou na terceira geração, os filhos da minha neta Naomi ainda aprendem comigo. Vou dar um exemplo, fui com ela fazer uma visita a falecida avó Marta da Costa, nos seus últimos dias, tinha muitas dores e gritava. Uma vizinha fez perguntas a minha bisneta, ela chorava, limpou as lágrimas e ficou na parte de frente da casa. E a vizinha da paciente pergunta a minha bisneta:
- porque estás a chorar?
a minha bisneta olhou-a e respondeu-lhe:
- porque ela está doente
- o que tem e está a gemer assim tanto porquê?
Foi fazendo várias perguntas e a miúda ficou a olhar, foi fazendo várias perguntas à miúda. E a miúda contou-me “eu só fiquei a olhar para aquela avó, não respondi porque a bisavó costuma dizer-me: Ver, ouvir e calar”. Eu não respondi o porquê da avó Marta estar a chorar. Ela não sentiu pena, ao invés fez-me tantas perguntas, ela devia visitá-la.
Fiquei tão feliz! “Estão a pôr em prática o que ouvem da vossa bisavó, Jesus és tu que estás a educar, não sou eu”. Eu continuo a educar.
É verdade, há ensinamentos que ficam! Quando estamos a conversar ao lado de uma criança, ela está a ouvir tudo. Ela pode estar a ver televisão, mas entende o que nós estávamos a falar. As crianças compreendem e explicam-nos tudo que ouvem e veem.
O mal da nova geração é não pôr em prática o que os mais velhos dizem. Dirigimo-nos a eles “Ele é velho, vamos embora”. Devem saber ouvir, prestar atenção, baixar a cabeça, ouvir e procurar maneiras de entender.
Hoje em dia, a juventude quer tudo rápido, não querem fazer nada nas calmas. Enfim, por isso é que a juventude está como está, as pessoas aprendem até morrer porque o “tempo é o mestre de tudo”, nada acaba, enquanto a vida tudo continua. Enquanto há vida continuamos a aprender. A Juventude tem falta de paciência e não sabe esperar. O agricultor semeia e espera, o feijão crescer, cresce dobrado, à medida que vai crescendo vai se erguendo até aparecer a primeira folha e ele fica feliz pela planta estar a germinar e chegar a dar o fruto.
Mesmo no namoro há regras. Eu namorei durante quatro anos e não nos conhecíamos como marido e mulher. Atualmente, o menino pede namoro a menina e hoje mesmo “o menino vai conhecer a comuna, já vai visitar a comuna”. Connosco não era assim. Até hoje preservo os versos musicais que o meu marido escreveu para mim. “Quem eu quero não me quer, e o beijo gelado”, e cantava-os, lia as cartas enviadas pelo meu namorado. Todos os anos quando faço anos canto “os meus” versos, os meus filhos comentam “Esta mãe!”.
Factos marcantes
25 de Abril a 11 de Novembro de 1975
No tempo da guerra em Luanda no período de transição, pensei que o meu filho Franco seria militar, era traquino e dava-me muito trabalho, hoje é o mais sério e o mais calmo. O Franco sentava-se no muro do aeroporto, com uma lata de engraxar sapatos onde colocava pedrinhas e quando estivessem a passar soldados da UNITA ele dava um toque com a lata “estão a chegar militares”, com a intenção dos militares do MPLA se aperceberem.
Nesse dia ele estava a brincar a porta da base do MPLA em frente a Tourada e estavam a passar umas senhoras do hospital Militar e da maternidade, a Dona Tereza, minha vizinha, funcionária da maternidade ia para o trabalho e elas dizem-lhe:
- colega vais onde?
- vou para o trabalho, vou entrar agora
- tens de correr, porque daqui a bocado “isto vai ficar feio”
- porquê?
- porque ligaram de Caxito para o Hospital Militar a pedir reforço, há muitos feridos, “entraram” em Caxito e estão a preparar o reforço e por isso “isto vai ficar feio”.
O miúdo que estava a brincar ouviu bem a conversa e o sentinela não ouviu nada. Ele entrou na base e diz:
- Chefe Madaleno “isso vai ficar feio” (eles prestavam atenção às crianças, o Franco apenas tinha cinco anos), por isso fiquem preparados!
- porquê?
- porque o Hospital Militar recebeu um aviso a dizer “em Caxito está quente e preparem-se para receber os feridos” e precisa de reforços.
- quem foi que disse?
- umas senhoras que estavam aqui a porta a conversar com a minha vizinha
foram para a porta e perguntaram ao sentinela, e ele respondeu:
- não ouvi nada
- não ouviste nada? Não ouviste a minha vizinha, a Dona Tété a falar com aquelas senhoras, eu não as conheço, mas elas foram por aqui…
Deram duas bofetadas ao sentinela.
Passado um pouco, começa o tiroteio e eles comentam “como é que não vamos confiar nos nossos pioneiros”.
Tive de mudar de casa, porque ultimamente, os militares iam comer em minha casa, servia-lhes em travessas grandes e dava-lhes garfos. E ele comia com eles, um deles drogava-se, babava-se e. Pensei “Crianças são inocentes, se eu o repreender ele vai contar-lhes”. Mudei de casa, apareceu uma casa em Alvalade, mobilada, o António (marido) não quis, apareceu a da Vila Alice e mudamo-nos. Os militares lamentaram “e o nosso miúdo…” Eles queriam ir buscar o meu filho porque os ajudava. Este meu filho era traquina e adorava ficar entre as crianças mais velhas.
O apoio do filho primogênito e o micro negócio
O meu marido sempre trabalhou para o mesmo empregador, o salário era suficiente, não faltava o pão de cada dia. A casa estava partida, não tínhamos meios para consertar a casa, mas tínhamos comida todos os dias à mesa e quem viesse também comia.
Um dia fui ao Dondo comprar tecidos para mudar o visual da casa. E assim começou o meu negócio. O muro foi levantado, os anexos foram construídos, a casa foi gradeada, e coloquei cortinas.
O meu filho mais velho saiu da tropa e estava muitos meses sem receber salário e quando recebeu os salários em atraso, recebeu muito dinheiro, pagaram-lhe em duas ou três prestações. Esteve a cumprir serviço militar três anos na Lunda Norte. Neste dia, ele bate à porta do quarto às cinco da manhã e dá-me uma quantia generosa:
- mãe, eu já falei com o senhor que vem arranjar a casa, está aqui este dinheiro, no valor de cinco mil dólares americanos”.
E eu pensei “Oh Senhor, o meu primogênito, agora que o pai morreu, trabalha na Administração Municipal, mas ele diz que não está a ser pago, onde é que ele encontrou este dinheiro? Não vou ao mercado!”. Apresentei o dinheiro a igreja “Meus Deus, eu não sei de onde vem este dinheiro, como o meu filho arranjou este dinheiro, quero antes viver pobre ao invés do meu filho ir para a cadeia, por isso ele terá de me dar uma explicação para eu usar este dinheiro”.
As dez da manhã ele chega a casa, eu já tinha regressado da igreja e diz-me:
- oh, a mãe está em casa?
- estou
- não saíste para ir ao mercado com o Avozinho?
- não, vamos conversar primeiro e depois é que eu poderei dar destino a este dinheiro, não posso usar como o disseste, onde é que conseguiste este dinheiro?
- durante o serviço militar, cheguei a patente de capitão. Estou a ganhar melhor, depois de seis meses fui promovido a Aspirante, o meu salário foi subindo. Como nunca recebi os salários, agora pagaram todos os salários em atraso.
Ajudou a comprar um carro para o irmão e um para ele e deu-me aquele dinheiro para reparar a casa.
Antes daquela reparação da casa podíamos ter morrido porque o teto estava a cair, pingava chuva em nossa casa, a minha irmã tem uma filha com um problema na vista devido a algo caído do telhado. Quando se começa a ouvir os pingos desligava o quadro elétrico para não sermos eletrificados, ficamos às escuras porque o chão e as paredes transmitiam electricidade. Quando estava fora de casa e começava a chover, vinha a correr para casa, preocupada com os choques eléctricos.
Hoje a casa está como nova. Peguei naquele dinheiro e fomos ao mercado, trouxe o material de construção, incluindo as chapas de lusalite, sacos de areia, de cimento, tive de alugar um camião para transportar o material.
Comecei a fazer o negócio da alimentação. Durante a semana servia mufete, choco grelhado e aos fins de semana também servia vários pratos de funge, os mais solicitados eram o nosso calulu e a carne seca. Recebia muitos clientes de outros bairros, a maioria residentes em Alvalade. A iguaria preferida era o feijão de óleo de palma, o meu vizinho Tomás Pinto Ferreira, quando provou o meu calulu e o feijão de óleo de palma “…descansa, aos sábados o funge será comprado a Dona Dionísia”. Em 1994-95, ao lado da casa da Dona Elvira Van Dúnem havia um departamento da UNITA e os funcionários também eram os meus clientes.
Com os rendimentos do negócio, continuei a reconstrução da nossa casa. Mudei a canalização e saneamento básico, a canalização antiga era em metal. Continuei o meu negócio, a dada altura fiquei com menos clientes e fechei o negócio.
Vizinhas
Quanto à minha condição de necessitada, tive muito apoio das vizinhas, da Dona Fátima Vasconcelos e da Dra. Edith Ferreira, louvo e agradeço pela ajuda e pelo grande apoio. Tive duas irmãs, quando eu não tinha não sei como elas se davam conta, provavelmente pela amizade entre os nossos filhos. No Natal a D. Fátima fazia rabanadas, um bolo e mandava para minha casa. Eu ficava muito feliz, tive bons vizinhos e também recebi ajuda da tia Domingas.
No meu tempo, dizia-se “o vizinho é sua família”. O vizinho podia repreender o teu filho, até bater porque estava a educá-lo, os pais pensavam “o mais velho não faz as coisas à-toa”. Hoje, não se pode fazer isso.
E hoje as pessoas que têm a vida melhorada não se relacionam com os familiares mais necessitados. Ultimamente, na nossa Luanda, os tios dos filhos são os amigos, os grandes amigos substituíram os irmãos.
As relações familiares e os óbitos em Luanda
Atualmente, quando alguém morre, os mais abastados chegam abanando as chaves dos carros, chegam arrogantes, trazendo bens alimentares para o óbito como arroz e peixe.
Aconteceu com uma “irmã da igreja”: a irmã dela tinha uma vida abastada, trabalhava, tinha as suas amizades, já não andava a pé, tinha o seu carro. Inicialmente, todos olhavam para ela e confortaram a filha mais velha do falecido, mas quando chegou a irmã mais nova, a abastada da família, a minha amiga acabou por ficar a um canto, virou uma trouxa, lixo. Ela observou o desprezo e resolveu ir à igreja pedir auxílio.
O Padre era o Frei Moisés, quando ele chegou a paróquia tinha nos dito: eu vim para estar convosco, para brincar, chorar convosco, eu vim para todas as situações que tiverem, contem comigo, eu não sou apenas o padre, sou vosso filho, vosso, irmão, vosso caçula, sou tudo para vocês.
A irmã chegou a igreja e disse ao Frei Moisés:
- Senhor Padre tenho óbito na família
- quem morreu
- o meu pai
- teu pai morreu?
- sim, o Senhor sabe que eu não trabalho, não tenho nada para enterrar o meu pai
- vamos a agência funerária
Quando lá chegaram:
- escolha a urna
- não é necessária uma urna cara, pode ser está.
Colocaram a urna na carrinha. As compras para o óbito foram feitas na Macambira. No turismo do padre foram colocados sacos de arroz, milho, duas caixas de peixe, duas caixas de frango, duas caixas de sabão, uma caixa de Omo e dois bidões de óleo, dois sacos de carvão e uma caixa de óleo de palma comprados naquele armazém.
Quando ela chegou a casa do óbito com o padre (nunca tirava o hábito) exclamaram: a mana está a chegar com o padre. O Padre cumprimentou as mais velhas e disse-lhes: a nossa irmã chegou à igreja para contar-me a vossa infelicidade, vamos nos unir, a união faz a força, eu vim aqui para vos unir e espero a colaboração de todos.
A situação alterou, porque a minha irmã da igreja trazia a urna, as vestes e alimentação, a igreja deu tudo necessário, o fato foi comprado na Samirana.
No dia do funeral, o padre apareceu, nós as irmãs da igreja estávamos todas presentes e os comentários foram “quem tem família é a mana, nós não temos família, não vale a pena…”.
Novo ritual, a Roda dos Óbitos
Na nossa igreja depois do funeral não nos importamos com comes e bebes, mas sim com os cânticos. Louvámos, dançamos e praticamos este ritual: atiramos dinheiro para o pano colocado no centro da roda dos cânticos. Nós vamos prevenidas e somos as primeiras a atirar o dinheiro. Não importa a quantia, cada um coloca o que tiver, vamos atirando. É a nossa contribuição.
Fizemos a roda, no total contabilizamos acima de trezentos mil kwanzas. Uma senhora pergunta: “A mana tem família, nós pensamos que o dinheiro era para as irmãs da igreja irem comer e beber, mas ainda nos ofertam este dinheiro?” Aqui quando morre alguém, os familiares e amigos compram comida e bebida e comem aqui, não nos é entregue dinheiro. Nós explicamos: connosco é o contrário, o dinheiro colectado é para ajudar a irmã que perdeu o familiar. Bateram palmas e repetiam “a mana é que tem família, isso é que é uma família”.
A nossa família espiritual, sempre faz isso nos óbitos, quer seja de famílias abastadas ou não.
Em outra situação, foram buscar-me à igreja e saí dela com o grupo “manas há um óbito de uma pessoa que me viu a crescer”, fomos consolar as famílias, mas antes passamos pela igreja e pedimos ao Frei Maiato[6] que nos acompanhasse. Fomos ao cemitério, e eu responsabilizei-me pelas orações e depois fizemos a roda. Houve uma senhora que queria retirar dinheiro. Pedimos-lhe para separar várias notas e pergunta:
- esse dinheiro não é para nós?
- não, nós da Igreja Nossa Senhora de Fátima, não choramos desta forma; nós vamos chorar os nossos mortos, fizemos a roda e entregamos o dinheiro recolhido aos donos do óbito para comprarem mantimentos para o óbito.
É uma tradição antiga ou pós-independência?
Foi criada pela igreja católica depois da independência, fomos nós na igreja que criamos por haver pessoas que não têm nada para fazer o óbito e como nós observamos estas situações decidimos criar esta roda. Ultimamente muitas pessoas fazem a roda.
Qual é a importância de os angolanos contarem as suas memórias à História Social de Angola?
Este trabalho da História Social de Angola é importantíssimo, para além da vossa plataforma há outros angolanos a fazerem trabalhos semelhantes. Conheço vários angolanos a fazerem este trabalho como a Isabel Carvalho e o Vítor Hugo Mendes. Outro dia ela mostrou-me o livro sobre o músico Nagrelha, ela ofereceu um livro a minha irmã Milú e durante a leitura a minha irmã exclamou “alguém analfabeto dar essas dicas tão instrutivas!”, referindo-se ao saudoso Kudurista Nagrelha.
Continuem a trabalhar!
Este depoimento foi realizado em Sacavém, no dia 24 de Outubro de 2024.
Realizado por Marinela Cerqueira
Edição: Marinela Cerqueira e Sónia C.
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[1]O cónego José da COSTA FROTTA foi muito mais do que isso, e daí a razão da homenagem: o sacerdote santomense (1879-1954) fundou a primeira Escola da Missão Católica do Dondo, onde trabalhou durante 22 anos, desde 1908, tendo sido também pároco da célebre Igreja da Muxima, na Província de Luanda, além das passagens que teve pelas províncias de Malanje e Bengo. https://portal.autores.club/tag/mafrano/page/6/
[2] Dipanda significa Independência na língua Kinbundu.
[3] Massangano – No meio de um aparente nada, eleva-se Massangano, com a sua fortaleza em ruínas e canhões apontados para um inimigo (hoje) fantasma.
Sem conexão aparente com o entorno de capim, este conjunto de paredes brancas descarnadas e amontoados de pedras de séculos parecem caídos do céu ao acaso. Para entender o que significam, é necessário viajar no tempo e falar de datas e cronologias. Porque essa é a essência deste lugar, ponto de embate constante entre os colonizadores portugueses e o povo do Ndongo.
Durante a colonização portuguesa, nestas terras do actual Kwanza-Norte proliferavam visões míticas, como as das lendárias minas de prata de Cambambe, que os lusos sonhavam alcançar. Para garantir o domínio militar, e também para consolidar a captura de escravos na região, em 1583, Portugal construiu no alto de um morro estratégico a famosa Fortaleza de Massangano. Lugar perfeito na confluência verdejante dos rios Kwanza e Lucala, com vista privilegiada para as terras reclamadas por Ngola Kiluanji e Rainha Jinga.
Mas a História dá muitas e inesperadas voltas. E o que, na sua origem, era para os portugueses um posto de ataque, rapidamente se converteu num atabalhoado refúgio de última hora. Em 1641, com Luanda conquistada pela Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais, os colonos lusos fugiram em debanda e fecharam-se a sete chaves na Fortaleza de Massangano.
Transformada em capital-provisória de Angola, nos sete anos seguintes Massangano seria o centro da reorganização portuguesa, abalada pelos contínuos ataques dos resistentes do Ndongo. Em 1648, comandadas por Salvador Correia, a fortaleza foi o ponto de partida da reconquista dos territórios ocupados pelos holandeses. Consolidava-se, assim, a dominação de Portugal, que apenas terminaria em 1975. http://m.redeangola.info/roteiros/massangano/
[4]https://www.google.com/search?q=igreja+catolica+do+dondo&oq=igreja+catolica+do+dondo&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUyBggAEEUYOTIHCAEQIRigATIHCAIQIRigATIHCAMQIRiPAjIHCAQQIRiPAtIBCTcwMTRqMGoxNagCCLACAQ&sourceid=chrome&ie=UTF-8#vhid=kH6XOMaVe9m7CM&vssid=_wOgjZ8nVB7qrkdUPgezusQY_61
[5] Maria Manuela Mendes é entrevistada por Amílcar Xavier. Nesta conversa, aborda o seu percurso profissional que começa depois da licenciatura em medicina pela Universidade Agostinho Neto. Manuela Mendes é entrevistada por Amílcar Xavier. Nesta conversa, aborda o seu percurso profissional que começa depois da licenciatura em medicina pela Universidade Agostinho Neto https://www.youtube.com/watch?v=A0C41Rxfzm8
[6] Breve biografia (preparada pelo frei Adelino Soares)
Frei Benjamim José Maiato (nome civil José António Gomes dos Santos Maiato) nasceu a 11 de Maio de 1922, em Malanje. Filho de António Gomes Maiato e de Maria Francisca Luís Gonçalo, foi baptizado a 6 de Agosto de 1922, na Paróquia de Nossa Senhora da Assunção, Diocese de Malanje e confirmado a 26 de Maio de 1932. Fez os estudos primários de 1932 a 1938 em Malange e Saurimo. Entrou no Seminário Diocesano de Bângalas a 23 de Abril de 1938 onde fez o ensino secundário até 1944. De 1945 a 1956 fez a Filosofia e Teologia no Seminário Maior de Luanda. Entrou no Noviciado da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos em Bassano del Grappa, Itália, a 7 de Dezembro de 1961. Fez a Primeira Profissão a 8 de Dezembro de 1962 também em Bassano del Grappa na Itália. Fez a Profissão Perpétua a 13 de Dezembro de 1964 em Cangola. Foi ordenado Diácono por D. Manuel Nunes Gabriel em Luanda a 27 de Dezembro de 1964 e foi ordenado Presbítero por Dom Manuel Nunes Gabriel a 2 de Maio de 1965 em Luanda. https://www.capuchinhos.org/atualidade/capuchinhos/pascoa-de-frei-benjamim-maiato-capuchinho-angolano