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Entre Angola e Portugal: Infância e Identidade no Ano da Independência,  João Neves

Chamo-me João Ângelo Stattmiller de Saldanha Alburquerque Neves, nasci em 1972 em Luanda e cresci na Praia do Bispo, o bairro dos meus avós.

Dimensões da  política de assimilação, anos 70

Este estar entre mundos de certa forma foi algo que marcou minha infância e a minha adolescência. Acho que seria bom falar um pouco do que é ser angolano numa circunstância dessas, percebendo que no  tempo colonial as coisas funcionavam muito de acordo com a cor da pele. Acham que eu sou branco, mas na realidade sou mestiço, filho de pai angolano e de mãe portuguesa branca. E de certa maneira eu tenho um tom de pele bem claro. O que sou a esse nível deixo ao vosso critério.

Posso dizer-vos em criança cresci na Praia do Bispo em casa dos meus avós paternos do meu lado africano e a minha avó  era  a “mãe Ana” como as pessoas lhe chamavam. A Ana Castelo Branco Neves de seu nome era filha de uma bessangana da ilha e de um português que vivia no Cuanza Sul. Quando vinha de viagem a Luanda conheceu essa bessangana. Dessa ligação resultou uma das suas filhas. Vim a saber, depois da morte da minha avó, que essa menina tinha sido registada como filha de pai incógnito. Nunca foi registrada pelo pai. Apesar de tudo isso, a minha avó era uma das pessoas mais racistas que eu já conheci. Durante muitos anos questionei-me, tentei perceber o porquê, e portanto o estudo e o olhar para a história no seu contexto, ajudou-me a perceber como ela cresceu e as razões que a levaram a isso.

Para ela eu fui o seu primeiro neto e quando nasci já era assim clarinho e tinha um cabelo muito clarinho e isso para minha vó foi um grande orgulho, era o sonho da velha   e eu penso que tinha a ver um pouco com isso, com o facto de eu ter um tom de pele branco e cabelo loiro e isso a deixava com muita vaidade. Portanto, no tempo da minha avó a mobilidade social em Angola, no tempo colonial também tinha a ver com a cor da minha pele, quanto mais, claros que nós fossemos, melhor.

Existia mesmo, até quase aos anos 50  esteve em vigor o Estatuto Indígena que era a legislação que, de certa forma, regulava os indígenas. A questão dos chamados assimilados que os africanos tinham de passar para  que era um processo pelos que os africanos tinham de passar para serem assimilados e isso basicamente consistia em eles adoptarem de certa forma os hábitos portugueses vestirem roupas ocidentais e, portanto, tudo isso permitia a esses assimilados conseguirem ocupar posições um pouco mais altas, melhores, dentro da sociedade colonial. Quanto mais claros nós fossemos mais brancos nos consideravam. Até 1957 esteve em vigor o estatuto indígena que regulava a questão dos indígenas, não só em Angola, mas também na Guiné e em Moçambique. Renegam a sua cultura, as suas tradições, os seus hábitos, os seus costumes, as suas línguas. Se vestirem roupas ocidentais e tudo, isso permitia a esses assimilados ocuparem posições um pouco mais altas.

É uma mentalidade que mesmo hoje ainda existe na Angola independente. Eu costumo dizer aos meus amigos: o estatuto indígena ainda existe, na nossa mente, nas nossas cabeças. Havia estes dois pólos. Eu cresci um pouco nessa mentalidade com a minha avó, que não era única. Essa mentalidade, mesmo hoje na Angola independente ainda existe, costumo dizer que essa realidade que o estatuto indígena ainda não foi erradicado e ainda continua nas nossas cabeças. Essa foi uma das questões que marcou a minha identidade.

Sobre a questão da identidade, porque também tenho a costela portuguesa da minha mãe , fui criado pela a minha avó materna. Havia esses dois pólos a minha avó paterna com essa vaidade do neto branco e loiro e a minha avó que também era uma pessoa deliciosa que contava que quando eu era pequenino punha-me ao colo a cantar os fados portugueses e que eu ainda criança emocionava-me com aquilo e ela via em mim uma certa sensibilidade cultural europeia. Também havia um amor muito grande entre nós.

Independentemente disso, essa minha avó quando eu era criança tinha o hábito de me apertar  o nariz com receio que o nariz ficasse mais largo pois o nariz um bocadinho largo. ainda mostrava alguns traços de origem negra que de certa maneira era preciso ir anulando. Esta foi uma das coisas que me marcaram, penso eu que nasci em 1972 antes da independência.

Ainda antes da independência, guardo recordações muito espersas, mas essas mentalidades não mudam. Passado pouco tempo acontece a independência. E aquilo que se verifica hoje, cinquenta anos depois, ainda existe essa mentalidade, permanecem esses resquícios dessa mentalidade do estatuto indígena na cabeça das pessoas.

Pós Independência, entre Angola e Portugal

No pós independência com o eclodir da guerra e os conflitos a situação começou a tornar-se mais complicada. Mesmo do ponto de vista da alimentação, houve um período muito difícil em que o meu avô tinha um barco da pesca e nós íamos sobrevivendo em grande medida pelo que ele pescava. A situação da guerra foi se agudizando e eu acabei por sair, por ser levado daqui. E fui nessa altura para a terra da minha mãe, os Açores. Nas tais ilhas, isso de chamar as pessoas que vinham de África de retornados ainda havia aquela coisa lá o que me fazia uma grande confusão porque, no meu caso, eu não estava retornar. Eu estava a chegar e mesmo com o tom de pele que tinha era o retornado, era o preto. Havia um pouco desse preconceito que depois felizmente se foi diluindo e foi-se ultrapassado naquela altura.

Nos Açores fiz a escola primária e o início da escola preparatória e o liceu, portanto passei parte da minha infância e adolescência nos Açores, nessas raízes maternas na terra da minha mãe. É uma terra pela qual eu tenho também muito carinho e senso de identidade. Porém há um pouco essa coisa de nos quererem meter nas caixinhas “tens de ser isto, ou aquilo”,  mas nós frequentemente somos uma multiplicidade de coisas e podemos ser isso ou aquilo e tudo isso na nossa diversidade, porque é realmente essa diversidade talvez uma das nossas maiores riquezas.

Depois, com quinze anos regressei a Angola e acabei o liceu em Angola, depois voltei a Portugal para fazer a universidade e depois da universidade regressei novamente para Angola onde comecei a exercer a minha actividade profissional, foi sempre um “pula” entre esses dois mundos. E portanto não posso deixar de reconhecer que sou fruto de toda essa mescla de culturas e de influências que acabou por me transformar naquilo que eu sou hoje.

Factos marcantes

A minha mãe tinha vindo para Angola aos catorze anos era uma pessoa um bocadinho excêntrica em certas coisas positivamente e aliás nessa altura não era muito vulgar uma mulher branca casar com um africano, isso até deu alguns problemas para ela a nível familiar. Estive na escola primária e a pessoa que alfabetizou- me foi o professor Jaime Baptista. Ele protegia-me, a ponto de muitas vezes, ao fim de semana eu ia ajudá-lo na quinta. Ele tinha actividades que eu adorava. Ele criava abelhas e gozava comigo, ele dizia, para alimentar o meu imaginário, se calhar eram abelhas sem ferrão. Tinha um outro hobby, era columbófilo e era quando ele mandava- me ir soltar os pombos, portanto, eu chegava ao pombal e quando abria a porta eles voavam e depois voltavam e eu perguntava, porque é que eles voltam se abrimos-lhes a porta e se eles podem voar e ir embora de vez? Eu destacaria esse professor que me ensinou a ler e a escrever e me incutiu o gosto pela leitura. Onde ele estiver, daqui vai um abraço e um obrigado.

Depois dessa experiência, em que vos falei em Portugal, houve a necessidade de ajustes. No regresso a Angola, voltei a ser promovido a branco, aqui havia a coisa do “pula”, mas isso rapidamente também se dissipou de certa maneira e tive a felicidade também de ter crescido aqui com bons amigos e gente que também acabou por ter um papel importante na construção da minha personalidade, malta do teatro, gente ligada á rádio.

O regressar a Angola foi interessante, pois, aí sim, eu era um retornado. Estava a reencontrar coisas que até já me tinha esquecido. Por exemplo, eu lembro-me que quando era criança de sonhar com certas coisas que depois já não tinha uma memória coincidente delas e depois apercebi-me nesse regresso: memórias de cheiros e muitas vezes elas saem-nos do nosso consciente mas ali no subconsciente elas ficam. certos paladares, por exemplo o embondeiro, eu a dada altura sonhava com o embondeiro, mas não tinha uma memória real do que era o embondeiro, em criança, depois de ter saído, ao regressar confrontei-me com o embondeiro e eu acredito que isso é capaz de acontecer a muita gente que vive entre mundos.

Depois também, toda a questão da cultura, da música, da dança, diferente da nossa, o fado que a avó contava, (não tenho outra alegria) e foi muito bom reencontrar e perceber que isso faz parte de mim. Também, tem depois as suas nuances nós africanos realmente temos outra vivacidade outra alegria, da nossa música e isso foi muito bom reencontrar-me e a entender-me melhor. Depois tem também as suas nuances: eu de facto reconheço ter esse tom de pele que me trouxe um pouco desse privilégio de branco, mas também há situações caricatas como essa que vos vou contar:

Comunidade francesa

 A dada altura, anos 80 aqui em Luanda, o meu pai trabalhou para uma empresa francesa a Elf Aquitaine, e tinha um clube ali na Corimba onde os franceses iam, tinham lá os barcos, iam velejar, e assim passavam os seus tempos livres. O meu pai trabalhava lá e fazia a manutenção dos barcos. Eles tinham na altura os barcos á vela, chamados vivas e lembro-me em um domingo já ao fim do dia, fomos fazer o nosso passeio de vela e ao regressar estava um aglomerado de barcos, regressavam do Mussulo. Uma confusão e havia alguma dificuldade para ajudar, os charriots para pegarmos o barco e encostarmos na areia, os charriots estavam ocupados. Nisto vejo um miúdo francês com os seus oito ou nove anos a brincar com um desses charriots e eu dirigi-me a ele em francês pedindo por favor que ele me cedesse o charriot para que eu pudesse usar e o miúdo olhou para mim com uma cara muito séria e respondeu-me simplesmente assim: Je suis français.

Mas, aquela primeira reacção realmente fez-me perceber que mesmo no privilégio branco também há graus de privilégios e o facto de ser angolano por si só tornava- me inferior aos olhos daquele miúdo. Ele também não tinha culpa nenhuma, é preciso perceber a mentalidade dos pais dele, porque aquilo lhe tinha sido incutido. Porque é que ele tinha sido aquele sentimento que pelo simples facto de ser francês já permitia-lhe estar à brincar com o charriot? O que ajuda a perceber certas dinâmicas que nós tínhamos aqui. de facto, a comunidade francesa não se misturava. Era uma coisa muito fechada. Portanto, isso permie dizer que mesmo no pós independência ainda havia aqui ilhas dessa branquitude.  

 A minha avó paterna com essa vaidade de um neto branco e loiro e minha avó materna que cantava os fados quando eu era miúdo, um amor muito grande entre nós. Independentemente disso, a minha avó paterna tinha o hábito de me apertar o nariz quando era pequeno com o medo de se tornar grosso. Ainda havia alguns traços que de certa maneira tinha de ser afinado. essa foi uma das marcas, eu nasci em 1972  não tenho muitas recordações de antes da independência, mas essas mentalidades não mudam ainda hoje existem resquícios dessas mentalidades.

Fui crescendo na Praia do Bispo e no pós independência com o eclodir da guerra e os conflitos, a situação começou a tornar-se mais complicada. Houve um período muito difícil, o meu avô tinha um barco de pesca, e comíamos o que ele pescava e também trocava. Nessa altura fui para a terra da minha mãe, para os tais Açores, as tais ilhas. o que no caso da minha mãe e da minha avó era verdade e no meu caso não, eu não estava retornar, estava a chegar. Depois felizmente foi-se diluindo e ultrapassando naquela altura.

Passei parte da minha infância e adolescência nos Açores, nessas raízes paternas da minha mãe e um pouco o sentimento de tens de ser isso ou aquilo e nós frequentemente somos uma multiplicidade de coisas e tudo isso é riqueza, tudo isso nos enriquece como pessoa, a nossa diversidade.

Há muitas etapas marcantes do meu tempo de estudante. A primeira e depois também, aqui a escola acabou por ser interessante, muitas memórias de desporto, de basquetebol e do futebol.

Todas as histórias em que se falava em Luanda do Caixão Vazio Passava, a escola funcionava em função da possibilidade de aparecer a questão do Caixão Vazio, coisas interessantes naquele tempo,que era um tempo do Partido Único.

Arranjei o meu emprego na Rádio Nacional, tinha um cartão de abastecimento, mas como não tinha agregado familiar não tinha direito a muita coisa e o salário também não dava para grande coisa. Mas sinto que naquela altura em relação aquilo que se observa hoje em Angola, apesar de tudo aquilo que poderia estar mal e estaria mal, acho que havia menos assimetrias sociais. Éramos todos mais pobres, mas éramos mais iguais, não havia tanta divisão sócio económica como há agora. Vive-se em mundos completamente diferentes, que não se tocam, que não se conhecem, que vivem separados por muros e cercas, e isso nessa altura não existia dessa mesma forma.

E era exatamente esse elemento de sermos mais iguais sentimento que “éramos mais iguais” o sentimento de sermos mais iguais que marco- me bastante, não havia tanta separação como se vê agora. Há os  que vivem a realidade do colégio privado, depois tem as crianças que vivem a realidade do colégio privado, do condomínio fechado vivem num mundo completamente diferente do mundo da criança que vive no musseque, que vai a escola pública. Eu vivo na província onde ainda temos escolas que são debaixo de árvores. esses dois mundos hoje, parecem quase isolados completamente um do outro. e isso é algo que me preocupo bastante, porque penso, sem querer defender o tempo do Partido Único, não é isso; e não é o socialismo puro e duro que se aplicava na altura, acredito o que temos de fazer mais esforço de termos uma sociedade mais justa, mais equilibrada, uma sociedade que não deixe ninguém ficar para trás.

Cinquenta anos depois da independência, temos problemas graves a esse nível e temos de olhar para isso com muita atenção e realmente dar a todos angolanos as oportunidades e as promessas que a independência nos trouxe.

Portanto, recordando a minha primeira experiência nacional, então tinha dezasseis anos quando comecei a trabalhar na rádio. Mas a Rádio Nacional foi aquele abrir e desabrochar para aquele mundo da comunicação com a Paula Simons e o Ismael Mateus. Depois, a dada altura, fazia o Dia Novo com a Carla Castro onde assinava uma rubrica que naquele tempo era fora do habitual. Então atiraram-me para o Dia Novo. lia para o ar  da meia noite às três da manhã e o “Proibido Proibir” entrava por volta da uma da manhã, portanto já há uma hora que achavam que já não seria muito ouvida, mas curiosamente havia alguns grupos em Luanda que eram bastante fiéis e que ficavam acordados para ouvir o “Dia Novo” e o “Proibido Proibir”.

As festas, Luanda anos 80

Ainda o recolher obrigatório da noite às cinco da manhã. aliás, dizem que é por causa do recolher obrigatório que os kaluandas se habituaram que as festas tem de ir até de manha. e ninguém quer sair antes da meia noite, porque a festa ainda está a cuiar, pois só poderíamos sair depois das cinco da manhã. Com excepção de um outro ou outro que estivesse inserido em certos canais, e que tivesse um livre trânsito, mas mesmo assim não era aconselhável e portanto, é a partir daí que as festas em Luanda passaram a ser até ao pôr do sol e mesmo assim ainda íamos para o fundo da Ilha tomar o caldo, para apurar no fundo os efeitos da noite. apesar de todas a essas coisas, eram noites muito animadas, saudáveis e muito positivas.

Lembro-me do Paralelo 2000 e depois, mais tarde, o Pandemônio foi uma discoteca criada perto do local onde estamos a fazer esse depoimento, era um quintal em uma antiga casa e tenho muita saudade desses tempos, apesar do recolher obrigatório, apesar de não haver muitas condições financeiras, nós vivíamos a vida e nos divertíamos. Tínhamos uma sã convivência uns com outros. Até quando conto certas coisas aos meus filhos, de quando eu tinha a idade deles, eles até ficam a olhar-me de uma maneira estranha, mas realmente era assim. Tínhamos de ir contornando o recolher obrigatório e habituarmo-nos de que quando vamos para a farra, é mesmo até o dia raiar.

Apesar de tudo, tivemos uma vivência mais saudável e no meio de toda a confusão do Pós Independência, quando não havia loja onde pudéssemos ir comprar as coisas. Um tinha um canal para conseguir a cerveja, outro para o frango, quem tinha um canal depois partilhava com os outros. As próprias festas eram feitas por contribuições, isto criava uma solidariedade quase que orgânica, mas a sociedade é que se tornou mais materialistas, até certo ponto.

Mensagem às novas gerações

Apelo aos jovens que não se deixem dominar por isso, eu tenho uma grande esperança na nova geração, nos jovens. Sinto também que a nossa geração não conseguiu de facto fazer a transformação que se pretendia nesse país. Temos de fazer uma meia culpa geracional, passo a expressão, a fim de fazerem a revolução social que nós não conseguimos fazer.

Tentando fazer uma comparação, olhando um pouco para a minha geração e essas gerações agora, acho que nós, temos a esperança de que eles consigam fazer a revolução, passo a expressão, de tudo aquilo o que vinha como promessa da independência, que não se cumpriu e que cada vez mais se vai “incumprindo”, penso que os jovens de hoje são o repositório da esperança por uma Angola melhor, uma Angola da  esperança, uma Angola diferente, mas para isso não se podem deixar dominar pelo materialismo, por muitos desses impulsos da sociedade capitalista que não é um exclusivo de Angola  .

O capitalismo, acho que tem o sucesso que tem. Nós, seres humanos, somos máquinas de desejos. Passamos a vida a desejar e o capitalismo, esta sociedade capitalista de consumo vai nos dando mais coisas, o que nós desejamos ter e se nós analisarmos bem, grande parte dessas coisas não precisamos, são essas coisas que não nos fazem felizes.

Eu hoje vivo na província e tenho conseguido encontrar a paz. Alguma paz que de facto não estava a encontrar aqui em Luanda. No meio deste frenesim dos tais desejos, de termos uma casa melhor, um carro melhor de acharmos que todas essas coisas é que nos fazem felizes e isso pode ser uma armadilha. Confio em vós para tornar esta Angola no país que queremos e merecemos, para tentarmos ter aquilo que queremos e que merecemos.

Estudantes angolanos em Lisboa, Anos 90

E chegando em Lisboa falamos no início dos anos 90, ainda se vivia em Lisboa com alguma naturalidade e alguma frequência grupos de skin heads, eram Neo Nazis que andavam com roupas nazis, botas da tropa e professavam essa ideologia facista, racista. isso foi na altura, também em que ocorreu, hoje ainda está na memória pelo menos de certas pessoas, ocorreu o assassianto de um cabo verdiano o Alcino Monteiro.

Tínhamos organizado e criamos um grupo de estudantes africanos dos PALOP´s e nessa altura nós ficamos chocados com toda essa situaçao do assassinato do Alcino Monteiro e decidimos agir, até de forma radical, porque a dada altura saíamos á noite.  Alguns de nós eramos “DJ” em algumas casas e por uma questão de segurança começámos a organizarmos-nos em grupos para nso defendermos e de certa forma dar caça a esses grupos neo nazis

O Partido Socialista Revolucionário foi na sede do PSR que hoje é a sede do Bloco de Esquerda, ali na Rua da Palma ode criou-se o SOS Racismo nas mesmas instalações em que se criou o Bloco de Esquerda, com o Sr. José Falcão. Porque o racismo, a xenofobia são ideologias inaceitáveis, isso melhorou durante alguns anos e é com alguma tristeza que eu vou observando o crescimento dessa onda fascista e nazi, não só em Portugal mas um pouco por toda Europa e em todo mundo.

Uma situação caricata era termos amigos negros nascidos em Lisboa, Portugal e eram apátridas. Eles não tinahm documentos, não otinham nacionaldiade. Quando saíssemos tínhamos de andar preocupados, porque não havia, penso eu naquele tempo, algo como jus solis, “o direito de” tu se nasces aqui tens a nacionaldiade daqui”.  Isso foi um bom avanço que se fez em Portugal reconhecer esse direito que se cosigna combater essa onda racista e xenófoba que se sentia nesse momento. São ideologias inaceitáveis, isso melhorou durante alguns anos e é com tristeza ver o crescimento dessa onda facista e nazi, não só em Portugal, mas na Europa.

Memórias do sector social

Depois, da universidade regresso a Angola, um pouco também com aquele espírito de vamos dar um contributo.  O meu primeiro emprego foi no MINARS, na Direcção Nacional da Infância, com a Dra, Ana Afonso, psicóloga e criamos o serviço SOS Criança e depois de um ano no MINARS com toda a vontade da Dra Ana Afonso acabei por sair, porque não se conseguia viver com dignidade trabalhando-se no MINARS.

Daí enveredei para a ADRA, foi uma grande escola para mim. Aliás, ainda hoje digo que o Fernando Pacheco que era um dos meus gurus, ele arranjou uma alcunha chamava-me o Fronteiras Perdidas, aprendi muito com ADRA e deu-me pela primeira vez uma oportunidade de conhecer Angola, porque no tempo da guerra vivíamos fechados em Luanda

A primeira vez que eu saí de Luanda foi na viagem de finalistas ao Lubango e foi a primeira vez que eu tive contacto com uma Angola fora de Luanda, porque até aí vivemos limitados a área de Luanda.

Depois desse regresso a ADRA deu-me a oportunidade de pela primeira vez viajar por Angola e trabalhar com comunidades rurais em várias províncias e é a partir daí que eu digo que comecei  realmente a conhecer melhor o meu país.

Da ADRA passei pelo PAM, foram anos bastantes duros, há muitas histórias menos bonitas, deixamos para outra altura. O PAM marcou-me bastante, estive inclusivamente na parte final no Moxico, o Estado Maior tinha sido movimentado para o Moxico, foi uma desgraça muito grande, não só no Moxico, mas também no Huambo, Bié, Cuando Cubango. Lembro-me da primeira vez que fui ao Kuito, província do Bié, onde se viam mais pessoas mutiladas do que pessoas que não estivessem mutiladas era uma coisa realmente surrealista.

Ao ponto de nós até estarmos no Huambo pela ADRA numa altura em que a UNITA cercou o Huambo e começou a flagelar o Huambo. Nós tínhamo-nos abrigado numa cave, em casa de um amigo e eles tinham decidido fazer uma festa no meio da guerra, do flagelo. Também quem vive no meio da guerra, a guerra torna-se no meio dos flagelamentos fizeram uma festa. É dos dos momentos mais surreais que eu acho viver com nessas circunstâncias.

Do PAM  passei para a USAID, vim para Luanda. Esta cidade estava a tornar-se um local com muito trânsito e muito stress. Tive a oportunidade de ir trabalhar para o sul, mudei, a minha esposa é do Lubango e isso também influenciou, vivo  no Lubango há vinte anos. Fui para o Lubango como Oficial de Projecto Residente da UNICEF e agora estou no PNUD, mas sempre trabalhando nas questões de emergência, de desastre, em questões de desgraça: da má nutrição, dos problemas e é isso que me angustia um pouco.

Vou confessar-vos, porque no tempo da guerra havia uma desgraça, mas havia uma ideia que  diziam não, “isso se justifica pela guerra”, mas havia uma ideia e uma perspectiva que nos era dito e compreendemos “acabando a guerra o país vai viver uma outra realidade, uma outra vida”.

E hoje em 2025, mais vinte e três anos volvidos da paz continuamos a ter pessoas a morrer à fome, taxas de má nutrição enorme, uma mortalidade infantil altíssima, problemas de toda a ordem, que eu julgava que nesta altura já não estivéssemos a viver. Infelizmente, a minha trajetória profissional acabou por estar em contacto com isso, com essa realidade e acabou por pôr-me sempre em contacto com essa realidade e talvez isso tenha gerado em mim alguma revolta e sentir a necessidade urgente de que Angola possa ser um país onde este tipo de realidade deixe de existir.

Não seria isto necessário, porque Angola é um país com muitos recursos, com muita riqueza, com uma população jovem, portanto tínhamos todas as condições para fazer diferente. Era também preciso uma vontade política de quem governa, temos de ser realistas.

Também, temos de perceber que isso não pode estar sempre da mesma maneira: Sempre governados pelas mesmas pessoas e pelas mesmas elites. Tem de haver alternância. E é por tudo isso que tem de haver mudança, eu sou apologista da mudança. Ninguém está a fazer apologia  à guerra. É pela fome que temos, se continuarmos a ter os problemas sociais que temos, será inevitável que Angola volte a ter problemas.

Porque essa juventude, essas novas gerações que estão a crescer nessas condições, já não têm a memória da guerra, portanto já não têm nada a perder. Podendo ser assustados e intimidados, sem água e sem alimentação. Portanto, quem não tem nada, não tem nada a perder. É um caminho e se não for feita aqui uma correção rápida em termos de governação, em termos de realmente termos um estado que garanta outro tipo de condições aos seus cidadãos, eu receio que voltemos a ter problemas, espero que não!

Mensagens a futuras gerações

Mensagens para os jovens e para o futuro de Angola é uma mensagem primeiramente de força e de certa maneira eu tenho esperança e gostaria que pelo menos os meus filhos ou os netos pudessem viver em um país diferente. Em um país com mais justiça social, em um país democrático, mas sabemos que o actual é uma democracia doente, de facto ainda não é uma democracia.

São os jovens, esta juventude é uma riqueza. Um dos problemas da Europa é ser uma população envelhecida, aqui temos essa riqueza, temos um país jovem, temos a força vital da juventude. E essa força vital, eu acredito, poderá fazer alguma diferença. Podemos só ser angolanos e querer o melhor para Angola e não ter de ser de algum partido para conseguir um emprego, uma oportunidade, ou o que quer que seja e a capacidade de todos os angolanos poderem ter um mínimo. Nesse momento, em pleno séc XXI ainda temos pessoas a morrer à fome em Angola, isso para mim não só é inadmissível, é inaceitável. Portanto, nós temos condições para fazer a diferença e podemos ter essa diferença utilizando os vastos recursos do país, de facto para benefício das nossas populações.

Era isso que eu queria dizer aos jovens: não pensem só individualmente, vamos pensar colectivamente Angola e que juntos somos capazes. Agostinho Neto tinha uma frase que hoje não se diz “Somos milhões e contra milhões ninguém combate”, portanto quando esses milhões decidirem vamos ter uma Angola de paz e de justiça social.

Precisam da emigração como do “pão para a boca”, nós aqui temos essa riqueza, um país jovem essa força vital poderia fazer aqui uma diferença, ter respeito até pela crítica, não podemos pensar ser de um Partido, mas pensar sermos angolanos. Temos de acabar com isso e acima de tudo promover o desenvolvimento do nossos pais

Ainda há pessoas a morrer à fome em Angola, isso para mim é inaceitável e podemos fazer essa diferença com justiça, com liberdade e é isso que eu peço aos jovens não pensem só individualmente, vamos pensar colectivamente Angola. Acreditem em vocês e vamos lutar por uma Angola desenvolvida. Ser testemunha dessa mudança, de uma Angola diferente. Todos esses objectivos, essas metas, esse homem novo que irá sair da miséria. Onde é que isso tudo foi parar?  Angola certamente é essa, portanto falta-nos uma governação focada naquilo que é realmente importante.

Importância da memória oral

A memória oral tem uma importância e particularmente em África muito especial, porque é por via da memória oral. e o passar desses testemunhos é muito importante.

Eu até iria mais longe, um outro aspecto é que sinto muito é a questão da importâncias das nossas línguas nacionais  por vezes, são um pouco desprezadas, não temos um sistema escolar que integre as línguas nacionais. Mesmo esses valores, muitas vezes mais ligados acabaram por se perder. A sociedade de consumo e do capitalismo, portanto, é a chave para nós resgatarmos esse conhecimento que vem da nossa tradição oral , no fundo esse conhecimento e essa ancestralidade .

Antes de irem embora, registar também aquilo que poderão ser as vossas experiências e que isso fique também como legado às novas gerações, como um documento oral para que as novas gerações oiçam de nós as nossas experiências, as nossas concepções. Parece-me que o trabalho que estão a fazer é muito importante e faço-vos um desafio, fazerem depois um segundo documentário em língua nacional também e com histórias e tradições em línguas nacionais, é um desafio que vos deixo!

Este depoimento foi realizado em Luanda, no dia 8 de Fevereiro de 2025.

Realização: Muki Produções

Transcrição: Marinela Cerqueira

Palavras Chaves: MINARS|ADRA| PAM| Lubango| Praia do Bispo| SOS Racismo| Estatuto do Indígenato