Contexto
O depoimento de Gilberto Costa e do Adelino Fernandes são as primeiras memórias colectadas de angolanos nascidos no Pós Independência e apresentam a contribuição da primeira geração de angolanos nascidos neste período. Este escoteiro da Igreja do Carmo reconhece o papel da igreja católica na sua formação e relativiza algumas condições sociais da época do “partido único” à época actual e reafirma que havia mais humanismo durante a sua infância.
Este audiovisual foi produzido cerca de doze meses após a Parte I, disponível na plataforma HSA[1], onde o leitor encontrará datas de factos reafirmados nesta Parte II onde descreve pormenores de factos narrados anteriormente, novos factos e respostas a questões sobre memórias pessoais e opiniões pessoais. Sendo o segundo depoimento se verifica a introdução de novas perguntas, o intervalo entre as duas coletas permite a inclusão do depoente no guião de entrevistas ajustado de acordo a dinâmica imposta por novas dimensões sociais. A nível de preservação da memória é interessante confirmar a perspectiva das representações da memória partilhadas na Parte I, no caso se comprove a firmeza da memória.
Este associativista nascido três meses antes da independência propõem às novas gerações reflexões a volta do humanismo existente na família, na sociedade e na governação durante a sua adolescência, período designado por ele como “os tempos do partido único” e indica o resgate dos valores e o da matriz de todos angolanos a sua Pátria, clamando o comprometimento de todos incluindo as diásporas inflacionadas pela fuga de quadros da sua geração e de outras.
Introdução
Eu sou o Gilberto Costa mais conhecido por Gil Costa, nasci a 19 de Junho de 1965 e nas minhas brincadeiras tenho dito que eu impulsionei o nascimento de Angola, quando brinco com as pessoas. Nasci e cresci em Angola, Angola para mim, para além de ser o país que me viu nascer e crescer é o país que também ensinou-me muita coisa, onde aprendi a ter as primeiras noções no que concerne às questões sociais.
Eu sou da geração do “por favor”, sou da geração em que o vizinho tinha uma responsabilidade sobre nós, tratamos o vizinho como tio, como membro da família.
Fiz o meu ensino primário na escola 189 onde hoje é a sede do Banco Econômico, depois tive que terminar a quarta classe na 202, ao lado do Mutu Ya Kevela porque a escola onde comecei a fazer a minha iniciação depois passou para a segurança de estado, era a escola dos funcionários da segurança de estado. Após concluir a 4ª Classe passei para a Escola Alda Lara onde estudei até a 7ª classe e depois passei para o IMEL, não terminei porque fui para a África do Sul em 1990.
No meu regresso da África do Sul tive a minha primeira experiência em organizar um evento social em que a temática tinha a ver com o VIH/SIDA e foi a partir daí que eu participo na criação do Grupo Movimento que se junta às outras duas ONG`s que existiam em Angola, a ALSIDA e outra e em conjunto criamos a ANASO, o meu trabalho foi o de legalizar a ANASO, eu e mais alguns colegas, o logotipo que a ANASO usa foi desenhado por mim, posso dizer que sou um dos co fundadores da ANASO
Em 2000 vim para Portugal, posto aqui faço uma parceria com o nosso consulado, na altura localizado no edifício da embaixada de Angola, em Entrecampos, a Consul Simbrão lançou-me um desafio dentro do que tinha apresentado, então eu comecei a trabalhar com o Consulado no que tinha a haver com as comunidades, fazíamos trabalhos e acções no intuito de campanhas no combate do HIV/SIDA. Depois, vou para as Ilhas dos Açores e preparei a primeira visita da delegação do consulado aquelas ilhas, começaram a tratar-me como o “Homem das Ilhas” por ter feito o link com os estudantes, das ilhas dos Açores e da Madeira e foi a partir daí que os exercícios consulares eram feitos naquelas ilhas porque era muito dispendioso o cidadão angolano que residia nas ilhas ter de deslocar para puder obter o passaporte e realizar as inscrições consulares, por isso apresentei a proposta e a Dra. Simbrão logo a primeira pediu para criar as condições da sua visita e desta forma nós conseguimos aproximar a comunidade angolana das ilhas ao continente, neste caso com a nossa estrutura superior cá em Lisboa.
Escoteiro da Igreja do Carmo
Antes de eu vir para Portugal, a minha vida religiosa sempre foi bem acentuada, eu fui catequista, seminarista, acólito escoteiro. E durante esse período em que eu estive nas lideranças ou nos grupos religiosos tive sempre uma participação muito activa. Fiz parte da Cruz Vermelha que naquela altura depois dos confrontos desenvolvia acções com a igreja que me viu a crescer, a Igreja do Carmo, fica ao lado do Governo Provincial de Luanda, esta igreja por norma distribuía kits de alimentos aos deslocados de guerra e eu fiz parte disso , na altura a responsável era a Dra. Vitória, foi uma pessoa muito importante na minha vida, ela deu-me um empurrão muito grande porque foi a partir daí que eu comecei a ter uma atenção muito especial a área social, o amor ao próximo foi tudo pelo trabalho que a Dra. Vitória fazia. Ela era médica e ao mesmo tempo tinha sempre a disponibilidade para o próximo. E havia uma equipa muito humanista que estava sempre disponível para apoiar os mais próximos. Então, nós naquela altura organizamos as cestas básicas ajudando os mais necessitados.
Posto isto, entrei para o escotismo, o escotismo também foi uma escola, quando se fala de tropa posso dizer que o escotismo que eu fiz em Angola foi uma espécie de recruta, foi uma experiência muito interessante, muito profunda que me ajudou imenso, hoje eu sou o que sou graças as áreas onde eu passei, tanto no escotismo, os grupos que eu frequentei a nível da igreja e também a educação que eu recebi dos meus pais, por isso eu tenho que agradecer imenso aos meus pais, a minha família em si e particularmente a Deus porque orientou-me para que eu pudesse ter essa base educacional.
No escotismo nós tínhamos a nossa liderança que era composta pelo chefe Ló, a chefe Emília, a chefe Geny, o chefe Jorge Silveira, o chefe Primo e esses foram pessoas importantes. Para lhe dizer, as primeiras árvores que foram plantadas do Benfica para cima foi o agrupamento do Carmo que plantou aquelas árvores, nós ficamos quase um mês a plantar aquelas árvores, foi um corredor acima de quinhentos quilômetros que nós plantamos de árvores e tem se dito um homem que se preze é aquele que planta uma árvore, que lê um livro e eu posso dizer ainda não escrevi um livro, já plantei árvores, já fiz algumas coisas interessantes, contributos ao próprio país.
Etapas mais marcantes do tempo de aluno e de estudante
Tive muitas etapas marcantes, uma delas soubemos que nós tínhamos uma dificuldade enorme de carteiras e naquela altura nós tínhamos de ir cedo para a escola para poder escolher a carteira, uma boa carteira, chegou um belo dia em que eu disse “não, eu constantemente tenho de estar aqui a lutar!”, então consegui uma corrente, levei uma corrente com um cadeado, peguei e prendi a carteira com cadeado no gradeamento da janela, e a partir daí a carteira passou a ser minha, ninguém conseguia tirar a carteira do lugar porque aquela carteira estava extremamente reservada para mim, eu é que tinha a chave.
Também, na cantina tínhamos a merenda escolar[2] e muitas das vezes apenas tínhamos direito a um bolinho e um pacotinho de sumo, eu e mais alguns colegas, fazíamos, um exercício de modo de ao invés de termos só aquilo, conseguirmos ter muito mais do que supostamente estava estipulado para cada aluno.
Ainda na minha infância, eu posso dizer que fui do tempo do chamado Caixão Vazio[3], metiam medo nas escolas, são momentos que marcaram, mas o que mais me marcou foi no tempo da rusga. O meu irmão mais velho muitas vezes para sair de casa nós mais novos é que tínhamos de acompanhá-lo e em um belo dia ele tinha de ir namorar e eu atrasei-me e o carro da patrulha passava e ele teve de pular o muro do cemitério para poder se esconder do carro da patrulha. E foram momentos muito interessantes, momentos que nos enalteceram, eram momentos de pânico dos quais depois nós rimos, mas foram momentos interessantes. Hoje estamos aqui, adultos, mas esses momentos também nos trouxeram a reflexão “se não passássemos por estes momentos hoje não seríamos o que somos”, eu vejo as coisas dessa forma.
Também dizer, que eu trabalhei com a USAID, fizemos um acordo entre a ANASO e a USAID.
Acção Social em Portugal
Em Portugal, achava que deveria crescer ainda mais, foi quando eu entro para a associação dos estudantes angolanos em Portugal, foi quando decidi concentrar-me nos estudos, e entro para a associação, onde começamos a organizar as primeiras galas de Miss Angola. O primeiro Miss Angola em Portugal foi feito por esta associação de estudantes. Fora disso, organizamos a gala de premiação e a gala de mérito onde premiamos os angolanos que se destacaram na diáspora.
Também, na associação dos estudantes fizemos o primeiro acordo com a Emirates. Nós os estudantes tínhamos muitas dificuldades na altura, principalmente quando fosse para regressarem ao país, muitos estudantes tinham de se desfazer dos seus pertences adquiridos ao longo do tempo de estudantes. Então, foi quando desenhamos o projecto Regresso Seguro, e foi um projecto em parceria com a TAAG, só que a TAAG era insuficiente. Quando nós descobrimos que a EMIRATES tinha o interesse de querer se juntar a comunidade angolana, nós fomos atrás da EMIRATES, fizemos a proposta de parceria e assinamos o primeiro acordo com a EMIRATES, muito antes do governo angolano ter assinado o acordo com a EMIRATES.
E assim são os pontos marcantes da minha passagem por Portugal, pela associação de estudantes, posso dizer que muita coisa foi feita pelos estudantes. Nós conseguimos devolver a associação dos estudantes aos estudantes porque na altura a associação dos estudantes era a associação dos estudantes do MPLA e quando nós tomamos a direcção conseguimos mostrar aos estudantes que aquele espaço não era só dos estudantes como eles diziam, dos estudantes do MPLA, dos bolseiros, era dos estudantes de outras forças políticas e que eles podiam fazer parte, estudantes que ali nós dentro daquele espaço nós despimos as cores partidárias e nós conseguimos unir a comunidade estudantil onde fizemos “n” acordos, como disse o Regresso Seguro e a Feira do Emprego.
Esta Feira do Emprego conseguiu que todos os estudantes saíssem daqui com emprego garantido, todos os estudantes que participaram das Feiras do Emprego regressaram para Angola com emprego garantido , com contratos de trabalho feitos a partir daqui, conseguimos firmar acordos com o nosso consulado onde o estudante era isento de pagar taxas de renovação da inscrição consular, o estudante não pagava a renovação do passaporte. Tínhamos uma série de isenções a nível do consulado.
Ao nível da TAAG, o estudante naquela altura tinha direito a um desconto de 70%, tínhamos direito a quilos, na altura (creio eu) cada estudante tinha direito a 250 kg para levar quando estivesse a regressar. Então, foram muitos benefícios que nós conseguimos almejar.
Tínhamos parceiros muito fortes para além da TAAG e do Consulado, tínhamos a Novo Câmbio que era uma das nossas parceiras principais e outras mais que me falham porque eu deixei a direcção da associação dos estudantes em Portugal em 2015 quando eu decidi voltar a Angola para dar o meu contributo ao desenvolvimento do país.
Posto em Angola, em 2015 fui chamado para o Kuando Kubango onde fui trabalhar na Universidade Cuito Cuanavale, onde exerci o cargo de chefe de departamento de investigação científica, foi uma experiência boa embora houvesse necessidade de tudo um pouco.
E eu acho que devíamos apostar bastante no interior do país para podermos levar o desenvolvimento ao interior do país porque Angola não é só Luanda, Angola são as dezoito províncias e estas são compostas por vários municípios e é por aí que nós temos de olhar para levar o desenvolvimento para todo o país.
A importância da sua geração partilhar as memórias com as gerações actuais
Eu posso dizer que a minha geração teve uma educação muito diferente da geração actual. Hoje estamos na era da informática, das TIC´s e as pessoas estão muito distanciadas. E tenho estado a dizer que eu sinto falta daquela geração, daquele tempo em que as pessoas eram mais próximas, o vizinho era parente. E é preciso que nós consigamos resgatar os nossos valores, precisamos de resgatar os nossos valores, apesar de estarmos em um mundo globalizado, não devemos esquecer as nossas bases.
É importante que nós consigamos perceber e saber qual é o nosso limite, onde começa a nossa liberdade e onde termina. Porque muitas vezes nós olhamos para a nova geração que está a perder o senso das coisas, o senso da limitação e eu posso usar o termo “hoje há muita libertinagem” e é preciso equilibrarmos as coisas, é preciso!
Como tem-se dito os mais velhos são uma biblioteca viva e é nas bibliotecas onde vamos buscar o conhecimento e é preciso que a nova geração respeite a geração anterior, que saiba respeitar os mais velhos, saiba diferenciar quem é o tio, quem é o pai, a posição de cada um, tem de saber diferenciar porque nós não podemos olhar para as pessoas e tratá-las por “tu”, o tu, quem é o tu? É o colega de carteira, que se senta contigo na escola.
Nós temos de ter limites e é preciso ter limite, nós temos de resgatar os nossos valores.
Saúde
No que concerne a nossa saúde, eu posso dizer que no meu tempo não se falava muito de hospitais, há coisas que eram feitas pelas nossas avós, aqueles medicamentos caseiros, as massagens. Mas hoje em dia, nós temos os hospitais, são importantes e realmente em termos de infraestruturas o país cresceu muito, tem infra estruturas hospitalares, mas em termos de recursos humanos ainda estamos muito aquém e é preciso que os nossos dirigentes apostem mais na saúde que é primordial, que apostem na educação que é primordial porque sem educação nós não conseguimos chegar aos objetivos do futuro.
Educação
Sem educação nós não conseguimos dar o passo, os avanços que nós almejamos dar e é preciso que os nossos dirigentes valorizem a educação, os professores porque é inadmissível em um país como o nosso onde o professor ganha uma miséria, é inadmissível em um país como o nosso onde os médicos e enfermeiros ganham uma miséria. É preciso nós olharmos, estruturarmos bem e sabermos o que é prioritário para o país? Precisamos fazer esta reflexão. Precisamos de não fazer discursos bonitos, projetos bonitos e que na prática não são executados, não conseguimos pôr em prática, precisamos dar prioridade às coisas, fazer as coisas acontecerem. Não podemos fazer somente as coisas para mostrar ao vizinho o que nós podemos fazer “estamos a varrer o nosso passeio, mas ao final das contas dentro de casa a casa está toda desestruturada, está toda desarrumada”.
No que concerne a alimentação, eu digo que sou do tempo do Cartão do Povo, da fila que naquela altura chamávamos bicha, tínhamos de acordar cedo para pôr aquele lugar, para pôr a pedra, para puder ir buscar o alimento, ir buscar a sesta básica. Naquela altura, do “partido único” tínhamos as Lojas do Povo, nós não tínhamos supermercados[4], tínhamos simplesmente as Lojas do Povo.
Nos anos 1989-90 aparece a loja francesa e depois o Jumbo passa a ser a loja para os dirigentes porque naquela altura para puderes fazer compras no Jumbo tinhas de ter uma requisição ou qualquer coisa do género.
Eu sou dessa geração e eu acho que naquela altura as coisas eram mais organizadas, havia mais humanismo, o governo olhava mais para o povo, tinha mais empatia pelo povo.
Hoje, infelizmente não sentimos isso e a mim entristece-me quando nós estes anos todos que podíamos mudar para melhor, não estamos a ver isso, entristece-me, mas nós melhores do que ninguém é que devemos ajudar o país a seguir o bom rumo, nós temos de ajudar o país a seguir o bom porto e precisa de ajuda de todos nós, estando dentro ou fora do país, os angolanos que estão na diáspora, nós devemos nos unir e olhar para o país porque o país é a nossa mãe e um filho deve olhar para a mãe com a maior dignidade e é assim que nós devemos olhar para Angola, com a maior dignidade!
Tempos Livres e brincadeiras infantis
Eu vivi na baixa da cidade de Luanda e os meus tempos livres era chegava da escola, descansava, almoçava, fazia os exercícios, os deveres de casa e depois íamos brincar que era jogar à bola, andar com os pneus, andar de jante que era enrolar a jante, os carrinhos de lata, feitos por nós. Os carrinhos de sabão, não sei se sabem o que é o carrinho de sabão? Era uma barra de madeira com quatro rolamentos onde nós púnhamos uma corda e descíamos a descida do Mutu[5]. Estas eram as brincadeiras que nós fazíamos, porquê?
Porque naquela altura, comprar um brinquedo era muito difícil porque nós só tínhamos direito ao brinquedo: a escola dava-nos uma senha com a qual nós íamos receber o brinquedo porque era só no natal que nós tínhamos esse direito. Então, nós não tínhamos de esperar pelo natal, tínhamos de adaptar as nossas brincadeiras e fazíamos os carros de lata, os carros de arame, o carro de sabão, andávamos de pneu, que era ponhamos uma lata com óleo de carro e dois paus e empurrávamos o pneu e também tínhamos a jante que era aquela jante da bicicleta que nós empurrávamos com um ferro e assim eram as nossas brincadeiras, tínhamos o bica bidon, tínhamos o 35 vitória, a barra do lenço, estátua ninguém se mexe, algumas já não me lembro (pensando), tínhamos o elástico, saltar a corda, tínhamos muitas brincadeiras.
E por acaso em um desses episódios o que me marcou foi que naquela altura tínhamos tempo para tudo, eram regras. Então, em casa éramos só rapazes, a minha irmã mais velha já vivia em Portugal, nós éramos rapazes tínhamos de fazer a lide de casa e nesse dia o meu irmão mais velho e os outros saíram porque nós tínhamos o campeonato de futebol e como nós estávamos nas finais, a minha posição era a de guarda redes, eles saem para ir jogar e o meu pai chega muito mais cedo e pergunta pelos outros e eu disse “saíram” ele disse “ai é, vai lá chamar os teus irmãos”, eu ao invés de ir somente chamá-los acabei por ficar, ficamos, ganhamos e ficamos a comemorar. No regresso a casa levamos uma sova, eu levei mais porque sendo mais velho e terem-me mandado ir chamá-los apanhei mais do que devia e a partir daí eu disse “ nunca mais eu vou levar porrada, nunca mais vou aceitar que me batam dessa forma”, fazia primeiro os afazeres depois é que ia brincar.
Alimentação
A alimentação como disse era acordamos cedo para ocupar o lugar, por ali a pedrinha e às vezes as coisas que nós íamos comprar (pensando), sou do tempo do Roque Santeiro e há coisas que íamos comprar na praça. Recordo, uma vez eu e o meu irmão mais novo o Aguinaldo fomos ao mercado, a mãe deu-nos o dinheiro e tínhamos o dinheiro para apanhar o táxi até ao mercado e voltar, só que nós gastamos o dinheiro, saímos do Roque Santeiro até a Mutamba a pé, com os sacos na cabeça e nos ombros porque nós pusemo-nos em brincadeira. Mas, eram momentos bons, divertidos.
Nós íamos buscar o pão ali ao Cazenga e muitas vezes apanhamos o autocarro 33 e quando não tínhamos dinheiro íamos a pé e voltávamos a pé para ir buscar o pão. Hoje, podemos dizer que o Cazenga já fica distante, mas antes andávamos à vontade, éramos miúdos naquela altura. São momentos que foram marcados, saímos do Cazenga da padaria ao lado do actual Zamba I e depois começavámos a descer: íamos ao Miramar deixar o pão a avó, depois descíamos íamos até a Marginal deixar o pão a tia Zita e o resto levávamos para casa e é assim que nós fazíamos a distribuição do pão pelas casas quando fossemos nós a ir buscar o pão.
Lembro-me também que o meu tio irmão da minha mãe vem do Brasil e traz caixas de pastilhas elásticas e manda-me vender, fomos vender a rua da Baratinha e a polícia vem, bica as coisas e acaba por me levar para a esquadra. E eu estava com um primo que naquela época “já estava abrangido”, tinha idade de ir para a tropa e o meu primo fugiu. Levaram-me, fizeram-me interrogação e eu miúdo “A pessoa que me mandou vender é teu chefe”, depois levaram-me para casa para eu mostrar a pessoa. E o meu irmão mais novo, o meu primo esconde-se, diz “o meu irmão não vai preso, a pessoa que tem de ser presa está lá em cima”. São estes os momentos que me marcaram, interessantes. Depois, chegou um primo que já era tropa e eles deixaram-me.
Acho que naquela altura éramos mais unidos, não só a família, mas a sociedade em si era mais unida.
Diversões e festas
Por norma os eventos eram sempre em família. Eu só comecei a frequentar as discotecas quando criei o Grupo Movimento, começamos a ir às discotecas para fazer campanhas de sensibilização, distribuíamos preservativos. Aquela zona toda, da Mutamba até a Ilha de Luanda, nós descíamos para distribuir preservativos as trabalhadoras de sexo e dentro das discotecas. Chegou a uma altura em que nós já não pedíamos favor para entrar nas discotecas, eu e o Primo, andávamos juntos, entramos nas discotecas.
E por acaso foi a partir daí que a nossa ONG tornou se notória com essas actividades que íamos fazendo, o próprio MINSA apercebeu-se do nosso trabalho e chamou-nos na época em que foi criado o Instituto Nacional de Luta Contra a SIDA e então como nós precisávamos de criar uma plataforma sólida para ser parceira do estado criamos a ANASO.
Quando venho para Portugal venho como representante da ANASO para Europa e assim foi a vida do associativismo.
Conselhos às Novas Gerações
Comodizia no princípio, o primeiro é não esquecermos as nossas bases, nós não podemos nos distanciar das nossas raízes. Nós temos de agarrar a nossa matriz que é o nosso país, Angola precisa de todos nós, precisa de todos angolanos que estão espalhados a nível da diáspora, precisamos de ser mais humanos, ter mais humanismo e mais comprometimento com as nossas causas.
Que esta nova geração deve valorizar e respeitar os mais velho “se hoje nós chegamos onde chegamos, passamos por situações muito desafiantes” e essas situações que nós passamos não foram por acaso, foram situações que hoje fizeram de nós pessoas com maturidade e com responsabilidade e o que eu peço a nova geração é que saiba valorizar e respeitar os mais velhos, não ter medo de buscar o conhecimento ao meu velho, ter união e a proximidade ao mesmo velho e comprometimento acima de tudo como o próprio país.
Porque essa nova geração como eu disse é a geração das TIC`s, hoje vamos para um evento e nós não vimos a interação entre os mais novos com os mais velhos, não sentimos essa interação, uns estão nos telemóveis, enfim. então é preciso ter tempo para tudo “passo a passo”.
Que recordações esta casa lhe traz?
Eu nasci e cresci em Luanda, na rua Lopes de Lima, prédio 24, 3º andar e as recordações que aquela casa me traz são muitas para contar aqui. Por exemplo, nós tínhamos de descer para acarretar água e naquela altura estávamos muito longe de instalações de electrobomba, não sei se não estava na moda ou se não se usava, mas nós tínhamos de descer para acarretar água, tínhamos de descer para lavar a roupa no tanque, naquele tanque de betão. E a convivência com os vizinhos sempre foram boas porque era aquela convivência de irmandade, nós não precisávamos de nos trancar, as portas estavam sempre abertas, entravámos em casa do vizinho como o vizinho entrava em nossa casa, como se estivéssemos na nossa própria casa. E até hoje eu tenho de passar sempre na rua onde eu cresci, onde hoje por acaso vive a minha irmã mais velha e por acaso ainda há alguns vizinhos que vivem ali e “matam as saudades”. Nós ficávamos em baixo do prédio para conversar e brincávamos. Acho que são muitas saudades que nós temos.
Lembro-me de uma vez em que estávamos a dormir e a energia falha e logo de madrugada eu desperto e dá-me a sensação de ver quatro pessoas sentadas a mesa e eu disse “mas espera aí, eu estou a sonhar e estavam quatro pessoas sentadas à mesa a jogar” e eu depois nessa noite estava a minha avó materna e quando acordei expliquei-lhe e minha avó disse “são as almas que vieram visitar-nos” e a partir desse dia eu comecei a ter medo de sair. Então foi quando eu comecei a fazer crucifixos e pendurava na cabeceira da cama, na porta, em tudo quanto era canto por ser uma forma de poder espantar esses “ela disse que eram almas de outro mundo”.
Qual é a importância de os angolanos contarem a história social do país?
Temos o presente, o passado e o futuro, não há presente e futuro sem o passado. É preciso conhecermos a história do nosso país para que possamos perceber de onde viemos e para onde queremos ir porque o desenvolvimento de um país depende da sua história e do seu passado, não conseguimos! Imaginemos que eu não vou instalar um metro sem antes fazer um estudo daquele espaço, portanto é preciso que conheçamos a história do país.
Este trabalho que está a ser feito é importante para o desenvolvimento e para a história do nosso país porque é um arquivo, um acervo que vai ajudar imenso, não somente a nível académico, mas como também ao nível do conhecimento quer da juventude quer a nível internacional por ser importante se conhecer a nossa história. Portanto, é um trabalho de louvar e acho que os nossos dirigentes deviam abraçar este projecto, porque isso não é um trabalho que nós devemos olhar como “é mais um” devemos olhar este trabalho como algo que é “pertença” do estado angolano, por não ser um trabalho individual, é um trabalho sobre a história do país que precisa de ser narrada pelos cantos do mundo.
Até que ponto o colonialismo influenciou a história social do nosso país no pós independência?
No que concerne ao colonialismo eu sou Pós-Independência porque eu não posso falar do colonialismo. Mas, eu tenho estado a dizer que a nossa independência foi sim uma conquista, mas ao mesmo tempo eu olho para esta conquista não no seu todo, porquê?
Porque quando se lutou, foi por uma causa, causa essa que era o bem de todos os angolanos. Hoje nós olhamos para o país e temos separações, temos ilhas e é preciso nos desfazermos dessas ilhas e olhemos para o país numa só dimensão, todos nós temos os mesmos direitos, o mesmo direito de beneficiar porque somos todos angolanos, somos filhos da mesma pátria. Por isso, é que eu dizia que no tempo do “partido único” havia mais humanismo. O próprio governo se comprometeu mais com o povo.
E hoje o pós-independência, precisamos de nos rever do propósito dessa luta que foi feita pela independência, é preciso nós nos revermos e perceber lutamos porquê? conquistamos uma independência para quê?
Porque hoje estamos lutando entre nós próprios, não é isso que nós queremos, não é isso que o país precisa. O país precisa da união e que consigamos construir o futuro do país, levarmos o desenvolvimento do país. É isso que o país precisa, o país não precisa que nós mostremos “varremos e pusemos o lixo debaixo do tapete e quando estamos a levantar o tapete o lixo está lá a sujidade toda”, não é isso que nós precisamos, precisamos de um comprometimento no seu todo.
Nasce no pós independência e fala de um período mais humanizado?
Eu nasci em 1975, a 19 de Junho e como tenho brincado a independência de Angola foi graça ao meu nascimento. No “partido único” posso dizer que os angolanos eram mais unidos, havia humanismo não só pela população, mas o próprio governo, éramos mais unidos. Quando entramos para o capitalismo as coisas mudam e mudaram porquê?
Porque as pessoas transformaram-se, aquilo que as pessoas não conseguiam alcançar no tempo do “partido único” as pessoas começaram a lutar para alcançar e chegou o momento em que “começaram a pisar uns aos outros” para poderem sobressair e terem aquelas coisas. E por isso tenho estado a dizer que precisamos de resgatar os nossos valores, nós precisamos é de recuperar nossa entidade porque quando éramos unidos , nós não víamos o índice de delinquência que hoje o país tem, quando nós éramos unidos não víamos a disparidade de desemprego que hoje temos, quando o país era unido nós não ouvimos o lamento que hoje ouvimos sobre a cesta básica, porque eu sou da geração do Cartão Único, da fila do pão.
Eu levava o cartão que os meus pais davam a chamada Loja do Povo e quando chegasse a minha vez o responsável punha as compras no saco e assinava-la no quadradinho, entregava-me o saco e eu ia para casa. Depois, ia para o talho levantava os frescos, ia para a peixaria levantava o peixe e para o depósito do pão, nós tínhamos depósito de pão, hoje não temos.
Então, é preciso nós olharmos, se naquele tempo a sociedade estava organizada e posso dizer devidamente comprometida, porquê que agora não conseguimos? Se nós estamos acompanhando a globalização quando se diz “melhorar”, temos de melhorar para o bem, não é mudanças para retroceder; temos de mudar para evoluirmos e isso é possível quando nós angolanos conseguirmos nos comprometer.
A Inquietante Fuga de Quadros e a Diáspora
E quando falo de angolanos não estou a falar dos angolanos que vivem em Angola, estou a falar dos angolanos no seu todo, os que estão na diáspora, é preciso nos unirmos, nos comprometemos, olharmos o país como uma matriz, o país é a nossa casa principal que é Angola.
Oiço os mais velhos dizerem que naquela altura um vencimento no valor de 1000$00 escudos e era muito dinheiro, viviam bem e eu oiço mais velho a dizer “mil vezes termos os portugueses lá do que termos lutado para nada” porque muita coisa mudou, uns beneficiaram-se.
Se a causa da luta pela independência era para a melhoria de todos e isso não aconteceu, hoje é preciso olharmos e buscarmos a matriz principal do porquê que houve aquela luta no passado para alcançar essa independência que temos estado a comemorar.
E agora eu me pergunto 48 anos de quê? Temos infraestruturas, bastantes universidades, naquela altura só havia uma universidade, hoje temos muitas universidades. Mas, o que adianta termos as infraestruturas se nós não temos quadros nossos a funcionar e que não são dignificados como deve ser? Hoje, um professor universitário ganha quanto? Quanto é que ganha um médico? Isto é que nós precisamos dignificar.
Se os nossos mais velhos dizem que naquela altura eles estavam bem, então porque é que lutaram pela independência?
O grupo da minha geração e o que desceu para Angola em 2015 do qual eu faço parte, eu posso lhe dizer que 75% desse grupo emigrou, voltou, uns estão em Portugal, outros em Inglaterra e por aí fora e então são quadros que o país perdeu. Então, nós nos formamos e o país gasta balúrdios de dinheiro para mandar pessoas formarem-se e depois não aproveita os quadros? O que estamos a fazer, a dar um tiro no próprio pé.
Este depoimento foi realizado em Outubro de 2023, pela Marinela Cerqueira, em colaboração com a empresa Muki Produções.
Editado e Publicado por Marinela Cerqueira e Sónia Cançado
Palavras-chaves: EMIRATES|TAAG|ANASO| Escoteiros do Carmo| Partido Único| Loja do Povo| Humanismo| Grupo Movimento| Escoteiros do Carmo
Editado e Publicado por Marinela Cerqueira e Sónia Cançado
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[1] https://historiasocialdeangola.org/2022/03/31/entre-a-angola-e-a-diaspora-portuguesa-e-inglesa-carlos-leandro-2/
[2] O depoente provavelmente se refere a Cassumbula, acto dos alunos forçarem outros a partilhar ou a entregar o lanche, o depoente Adelino Fernandes faz referência a esta prática do tempo do Partido Único.
[3] O Mito do Caixão vazio https://www.angonoticias.com/Artigos/item/31235/caixao-vazio-o-mito-que-pos-angola-em-panico%3C
[4] Entre outros depoentes da HSA Adelino Fernandes aborda a mesma questao consulte em https://historiasocialdeangola.org/2023/10/24/depoimento-de-adelino-fernandes-vim-desconstruido-e-destransformado-parte-ii/
[5] Antigo Liceu Mutu Ya Kevela